O activista Rafael Marques de Morais divulgou hoje que participou à Procuradoria-Geral da República a violação da Constituição pelo general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa”, ao acumular a administração de uma empresa privada com o cargo de ministro.
Segundo o texto da participação (aqui publicado na íntegra), com data de hoje e dirigida ao procurador-geral da República, João Maria de Sousa, o activista refere que o general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa”, ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, “viola claramente a Constituição e a lei” ao assumir, desde Janeiro deste ano, a administração da sociedade comercial “Consultadoria Baía Limitada”, com sede em Macau, China.
“Acreditamos que só a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos por cinco anos e o pagamento de multa de cem vezes o valor da remuneração anual recebida poderão colmatar esta ofensa grave à Constituição e ao princípio da legalidade”, lê-se no texto da participação entregue na PGR, em Luanda.
O processo está documentado com os estatutos da referida sociedade privada, que constam da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, conforme investigação feita pelo também jornalista angolano.
A participação apresentada por Rafael Marques de Morais defende que o caso representa uma “violação expressa” do artigo 138.º, n.º 2, da Constituição da República de Angola, que proíbe aos ministros “o exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins de natureza económica”.
A sociedade em causa visa a prestação de serviços de consultoria e foi constituída a 26 de Janeiro de 2016 pelo general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa” e pela sua mulher, tendo sede em Macau. O “casal de sócios detém quotas iguais na sociedade, cuja actividade teve início no mesmo dia”, lê-se ainda.
Rafael Marques de Morais acrescenta que para a celebração do acto de constituição da empresa ambos os sócios emitiram uma procuração em nome de um advogado macaense, Barry Shu Mun Cheong, que “foi reconhecida a 6 de Janeiro de 2016 pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola”.
“Não se trata, pois, de um lapso ou de um esquecimento, mas de um acto voluntário expresso e confirmado”, refere ainda a participação, afirmando que, “além dos poderes normais de gestão”, ambos os administradores podem, segundo os estatutos, por exemplo, “abrir e encerrar contas bancárias para a sociedade e nelas fazer depósitos, levantamentos e transferências de dinheiro, nomear e alterar as pessoas autorizadas a movimentar essas contas bancárias e a sua forma de movimentação”.
“A partir desta amplitude de poderes que é atribuída a ambos os administradores, torna-se evidente que o seu desempenho [na empresa privada] é estritamente executivo”, escreve a participação entregue por Rafael Marques de Morais.
A queixa recorda ainda uma participação anterior, em que o mesmo general foi denunciado ao Ministério Público (MP) por ter integrado a administração da sociedade privada WWC, tendo depois “renunciado ao cargo com a entrada em vigor da Constituição da República de Angola”, em 2010.
“Ora, foi devido a esta demissão que nos autos deste processo o MP exonerou o general ministro de Estado de qualquer responsabilidade por conflitualidade entre interesses privados e a qualidade de servidor público”, aponta a participação, para justificar esta nova denúncia.
Texto da queixa apresentada
À Procuradoria-Geral da República
Palácio da Justiça
Luanda
Digníssimo Procurador-Geral da República
General João Maria Moreira de Sousa
Luanda, 05 de Dezembro de 2016
Assunto: Participação de incompatibilidade nos termos e para os efeitos dos artigos 186.º e 138.º n.º 2 da CRA, bem como dos artigos 3.º, 4.º, 24.º, 31.º, n.º 1 a) e 32.º da Lei da Probidade Pública.
Rafael Marques de Morais [dados pessoais omitidos] vem apresentar a seguinte participação nos termos e para os efeitos dos artigos 186.º e 138.º n.º 2 da Constituição da República de Angola (CRA), bem como dos artigos 3.º, 4.º, 24.º, 31.º, n.º 1 a) e 32.º da Lei da Probidade Pública (LPP-Lei n.º 3/10, de 29 de Março) contra Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, pelo facto de, ao mesmo tempo que ocupa estas funções públicas, ser administrador da sociedade comercial “Consultadoria Baía Limitada”, com sede em Macau, China.
I – Fundamentação e legitimidade do acto de participação
1º
O Ministério Público (MP) tem como função superiormente determinada pela Constituição a defesa da legalidade democrática (art.º 186.º da CRA), devendo para esse efeito desenvolver todas as iniciativas jurídicas em direito permitidas.
2º
O MP por inciso constitucional está vinculado a critérios de objectividade e legalidade (art.º 185.º n.º 2 da CRA). Assim, face a uma situação ilegal que ocorra na esfera do Estado, tem obrigatoriamente de agir.
3º
A situação que aqui apresentamos reporta-se à violação expressa do artigo 138.º, n.º 2 da CRA, que proíbe aos Ministros de Estado e Ministros “o exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins de natureza económica”.
4º
Face a esta violação, impõe-se a actuação do MP, seguindo a doutrina por este expressa no Despacho emitido no processo do Inquérito Preliminar n.º 06 – A/2012, a fls.432, em que se procedeu ao arquivamento da participação relativa a determinado Ministro de Estado porque este tinha renunciado a um cargo de gerente devido às incompatibilidades previstas na CRA. É esta situação que hoje se repete.
5º
Vejamos a doutrina expendida pelo MP no supra referido Despacho, a fls. 456: “O General MANUEL HÉLDER VIEIRA DIAS JÚNIOR é dos denunciados o único que integrou a Administração da sociedade WWC, S.A., mas de facto nunca exerceu funções executivas, mas que já não integra, tendo renunciado ao cargo com a entrada em vigor da Constituição da República de Angola.” Antes, o MP, a fls. 431, já tinha estabelecido o seguinte: “O General MANUEL HÉLDER VIEIRA DIAS JÚNIOR renunciou ao cargo de Administrador, pois a actual Constituição da República de Angola, no seu art.º138, n.º 2), al. b), veio consagrar a incompatibilidade do cargo de Ministro de Estado com o exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins de natureza económica.” Ora, é devido a esta demissão que nos autos deste processo o MP exonera o General Ministro de Estado de qualquer responsabilidade por conflitualidade entre interesses privados e a qualidade de servidor público.
6º
A contrario sensu, deriva directamente das palavras escritas nestes autos pelo Magistrado Domingos Salvador André Baxe que, continuando Manuel Júnior como Ministro de Estado e Administrador da referida WWC, SA, estaria numa situação proibida expressamente pela Constituição, o que implicaria o seu sancionamento.
7º
Acresce que a Lei da Probidade Pública, no seu artigo 4.º, impõe a todos os agentes públicos o respeito pela Constituição e pela Lei, considerando no artigo 24.º como “Acto contra os princípios da Administração Pública” aqueles que violem os deveres de legalidade. E, no artigo 31.º n.º 1, sanciona os responsáveis por esse tipo de actos com a “perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por três anos a cinco anos, pagamento de multa de até cem vezes o valor da remuneração recebida pelo agente”.
8º
É nossa convicção que o caso que ora apresentamos corresponde a essas tipificações jurídicas, pelo que fazemos esta participação nos termos do artigo 32.º da LPP, entregando as informações sobre os factos e a sua presumível autoria, bem como a indicação de provas de que temos conhecimento.
II – Os factos
9º
A 26 de Janeiro de 2016, o general Manuel Hélder Dias Vieira Júnior “Kopelipa” e a sua mulher, Luísa de Fátima Geovetty, constituíram em Macau, para prestação de serviços de consultoria, a empresa Baía Consulting Limited (ver Documento Anexo intitulado “Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis”, que contém extracto do acto constitutivo e Estatutos da Sociedade).
10º
A sede da Baía Consulting Limited está situada na Avenida da Praia Grande, n.º 763, Edifício Lun Pong, 7.º andar A.
11º
O casal de sócios detém quotas iguais na sociedade, cuja actividade teve início no mesmo dia.
12º
Para a celebração do acto de constituição da empresa, Manuel Vieira Júnior e a mulher emitiram uma procuração em nome de um advogado macaense, Barry Shu Mun Cheong.
13º
Essa procuração foi reconhecida a 6 de Janeiro de 2016 pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola, através da primeira ajudante do Quarto Cartório Notarial de Luanda, Ana Paula Gomes Germano.
14º
Os administradores da sociedade são ambos os sócios: Manuel Hélder Vieira Dias Júnior e a sua mulher, Luísa de Fátima Geovetty.
15º
Estes aceitaram expressamente a sua nomeação como administradores, através de declaração pública de 26-01-2016, que consta na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau.
16º
Não se trata, pois, de um lapso ou de um esquecimento, mas de um acto voluntário expresso e confirmado.
17º
Além dos poderes normais de gestão, ambos os administradores podem, entre outros, abrir e encerrar contas bancárias para a sociedade e nelas fazer depósitos, levantamentos e transferências de dinheiro, nomear e alterar as pessoas autorizadas a movimentar essas contas bancárias e a sua forma de movimentação, incluindo serviços de banca pela internet, e realizar uma detalhada lista de tarefas que está espelhada no artigo sétimo dos Estatutos, n.º 2, alíneas a) a j).
18º
A partir desta amplitude de poderes que é atribuída a ambos os administradores, torna-se evidente que o seu desempenho é estritamente executivo.
19º
Em concreto, as funções que Manuel Júnior ocupa são executivas, atendendo à natureza dos poderes que lhe são conferidos e também ao facto de os Estatutos da sociedade não fazem qualquer distinção entre executivo e não executivo, podendo-se portanto concluir que ambos os administradores são executivos.
20º
Mesmo que assim não fosse, tal seria irrelevante à luz da Constituição Angolana, pois esta proíbe qualquer exercício de funções em qualquer empresa privada, seja na administração, seja noutro órgão qualquer, pelo que a natureza executiva das funções não assume qualquer peso na tipificação legal. Como ensina o velho brocardo latino, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.
21º
De acordo com os Estatutos da referida sociedade comercial, os administradores – Manuel Vieira Júnior e a sua mulher – têm mandatos de duração ilimitada, pelo que neste momento ainda exercem funções na empresa.
22º
Manuel Hélder Dias Vieira Júnior “Kopelipa” é Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República (Cfr. Decreto Presidencial n.º 199/12 de 2012.09.28).
III – O direito
23º
Manuel Hélder Dias Vieira Júnior ocupa a função de Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República desde 29 de Setembro de 2012, já em plena vigência da Constituição de 2010.
24º
Em 26 de Janeiro de 2016, constituiu e tornou-se administrador de uma sociedade comercial, emitindo uma declaração de aceitação dessa nomeação.
25º
Tal facto viola expressa e manifestamente a CRA e o princípio da legalidade como determinado na LPP.
Conclusão
Pelo exposto, ao assumir a administração de uma sociedade comercial em 26 de Janeiro de 2016, o Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República viola claramente a Constituição e a Lei.
Acreditamos que só a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos por cinco anos e o pagamento de multa de cem vezes o valor da remuneração anual recebida poderão colmatar esta ofensa grave à Constituição e ao princípio da Legalidade.
Junta-se como prova:
Registo do Empresário Comercial-Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, Ap.97/27012016
Com Lusa
Fotos: Folha 8