Mais do que os processos mediáticos, a boa administração da justiça depende dos processos quotidianos, respeitantes a pessoas desconhecidas. O verdadeiro espelho da injustiça em Angola são justamente estes processos.
Coube, mais uma vez, ao juiz Januário Domingos da 14ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda , detentor de triste fama devido ao processo dos 15+2, protagonizar uma intervenção calamitosa num processo criminal.
Joel Neves, um jovem de 18 anos, terá, em companhia de outros cinco indivíduos, participado no roubo de um telemóvel, perpetrado sob ameaça de uma faca de cozinha. Quatro deles encontram-se a monte. Adilson José Marques, de 19 anos, é outro dos detidos. Não se sabe sequer se foi Joel ou Adilson quem brandiu a faca de cozinha e que participação teve na acção criminosa.
Portanto, desde logo, este caso está comprometido pela ausência de nexos causais adequados e individualização das culpas, procedimento que vem sendo habitual nas acusações do Ministério Público. Alguém viu Joel ou Adilson a empunhar a faca? A faca tem as impressões digitais dele?
Segundo apurou o Maka Angola, o exame do corpo de delito resumiu-se a determinar se a faca era de mesa ou de cozinha. Ademais, o telemóvel valia dez mil kwanzas (18 dólares ao câmbio informal do dia), foi recuperado pela polícia e entregue à vítima. A vítima não apresentou queixa.
Por estes factos, Joel Neves e Adilson Marques estão em prisão preventiva desde 22 de Setembro de 2015 – há nove meses. Desde já se salienta que a Lei das Medidas Cautelares permite a prisão preventiva até quatro meses sem acusação e até seis meses sem pronúncia. Comprova-se, por isso, que o prazo foi ultrapassado pelo menos a partir de 22 de Março de 2016, e não houve qualquer despacho, nem a acrescer o prazo nos termos do artigo 40.º, n.º 2 da Lei das Medidas Cautelares, nem a libertar o réu, como era obrigatório.
Apenas a 25 de Abril, o juiz José Januário Domingos, que recebeu a acusação, veio então ordenar a “liberdade provisória” dos réus. Procedeu bem o juiz, ao ordenar a libertação, embora seja necessário desde já chamar a atenção para o facto de o conceito de “liberdade provisória” ter deixado de existir para efeitos da Lei das Medidas Cautelares. A liberdade é permanente, só a prisão é provisória.
Infelizmente, a partir daqui, o juiz Januário, na nossa opinião, procedeu mal. E procedeu mal porque aplicou uma caução de um milhão de kwanzas a Joel Neves e outro do mesmo valor a Adilson Marques. Dois milhões de kwanzas para um crime referente a um bem recuperado no valor de dez mil kwanzas.
Prescreve o artigo 18.º da Lei das Medidas Cautelares que as medidas de coacção têm de ser proporcionais à gravidade da infracção. Ora, qual é a proporção que existe na aplicação de uma caução de dois milhões para quem terá furtado (e devolvido) um objecto no valor de dez mil? Trata-se de uma caução 200 vezes superior ao objecto! Este princípio já foi suficientemente densificado no Acórdão n.º 384/2016 do Tribunal Constitucional de Angola, e por aí se vê que tal caução não tem cabimento.
Poder-se-ia dizer que Joel Neves é um perigoso criminoso com cadastro e perigosidade comprovada, o que justificaria tamanha injunção. Não é o caso. Trata-se de um jovem que foi abandonado pelos pais aos dois anos de idade.
Mas, e este é o segundo erro grave do juiz Januário, a aplicação da medida de coacção nem sequer foi fundamentada. Ora, a falta de fundamentação da medida de coacção implica a sua irregularidade (conferir os artigos 19.º e 21.º da Lei das Medidas de Coacção). Estamos assim perante uma coacção desproporcionada, sem fundamento: estes actos por parte de magistrados judiciais levam a que se tema, e muito, a capacidade do sistema judicial angolano.
Acresce que a aplicação de uma caução tem de ter em consideração a gravidade do crime, o dano causado e o estatuto económico-financeiro do arguido (artigo 28.º da Lei das Medidas Cautelares). Que factores teve em conta o juiz Januário? Terceiro erro grave. Não se sabe se teve em consideração o dano causado ou a condição económica do arguido. E isto é ilegal.
Mas, pior do que tudo, no dia 15 de Junho de 2016, dois meses depois do despacho do juiz, Joel Neves e Adilson Marques ainda se encontram detidos! A lei é clara, novamente: o Artigo 42.º diz que, findo o prazo de prisão preventiva, o arguido tem de ser imediatamente restituído à liberdade. Não tem de pagar primeiro qualquer caução. Neste momento, Joel Neves e Adilson Marques estão presos ilegalmente.
Resumindo, não basta aprovar leis “bonitas” e plenas de “boas intenções”. É forçoso aplicá-las bem e treinar os magistrados e todos os agentes judiciais para a sua correcta e sã efectivação.
Quantas famílias não estarão a sofrer pela arrogância, o descaso ou ignorância face às leis que o juiz Januário Domingos parece demonstrar contra aqueles que por si são julgados?
Maka Angola