Constou-me que está para breve a visita a Cabinda do senhor João Lourenço no âmbito da sua apresentação como candidato presidencial do MPLA. Já se pode ver algumas movimentações da praxe a que nos habituaram nestas ocasiões com o mesmo intuito de sempre: falsificar a verdade das coisas para dar uma ilusão óptica aos visitantes.
Por Raul Tati
Creio ser esta visita uma oportunidade para fazer uma reflexão política séria sobre a realidade profunda desta província ultramarina de Cabinda, longe das banalidades e da opacidade do discurso oficial.
Para começar esta reflexão gostava de reportar aqui uma questão que havia colocado ao Presidente da UNITA, Dr. Isaías Ngola Samakuva, no princípio do seu segundo mandato (este é o terceiro) num encontro que mantivemos em Lisboa: “O Dr. Jonas Malheiro Savimbi nunca visitou Cabinda. O senhor, sendo sucessor do Dr. Savimbi, também ainda não visitou Cabinda, quando já vai no seu segundo mandato. Que razões estão na base disso?” E a resposta foi peremptória e convincente: “para visitar Cabinda é preciso levar para lá um discurso claro e inequívoco. Estou a preparar-me para isso”.
Para bons entendedores meia palavra basta! A razão evocada, entretanto, pelo meu ilustre interlocutor prende-se com a especificidade política de Cabinda. Na sua óptica, não se pode vir a Cabinda com discursos ocos, torpes e demagógicos. Não se pode fazer discursos políticos em Cabinda passando ao largo dos problemas mais profundos deste Território e que são, sobretudo, políticos.
Fiquei convencido que o meu interlocutor falou movido pela honestidade política (se é que ainda resta alguma na política). Sei que passado algum tempo, veio a Cabinda com uma alta delegação do seu partido e no discurso então proferido condenou a continuação da guerra em Cabinda, indicou os caminhos do diálogo com os cabindas para uma paz duradoira e mostrou-se indignado pela miséria económica que contrastava com os fabulosos recursos aqui explorados. Dialogou com a sociedade civil de Cabinda enquadrada na Associação Cívica de Cabinda (vulgo Mpalabanda) com quem se mostrou aberto a cooperar. Foi também claro sobre o pensamento estratégico da UNITA em relação ao diferendo de Cabinda: negociar com os cabindas um estatuto político-administrativo de autonomia alargada.
Ora bem, partindo desta premissa, quero aqui gizar algumas reflexões à guisa de recados ao Sr. João Lourenço como homem, dirigente político do MPLA e como candidato presidencial às próximas eleições. Em primeiro lugar, o senhor João Lourenço não pode trazer a Cabinda os mesmos discursos monocórdicos e petulantes que tem estado a pronunciar nos seus comícios, pois, corre o risco de pregar no deserto.
Deverá fazer uma distinção que é fundamental em comunicação política: se vai dirigir-se à população geral de Angola, à população de Cabinda, aos militantes e simpatizantes do MPLA ou ao Povo de Cabinda. Não deve misturar alhos com bugalhos. Em segundo lugar, o senhor João Lourenço não tem como não tocar no problema político de Cabinda, este diferendo que persiste passados quarenta e dois anos. É do inteiro interesse do Povo de Cabinda (se é que vai dirigir-se a ele) saber qual é o pensamento estratégico do putativo sucessor do presidente JES em relação ao famoso “Caso Cabinda”.
Seria um suicídio político, para quem almeja o mais alto cargo da nação, ignorar um dos passivos mais incómodos do Estado angolano e que se constitui destarte como um dos legados mais nebulosos do ainda presidente Eduardo dos Santos. Este, embora tenha apostado na estratégia das baionetas e dos canhões, pelo menos em cinco ocasiões (1989, 1992, 2007,2008 e 2012) esteve em Cabinda e não ludibriou a existência deste problema: os cabindas reivindicam o seu direito à autodeterminação.
“Vamos conversar” prometeu, sem cumprir, Eduardo dos Santos
Foi exactamente no comício do acto central das comemorações do 4 de Fevereiro de 1989 que o PR deixou em Cabinda a promessa (jamais cumprida) “VAMOS CONVERSAR”; na campanha eleitoral de 1992 foi o único candidato presidencial que veio a Cabinda, mas não conseguiu fazer comício, pois suspeitava-se nas hostes securitárias a preparação de um atentado contra si. Limitou-se a reunir com algumas entidades políticas e religiosas de Cabinda a quem também deixou a promessa: “SE O MPLA VENCER AS ELEIÇÕES, VAI RESOLVER O CASO CABINDA”. Venceu as eleições, mas o Caso Cabinda ainda está vivo.
Depois de ter fabricado o famigerado e defunto MEMORANDO DE ENTENDIMENTO PARA A PAZ E RECONCILIAÇÃO NA PROVÍNCIA DE CABINDA (01AGO2006), consciente da sua nulidade e inoperacionalidade, para não falarmos da sua categórica rejeição pelo Povo de Cabinda, veio a Cabinda um ano depois (10AGO2007) dizer que o Memorando de Entendimento, como qualquer obra humana, não era perfeito, mas que se poderia aperfeiçoar depois de 12 meses… 18 meses ou mesmo 24 meses.
Lá se foi uma década arrastando o velório de um defunto que teimam em não sepultar para que descanse definitivamente em paz em qualquer cemitério lá do Namibe, onde nasceu.
Nas campanhas de 2008 e 2012 JES voltou à carga sobre o diferendo de Cabinda, desta vez, sem mais promessas mas estigmatizando as aspirações autonómicas locais que contrapôs à gesta dos filhos de Cabinda que combateram o colonialismo português no MPLA e o papel crucial de Cabinda como Segunda região militar no combate contra o exército português e como Centro de Instrução Revolucionária (CIR) onde forjaram muitos quadros militares.
Para além desses discursos proferidos em Cabinda, numa outra ocasião, e uma única vez, no seu Discurso sobre o Estado da Nação na cerimónia de abertura do ano parlamentar em Luanda (15OUT2010), JES falou de supostas ameaças externas que pretendiam criar perturbações na província de Cabinda referindo-se aos focos de tensão militar então vigentes, embora a situação securitária de Angola fosse considerada geralmente estável.
Não creio que diante disso o candidato João Lourenço possa escapar. O Povo de Cabinda precisa escrutinar o seu pensamento e é a partir das suas palavras que havemos de começar a perceber o que nos espera; se vem aí bonança ou temos de estar preparados para mais tempestades. Se, pelo contrário, o candidato decidir não pronunciar-se sobre o diferendo de Cabinda, então havemos de concluir que ainda não está preparado para assumir o cargo que aspira ou então prefere não arriscar nada, tendo em conta a delicadeza do dossier.
Sugestões a João Lourenço
Na eventualidade de querer mesmo tocar no assunto, como se espera, podiam ser úteis mais estes recadinhos gratuitos que aqui deixo:
1. O Candidato João Lourenço deve saber que o MPLA é o responsável pela actual desgraça multifacetada do Povo de Cabinda. Invadiu e ocupou Cabinda em 1974, logo depois do 25 de Abril e fez de Cabinda a sua mina de ouro (o Koweit africano). O petróleo de Cabinda foi a moeda com que pagaram os soviéticos e os cubanos que os ajudaram a assumir o poder em Angola, golpeando o acordo de Alvor. O MPLA Impediu por todos os meios violentos que o Território de Cabinda ascendesse à sua independência durante a descolonização. Instalou em Cabinda nestes quarenta e dois anos uma administração extractiva de tipo colonialista. Criou impérios financeiros assenhoreados pela elite cleptocrata de um regime que coloniza igualmente os indígenas da “Angola profunda” (como gostava de dizer o Dr. Jonas Savimbi) e se mostra insensível à miséria de mais de 20 milhões de angolanos, condenados à mais abjecta pobreza. Foi substituída a colonização leucodérmica pela colonização melodérmica. Só mudou de cor. O candidato João Lourenço fez serviço militar em Cabinda e é um dos actores deste drama que o Povo de Cabinda não vê a hora de enterrar.
2. A situação social e económica de Cabinda neste momento é desastrosa. Houve num passado, não muito longínquo, um relativo desafogo, o que permite hoje a alguns saudosistas falar em tempos idos de vacas gordas. Na situação actual nem vacas magras temos; desapareceram as vacas. Aliás apenas ficou uma: a VACA LEITEIRA que é esta Terra de Cabinda que através das suas tetas (as plataformas petrolíferas no mar e em terra) alimenta a voracidade e a volúpia dos deuses do Olimpo sentados em modorras de cristal enquanto que nós, os deserdados do vento Norte, estamos condenados ao estatuto de servos da gleba, provando a cada dia o fel dos seus instintos lupinos. Os filhos desta Terra de Muen-Ngoyo, Muen-Kongo e Muen-Loango carregam dentro si a alma amarfanhada pelo peso da opressão, da pobreza e da exclusão social sistematicamente praticados pelo regime do MPLA.
3. Estamos fartos de promessas. Creio que já foram feitos todos os tipos possíveis de promessas para distrair e iludir a cáfila dos incautos sempre prontos a engolir o engodo da astúcia política do regime para alijar o ímpeto autonomista. Precisamos de actos concretos tendentes a restituir a dignidade a este Povo que geme neste vale de lágrimas, suor e sangue, onde até os profetas se calaram e não temos nenhum Ezequiel a profetizar o ressurgimento a partir dos “ossos ressequidos”.
4. Cabinda, constituída em província ultramarina angolana, há-de continuar a clamar por justiça e esta só será efectiva e definitiva com a aplicação do princípio da autodeterminação com vista à sua emancipação política. Se assim não for, tudo o que entenderem fazer em Cabinda será apenas uma panaceia que só terá o mérito de adiar o problema com a manutenção do status quo por mais um tempo, mas nunca para sempre….Nunca para sempre! A História oferece-nos lições indescuráveis neste domínio, pois não se pode calar para sempre o clamor dum Povo nem a sua determinação com canhões e muito menos com discursos dilatórios, pois a autoridade política só pode radicar na soberania popular e a obediência do cidadão só pode assentar na sua vontade livre, no seu consentimento. Há-de cair esse império que o MPLA ergueu com pernas de barro, tal como caiu o império salazarista em Portugal. É uma questão de tempo…e o tempo é implacável.
5. Concluindo: a mobilização política é o cavalo de batalha de uma campanha eleitoral. Estou em crer que neste ano de 2017, aqueles que nos oprimem vão aproximar-se de nós para nos estender as mãos e até poderão escancarar as portas para conversar com personalidades cabindesas do interior num gesto de suposta boa vontade; os que nos mandam para os calabouços fedorentos do regime virão falar-nos de paz, harmonia e reconciliação; os que nos odeiam virão falar do amor; neste sentido, se o candidato João Lourenço quiser lançar pontes, estaremos aqui dispostos a trilhá-las para a construção da concórdia que poderá posteriormente inspirar um acordo que satisfaça as nossas ambições enquanto Território não autónomo. Aqui estamos para recebê-lo, mas que venha sem preconceitos nem prepotências. Que venha em paz a Cabinda e em paz regresse à procedência!