Haverá por aí alguma resposta simples e acessível à pergunta: quem é o intelectual? Talvez sim, talvez não. Depende dos paradigmas da abordagem. Não há um identikit em três D da figura do intelectual, mas existem variados elementos que podem ajudar a fazer a sua construção mental ou racional.
Por Raul Tati
Não aprecio muito partir de definições estereotipadas da realidade. Identifico-me mais como um construtivista do ponto de vista filosófico, navegando algures numa lógica indutiva. Na busca da verdade teórica, penso ser mais escorreito mergulhar na realidade, observá-la e interpretá-la do que partir do mundo platónico das ideias eternas para aferir deduções.
Quando ficamos agarrados ao jogo das definições, daí ao dogmatismo (magister dixit) é só mais um passo. O construtivismo gnoseológico, pelo contrário, é uma empreitada do espírito livre que não se deixa acorrentar pelos grilhões da sabedoria convencional, das verdades consagradas ou estandardizadas.
Aquilo que pensamos saber é continuamente questionado dentro de uma dinâmica cognitiva longe da atomização do conhecimento e dando-lhe um carácter de “fieri” e não de “factum”´. O conhecimento deve ser constantemente confrontado, por isso Sócrates chegou à conclusão lapidar de que “só sei que nada sei”. Noutros termos, o saber não é algo adquirido como se adquirem coisas materiais, mas é uma contínua navegação no âmbito da “adequatio intellectus ad rem” (S. Tomás d’Aquino).
Não sei quem inventou os diplomas e os títulos académicos e quais foram as suas razões. Isto não deixa de ser um problema na medida em que o modernismo pós-clássico transformou o indivíduo numa espécie de “mónada”´ do conhecimento científico onde as especializações passaram a ter um pendor funcionalista e utilitarista. A pessoa representa uma peça dentro de uma máquina – a sociedade politica – onde tem de desempenhar uma única função que lhe está reservada na engrenagem. Puro mecanicismo!
Acabou-se com o universalismo clássico onde os vários saberes se cruzavam numa única individualidade. A matemática, a gramática, a música, a astrologia, a medicina e a filosofia eram saberes comuns no Egipto faraónico, na Mesopotâmia ou na Grécia. O especialismo moderno que está a robotizar cada vez mais a pessoa humana em função da nova religião (o capital) vai mutilando, de algum modo, a nossa capacidade de abarcar vários domínios do saber.
Depois deste preâmbulo, voltemos à nossa pergunta inicial. Pode parecer um exercício fútil responder à mesma. Supostamente todos sabem quem é o intelectual. Lá está o vicioso problema da sabedoria convencional. Vou fugir desta tentação. O conceito de «intelectual» que aqui trago alinha na esteira do renomado linguista e cientista social americano, Noam Chomsky (in «Quem Governa o Mundo»:2016). Este autor expõe alguns casos práticos da sociedade oitocentista gaulesa onde o conceito em causa ganhou particular relevância com o ‘’Manifesto dos Intelectuais’’ (1898) elaborado pelos dreyfusistas (defensores de Alfred Dreyfus, oficial da artilharia francesa) inspirados pela carta de protesto que Émile Zola endereçara ao presidente da França na sequência da incriminação feita contra aquele oficial por traição.
Chomsky, diante disto, afirma que «o posicionamento dos deyfrusionistas traduz a imagem do intelectual enquanto defensor da justiça, confrontando o poder com coragem e integridade». Só que nesse período, diz ainda, «o intelectual não era visto como tal». O problema é que os deyfrusistas não passavam de uma minoria no seio das classes instruídas. Daí «foram alvo de uma implacável censura na corrente dominante da vida intelectual, em particular por figuras proeminentes da “Académie Française”. Estes consideravam-nos como “anarquistas da tribuna académica”.
Citando Ferdinand Brunetière, avança ainda que a própria palavra “intelectual” significava «uma das mais ridículas excentricidades do nosso tempo – quero eu dizer, a pretensão de fazer ascender escritores, cientistas, professores e filólogos ao estatuto de super-homens» que ousam «tratar os nossos generais como idiotas, as nossas instituições sociais como absurdas e as nossas tradições como pouco saudáveis». É aqui então que Chomsky coloca a questão que, entretanto, não responde: «Quem eram então os intelectuais? A minoria inspirada por Zola (que foi condenado à prisão e fugiu do país) ou os imortais da academia?»
Mudam-se os tempos… criam-se doutores
Trazendo esta reflexão para a realidade angolana, nos primórdios da independência de Angola e no contexto da euforia revolucionária inspirada no catecismo marxista-leninista, ser intelectual era sinónimo de burguês e, logo, reaccionário. A vanguarda revolucionária estava nos operários (proletariado) e camponeses.
Com a queda da União Soviética e do socialismo real do Leste, o catecismo marxista-leninista foi substituído pelo catecismo da democracia liberal de selo ocidental. Veio ao de cima o papel dos intelectuais como novos sacerdotes do templo da democracia.
A democracia é uma barganha de ideias e teorias, por isso quem melhor do que os intelectuais para exercer o papel de arautos ou pregoeiros da nova doutrina?
A vanguarda da democracia já não está nos operários e nos camponeses. Agora o país precisa de juristas, sociólogos, historiadores, politólogos, engenheiros, escritores, etc.. Instalou-se a segunda república que é a república dos doutores. Ser doutor hoje em Angola não é uma questão de ciência, mas é uma questão de estatuto. Daí a massificação do ensino superior onde todos podem ir no encalço do canudo, mesmo sem qualquer competência científica. Se se não consegue por via do mérito, consegue-se por outras vias: o importante é exibir o diploma e ser chamado de doutor (claro, doutores de cartolina!).
A nossa democracia doméstica precisa de um escol de doutores para discutir os problemas mais complexos do país, para equacionar as políticas públicas, para formar a opinião pública, para apregoar as virtudes da democracia e para construir a cidadania consciente e participativa. Pasme-se! É uma grande empreitada! A rádio, a televisão e a imprensa passaram a ser as tribunas desta classe intelectual que se distribui pela academia, partidos políticos, associações cívicas, igrejas, ONG, etc., procurando passar a mensagem do estado de direito, da reconciliação nacional, da paz, da justiça social, do respeito pelos direitos, liberdades fundamentais e garantias dos cidadãos, etc..
Tendo em conta este cenário, a realpolitik da máquina político-partidária no poder em Angola há mais de quarenta anos serve-se dessa classe (dos intelectuais) para as suas reciclagens sazonais no intuito de se perpetuar no poder. É uma manobra política chamada de clientelismo.
Ora diante dessa situação temos em Angola intelectuais de três categorias: os clientes do regime, os dissidentes e os neutralistas. Os primeiros são os apologistas ajuramentados do regime. Haja chuva ou faça sol não mudam de opinião em relação ao poder político e ao seu desempenho. Estão sempre prontos a defender até o indefensável. Têm apoio e protecção do regime e gozam do seu beneplácito para as promoções em carreiras públicas. Estes seriam os “antidefreyfusistas” ou os “imortais da academia”, se quisermos usar a alegoria de Chomsky.
Os segundos são os que contestam a manutenção do status quo. Pretendem mudanças profundas em Angola e o fim do actual regime. Dão a cara e o nome e estão dispostos a pagar pelas suas opiniões progressistas com a censura, o degredo, o ostracismo e até a morte.
Intelectuais para todos os gostos e necessidades
Comparando as duas classes, os primeiros movem-se, regra geral, por interesses pessoais e imediatos enquanto que os segundos se movem, também regra geral, pelo bem comum e pelos interesses da nação. São considerados “hereges” ou criaturas perigosas que desafiam a autoridade e põem em causa a ordem estabelecida.
Infelizmente, como diz e bem Chomsky, «O padrão de louvor e punição repete-se ao longo da história: aqueles que se unem ao serviço do Estado são, por norma, louvados pela comunidade intelectual em geral, e aqueles que se recusam a unir-se ao serviço do Estado são punidos».
Os terceiros são os resignados diante da situação. Não apoiam, mas também não criticam. Não se engajam em nada contribuindo assim para a manutenção do status quo. Na linguagem bíblica, estes são aqueles que não são nem quentes nem frios e só servem para serem vomitados.
Já que os intelectuais do regime são «os principais arquitectos» da política governamental, segundo Chomsky, e estando despidos de uma ética humanista centrada na categoria tomista de BEM COMUM, regem a sua conduta pela vil máxima: «Tudo para nós e nada para os outros».
Como de tempos a tempos o regime precisa de ser escrutinado nas urnas para dar ao Estado a aparência de uma democracia estável e funcional, os intelectuais do regime constituem a tropa da linha da frente em prontidão para cilindrar quaisquer heresias políticas que possam beliscar os sacrossantos interesses instalados no Kremlin. Os folgadíssimos resultados das urnas em seu favor – obtidos de modo fraudulento – “legitimam” não apenas a perpetuidade do regime, mas também a sua indispensabilidade e insubstituibilidade.
Com o seu triunfo eleitoral instala-se a razão da maioria. Esta governa, determina, decide em tudo e acerca de tudo porque quem ganha as eleições ganha tudo e quem as perde tudo perde. A voz dos intelectuais dissidentes torna-se então uma dissonância do coro oficial. Por isso são selectivamente combatidos e anatemizados. Esta é a sorte reservada a este “resto de Israel” que não vende a consciência por um prato de lentilhas, que nunca abdica das suas causas e transporta sempre consigo a esperança da ”nova Jerusalém” e da restauração da ordem política actual inquinada por poderes maléficos e deletérios.