O Ministério Público angolano acusou nove pessoas, entre as quais cinco antigos altos funcionários da Administração-Geral Tributária (AGT), pelo desvio de 1.580 milhões de kwanzas (oito milhões de euros), em receitas de impostos cobrados a empresas.
De acordo com a acusação do Ministério Público (MP), entre os acusados neste processo, e em prisão preventiva desde Outubro, está Nickolas Neto, que à data dos factos era um dos administradores da AGT, com os pelouros da Direcção de Tributação Especial, Direcção Técnica e o Gabinete de Comunicação Institucional.
Os cinco ex-funcionários da AGT estão acusados, em co-autoria, de crimes de corrupção passiva, fraude fiscal qualificada, associação de malfeitores e branqueamento de capitais, de acordo com a acusação.
“De realçar que tramitam na instrução vários processos da mesma natureza contra os arguidos envolvendo outras empresas”, lê-se no mesmo despacho de acusação.
No documento é citado o caso da TECNIMED – Equipamento e Material Hospitalar, cuja administração terá sido contactada em 2016 pelo arguido Nickolas Neto, alertando para uma dívida fiscal da empresa.
Posteriormente, os arguidos colocaram-se à disposição dos administradores da TECNIMED para “regularizar a dívida”, caso a empresa aceitasse a prestação de serviço de consultoria dos mesmos.
A 18 de Julho, a empresa em causa foi notificada pela 1.ª Repartição Fiscal de Luanda de uma dívida tributária no valor superior a 580 milhões de kwanzas (três milhões de euros), referente ao exercício fiscal de 2014.
Após a intervenção dos arguidos da AGT e outros intermediários, esse montante foi reduzido para menos de 10 milhões de kwanzas (51 mil euros), com o documento da redução do valor em dívida “sem qualquer fundamento” e a ser assinado por Ngola Mbandi, um dos arguidos e à data dos factos chefe da 1.ª Repartição Fiscal.
A acusação descreve ainda que os arguidos, com idades entre os 32 e os 64 anos, utilizaram várias empresas e contas bancárias para, alegadamente, disfarçar a proveniência do dinheiro desviado, sublinhando a “gravidade dos crimes cometidos” e os “prejuízos avultados causados ao erário público”.
Este processo foi revelado a 12 de Outubro, quando elementos do Serviço de Investigação Criminal (SIC) detiveram os então cinco altos funcionários da AGT, por suspeitas de desvio de receitas da cobrança de impostos a empresas importadoras.
Na sequência, o Ministério das Finanças exonerou Nickolas Neto, indiciado e um dos administradores da AGT, anunciando ainda ter desencadeado diligências internas “para protecção dos direitos dos contribuintes, impedir o descaminho de tributos devidos ao Estado e moralizar a instituição”.
A 26 de Setembro, no discurso de tomada de posse, o novo Presidente angolano, João Lourenço, prometeu que o combate ao crime económico e à corrupção será uma “importante frente de luta” e a “ter seriamente em conta” no mandato de cinco anos que agora inicia.
“A corrupção e a impunidade têm um impacto negativo directo na capacidade do Estado e dos seus agentes executarem qualquer programa de governação. Exorto por isso todo o nosso povo a trabalhar em conjunto para estripar esse mal que ameaça seriamente os alicerces da nossa sociedade”, afirmou João Lourenço.
Garantias do PCA da AGT
AAGT está comprometida em não tolerar condutas que manchem a instituição, colocando-se à frente na denúncia de casos, como a recente acção judicial movida contra alguns funcionários, garantiu no dia 12 de Dezembro o presidente do Conselho de Administração da AGT, Sílvio Burity.
A defesa da honorabilidade da AGT foi feita por Sílvio Burity à margem da palestra “As administrações tributárias no século XXI”, que assinalou o terceiro aniversário da instituição.
Questionado pela agência Lusa, se estas detenções traduzem uma mancha nos três anos de actividade da AGT, Sílvio Burity garantiu que a instituição tem valores a preservar.
“Esses casos são detectados pela instituição e a instituição é que canaliza para os órgãos de justiça, portanto, há aqui uma obrigação legal que a instituição cumpre e é a própria instituição que quer que estas condutas sejam devidamente tratadas”, disse o responsável, acrescentando que entre os valores a preservar, “a transparência e a honestidade” são os que mais destacam.
“Entretanto, a AGT tem os seus funcionários e na actuação de alguns funcionários, eles desviam-se muitas vezes das normas da instituição”, disse.
Segundo Sílvio Burity, a própria instituição tem um gabinete de auditoria e integridade institucional, que com a sua acção “tem vindo a detectar esses casos”.
“É a própria estrutura da instituição que tem vindo a detectar esses casos, portanto, nós como instituição e as nossas obrigações para com os contribuintes obrigam-nos a ter uma conduta exemplar e nós temos vindo a incentivar o cumprimento junto dos nossos trabalhadores e existe um compromisso de não tolerância com essas condutas”, assegurou.
E o caso dos terrenos no Cuanza Sul?
E por falar em ética, em exemplos, em probidade, recorde-se que no a 5 de Junho de 2014, como revelou Rafael Marques de Morais, o então director nacional do Património do Estado, Sílvio Franco Burity, requereu com sucesso ao governador provincial do Cuanza Sul (general Eusébio de Brito Teixeira, pois claro), a legalização de 8 974 hectares para os seus projectos privados de agro-pecuária.
O terreno em causa está situado na comuna de Quimbalanga Haco, no município do Mussende, e divide-se em duas áreas contíguas. Na primeira, de 4 751 hectares, Sílvio Franco Burity apresentou o requerimento na qualidade de representante da empresa privada Grano Gado Lda. O governante detinha formalmente metade das acções da Grano Gado, enquanto o seu sócio e administrador da empresa, Manuel dos Santos da Silva Ferreira, detinha a outra metade.
Indiferentes à legislação em vigor, quer pela impunidade quer pela arrogância, usaram o princípio constitucional de que a terra pertence ao Estado, assim se apoderando dela para fins privados. Do ponto de vista legal, a negociata entre Sílvio Franco Burity e o general Eusébio de Brito Teixeira violou a Lei da Probidade. Compete à Direcção Nacional do Património do Estado, um órgão executivo do Ministério das Finanças, a inventariação, o controlo e a orientação, entre outros, dos órgãos da administração local, incluindo os afectos aos da província do Cuanza Sul.
A Lei da Probidade estabelece que “a actuação do agente público deve ser orientada para o interesse comum, à margem de qualquer outro facto que exprima ou favoreça posições pessoais, familiares, corporativas ou quaisquer outras que colidam com o interesse público”.
Por outro lado, a mesma lei define como acto conducente ao enriquecimento ilícito a aceitação de emprego ou consultoria para terceiros, no caso de estes poderem beneficiar da acção ou omissão “decorrente das atribuições do agente público, durante a actividade”.
A Grano Gado tinha um sócio-gerente, que poderia perfeitamente ter apresentado o requerimento, mas Sílvio Franco Burity assumiu-se como o verdadeiro gerente da empresa e usou a sua condição de servidor público para agilizar a legalização dos terrenos. De forma astuta, o sócio do director nacional do Património do Estado, Manuel dos Santos da Silva Ferreira, também requereu, no mesmo dia, a 5 de Junho, mais 2 913 hectares de terra, a sul do terreno solicitado por Sílvio Franco Burity, em nome da Grano Gado.
A norte, o terreno requerido pelo referido sócio confina com o terreno pessoal do director nacional. Ou seja, a dupla ocupou um terreno contíguo com 11 887 hectares. Com o referido esquema, os sócios cometeram o que, na altura, o jurista Rui Verde descreveu como “uma fraude à lei que proíbe a concessão de direitos fundiários superiores a 10 000 hectares sem aprovação do Conselho de Ministros”.
Com a Constituição de 2010, cabe exclusivamente ao presidente da República aprovar uma concessão superior a 10 000 hectares. Como podia Sílvio Franco Burity exigir, no exercício das suas funções, a prestação de contas sobre o património do Estado sob tutela do general Eusébio de Brito Teixeira, se este lhe faz o “favor” de lhe conceder terras em tempo recorde? Não é estranho o facto de o governador do Cuanza Sul ter abocanhado, em menos de dois anos, mais de 300 quilómetros quadrados de terra, na província sob seu domínio, ou seja, uma extensão territorial equivalente a 34 cidades do Kilamba?
No mesmo período, e apenas para a família presidencial, o governador legalizou perto de 350 quilómetros quadrados de terra. É o princípio corrompido da máxima segundo a qual “uma mão lava a outra”.
O jurista Manuel Neto entende que as leis angolanas “servem mais para mostrar ao Ocidente que temos um estado de direito democrático com leis modernas”.
Nessa altura o Maka Angola contactou o gabinete do director nacional do Património do Estado, Sílvio Franco Burity, para conhecer a sua reacção formal, mas não obteve resposta.
Por sua vez um especialista em agronomia criticou grandes concentrações de terra na mão de apenas alguns indivíduos: “Este é um mal que vem do tempo colonial, quando apenas se cultivava dez por cento da área cedida, em média. Agora é menos de um por cento”. Para o especialista, ”o único impacto positivo é a criação de emprego, embora muitos paguem mal e tratem os trabalhadores pior do que no tempo colonial”.
Por despacho exarado pelo Ministro das Finanças (Archer Mangueira, que manteve a pasta por decisão de João Lourenço) emitido a 29 de Dezembro de 2016, Sílvio Franco Burity foi nomeado Presidente do Conselho de Administração da Administração Geral Tributária.