O engraxamento como política

Recentemente houve uma doação maciça de caixas de engraxar calçados para centenas de engraxadores. As caixas estavam pintadas com as cores vermelha, preta e amarela, tons da bandeira da República, mas também, e essencialmente, da bandeira do partido que distribuía as caixinhas – MPLA. A quase estrela desenhada na caixa espelha a origem.

Por Sedrick de Carvalho

Os kits de engraxamento foram dados gratuitamente, estranhamente, num ano de simulacro eleitoral em que o chefe de orquestra é o distribuidor oficial. A gratuidade das caixas não é despropositada, obviamente.

Engraxar não é fácil, tanto que há artigos sobre como fazer esse trabalho. A título de exemplo, indivíduos como Gildo Matias, João Pinto ou Luvualu podem ser classificados como doutores em engraxamento político. Como manter um ditador corrupto e sanguinário com cara de novo, e bem conservado certamente, é uma lição que os citados dominam, tão bem que até dão aulas em directo pela imprensa.

O respeito pela limpeza e brilho do supremo ditador é reforçado diariamente, como o homem que manda o rapaz engraxar o seu sapato todos os dias antes de subir ao local de trabalho, e assim preservar a boa aparência do calçado.

Entretanto, a pobreza continua a ser combatida com pobreza. Dedicar-se ao engraxamento do ditador é duma pobreza assustadora, tal como é aterrador ter um governo que aposta na massificação do engraxamento como política de redução do desemprego e diversificação da economia. Mas para a ditadura é uma aposta bastante lucrativa.

Talvez os actuais bajuladores tenham sido engraxadores de sapatos enquanto crianças ou adolescentes. E se foram, então compreende-se finalmente a maneira como desempenham a função na maior tranquilidade, porque ser engraxador de sapatos requer serenidade para não deixar um lado com manchas. É com esta serenidade que assistimos aos bajuladores a engraxarem simultaneamente várias pessoas, desde i presidente e seus filhos, ministros, empresários e agora o falso candidato a presidente dos distribuidores de caixas. Sem deixar manchas a nenhum deles.

Os engraxadores políticos poderiam perfeitamente trabalhar como promotores de vendas. Convencer pessoas a comprar imóveis não é fácil. Mas alguém que diz numa seriedade bíblica que o oxigénio é um dos ganhos da paz, e convence muitos de que é mesmo, deve ter também capacidade para vender cem casas diariamente.

O tom de voz a ser usado para bajular equivale ao tipo de pomada para engraxar: deve ser específico para cada bajulado. E o timbre vocal aprende-se ouvindo muito os bajuladores mas também nas escolas onde alguns dos mencionados dão aulas.

Actualmente o número de engraxadores atingiu proporções alarmantes, e há até disputas sobre quem vai aos programas radiofónicos e televisivos conjugar melhor o verbo bajular na primeira pessoa do indicativo. A oferta de engraxadores políticos já era maior que a procura quando decorria o julgamento do «Processo 15+Duas». A direcção nacional da bajulação, denominado Gabinete de Revitalização e Execução da Comunicação Institucional e Marketing da Administração, teve de criar listas onde os bajuladores viam os dias em que eram escalados e respectivos órgãos de comunicação em que actuariam. Parecia resolvido o problema da excessiva oferta.

Consequentemente, o mercado do engraxamento passou a contar com muitos seniores e poucos juniores. Mais para excitar do que para amenizar o afluxo de bajuladores, o mais destacado foi nomeado para um cargo que até então não existia: embaixador itinerante.

A proximidade sonora entre as palavras embaixador, engraxador e bajulador é só mera coincidência. Porém, não é por acaso que o itinerário do embaixador itinerante resume-se em bajulações ao ditador pelos vários pontos do mundo onde quem o nomeou o enviar.

Mas ainda há excedente de bajuladores, e por isso talvez o chefe da ditadura angolana pense já exportar alguns para países como a Rússia, Turquia, Congo Brazzaville e Kinshasa, ou para o Zimbabué, e ali os colocar ao serviço dos respectivos homólogos ditadores. O ditador angolano deve estar também a analisar exportar muitos engraxadores que estão sem clientes em Angola, visto que os vinte milhões de pobres nem têm dinheiro para engraxar calçados nas ruas.

Para além de Angola ser líder mundial na mortalidade infantil, ter um dos governos mais corruptos do mundo, e consumir mais champanhe per capita também do mundo, agora o país pode se afirmar como líder inquestionável em mais duas coisas: engraxadores de calçados e engraxadores políticos. Sim, esses são verdadeiras conquistas de um arquitecto da paz.

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