O activista pelos direitos humanos em Cabinda, José Marcos Mavungo, libertado em Maio depois de mais um processo ditatorial das autoridades de Angola, não acredita que o anunciado afastamento do Presidente José Eduardo dos Santos (há 37 anos no poder sem nunca ter sido nominalmente eleito) signifique uma real mudança e realça o “passivo muito forte” do regime.
Em entrevista à Lusa, em Lisboa, onde se encontra por razões de saúde resultantes de sofrimento que sofreu na cadeia, Marcos Mavungo, que esteve mais de um ano preso após ter sido condenado por rebelião nunca provada, afirma que “o regime não está predisposto a acolher as mudanças de uma forma pacífica”.
José Marcos Mavungo foi detido a 14 de Março de 2015, depois de ter organizado uma manifestação em defesa dos direitos humanos em Cabinda, tendo sido condenado, em Setembro do mesmo ano, a seis anos de prisão, pena que foi revogada por decisão do Tribunal Supremo angolano, a 20 de Maio de 2016.
Mavungo admite que a saída (a acontecer) de cena do actual Presidente angolano destrói o “mito de que José Eduardo dos Santos é o único que pode governar, o único que pode estar à frente do país”.
Mas prefere “primeiro ver, para poder acreditar”, já que o regime “tem um passivo muito forte, que o persegue”. Angola é “um país escandalosamente rico, onde todos deviam viver bem”, mas, “durante os últimos anos (…) de vacas gordas” não se investiu em sectores-chave da indústria e da economia. Ao contrário, “constatou-se que o excedente do petróleo, mais de um bilião e 200 milhões desapareceu dos cofres do Estado”, critica.
Se se confirmar que o candidato do MPLA, partido que está no poder há 41 anos, será João Lourenço, um militar cuja fidelidade ao Presidente é bem conhecida, não se pode “esperar um Estado de Direito democrático, onde (…) as leis do cívico (…) não são respeitadas por todos”, considera. “Desde 1975, Angola é um país militarizado” na governação, na justiça, na economia.
Seja qual for o cenário, Mavungo acredita que a contestação social aumente. “A imagem do regime está desgastada, a imagem do Presidente da República, de todos aqueles que o acompanharam neste feroz despotismo feudal, todos eles têm uma imagem desgastada. Depois também já não têm a autoridade moral (…), já perderam o senso da justiça e da dignidade humana”, considera.
“O medo é a forma de governação em Angola. Neste momento, o angolano tem no corpo a estrutura do medo, a estrutura despótica. Há este medo, mas também, por detrás deste medo, existe um pequeno rebanho, (…) que acredita na justiça, no desenvolvimento, na dignidade humana”, destaca Marcos Mavungo.
“A Igreja devia fazer mais”, entende Marcos Mavungo, notando, porém, que “algumas personalidades fazem um bom trabalho”.
Para o activista, “há cada vez mais a consciência de que as pessoas devem desfazer-se do medo”, mas “é uma luta difícil, não é fácil combater uma ditadura”.
Hoje, “o regime está com a corda na garganta, a economia está praticamente na bancarrota, faltam de divisas, a pobreza é galopante, a taxa de desemprego é levada”,.
Mavungo está “a tentar” recompor-se dos seus problemas de saúde em Portugal. Saiu doente da prisão, onde dormia num parlatório, sem privacidade e com “muito barulho”, o que o afectou psicologicamente.
Quer “voltar a Cabinda e continuar a luta” logo que possa. A situação actual é “intolerável, a pobreza, a repressão o roubo do erário público, a desgovernação”, justifica.
Diz-se que se fez justiça em relação ao seu caso. “Na verdade, não foi o tribunal que me absolveu, foi o próprio regime, que deu instruções ao tribunal para que me libertasse”, considera, acrescentando e enaltecendo o papel da “pressão internacional”.
Mavungo não deixa de lembrar, porém, que há casos pendentes no Tribunal Supremo há uma década: “Num Estado de Direito democrático, por pouco que se mate um cidadão, um cidadão ainda é muito, mesmo quando se mata um gato ou se abate uma árvore, as instituições da governação e da justiça agem, o que não é caso para Angola”.
“No meu regresso, tudo é possível. Posso ser detido e voltar à prisão, posso até ser morto. Estou preparado para tudo isto. Neste momento, em Angola, é necessário o sacrifício”, assume. “O único medo que tenho, neste momento, é não assumir a minha responsabilidade como ser humano”, resume Mavungo.
A história da liberdade cívica
Recorde-se que o Tribunal Supremo ordenou a absolvição de José Marcos Mavungo, cidadão que havia sido condenado, em primeira instância, pelo Tribunal Provincial de Cabinda, a seis anos de prisão maior por suposta e nunca provada incitação à rebelião e à violência, acrescido de uma multa de 50 mil kwanzas de taxas de justiça.
Após analisar o recurso interposto pela defesa, o colectivo de jurados da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que é liderada pelo Juiz Conselheiro Simão de Sousa Victor, concluiu que não existiam factos concretos relativamente aos crimes pelos quais foi acusado.
A condenação pelo Tribunal Provincial de Cabinda foi pronunciada em Setembro de 2015, seis meses depois da sua detenção. E foi no uso de um direito que, em teoria, assiste a todos os cidadãos, de recorrer de uma decisão proferida nos tribunais de primeira instância, que a equipa de advogados de defesa de José Marcos Mavungo interpôs recurso junto do Tribunal Supremo, como a mais alta instância dos tribunais de jurisdição comum.
Relembre-se que, entre outros organismos, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenções Arbitrárias (UNWGAD) exigiu a “libertação imediata” do activista dos Direitos Humanos José Marcos Mavungo, considerando “arbitrária” e “violadora” da lei internacional a detenção e condenação.
Num comunicado, a instituição da ONU, além de exigir a libertação, pediu ao Governo de Luanda que pagasse uma indemnização a Marcos Mavungo, detido sob a acusação de “rebelião” por ter organizado uma manifestação para protestar pacificamente contra as violações aos Direitos Humanos e a “má governação” em Cabinda.
“A liberdade de expressão e a realização de manifestações pacíficas são fundamentais para a democracia e ninguém deverá ser detido por exercer legitimamente esses direitos”, disse Paulette Brown, presidente da American Bar Association (ABA), que integra o Grupo de Trabalho da ONU.
O tribunal de Cabinda julgou José Marcos Mavungo acusando-o da prática de um crime de rebelião contra o Estado. Provas? Nem vê-las. Mas para o regime não são precisas. Basta o regime dizer que existem.
Marcos Mavungo foi acusado pelo Ministério Público do regime angolano da prática de um crime de rebelião contra o Estado e também de incitar à violência e do uso de material explosivo, que a polícia, alegadamente, recuperou na véspera de uma manifestação agendada para 14 de Março de 2015, em Cabinda.
Em declarações à DW África em Cabinda, Francisco Luemba – um dos advogados de Mavungo – disse que o Ministério Público não apresentou nenhuma prova concreta contra o seu cliente. Ou seja, o Ministério Público (do regime) continua igual a si próprio, pondo em prática a lei de que todos são culpados… até prova em contrário.
“Pelas declarações do capitão que realizou a operação, eles não encontraram qualquer elemento que permitisse imputar esse material (explosivos e panfletos) a Marcos Mavungo ou aos organizadores da marcha, ou ainda aos ex-responsáveis da ONG Mpalabanda,” garantia Francisco Luemba.
Francisco Luemba afirmou ainda que a outra parte dos panfletos que “dizem terem sido distribuídos em algumas artérias da cidade, só foram encontrados por dois ou três agentes da polícia nacional”. E o advogado considera estranho que os panfletos distribuídos “fossem visíveis só por esses dois ou três elementos da polícia”.
O advogado de Marcos Mavungo sublinhou sempre que não foi estabelecida nenhuma relação entre esses panfletos e Marcos Mavungo.
A defesa constata ainda que das acusações do Ministério Público ficou provado que o oficial militar que assina o relatório não foi quem produziu o mesmo documento.
“Ele não conhece mais do que a parte, digamos operativa, o que foi encontrado que é da sua responsabilidade. Mas dali às decisões que são tomadas e que tem de ser feita uma participação contra os organizadores da marcha e os antigos membros da Mpalabanda, isso já é uma decisão da hierarquia, embora não exista nenhum elemento objectivo que permita fazer esse juízo”, destacava o advogado Francisco Luemba, para em seguida acrescentar que o material não foi submetido a qualquer exame, não houve qualquer diligência destinada a provar a origem do mesmo, quem o tinha na posse, para quem se destinava e o que é que essas pessoas deveriam fazer com esse mesmo material.
“Tudo isso não foi apurado e decidiram apenas que teria que ser imputado por um lado, aos organizadores da marcha e por outro, aos antigos membros da Mpalabanda”, sublinhou.
Um regime corrupto e incompetente
No dia 14 de Março de 2015 estava prevista, pelas 15 horas, a realização na cidade de Cabinda de uma manifestação para dar a conhecer a má governação e a violação dos direitos de cidadania naquela província.
Para o efeito, dando provas da sinceridade e da transparência dos seus desígnios, um grupo de activistas, liderado por José Marcos Mavungo, enviou uma missiva ao Governo Provincial de Cabinda, na qual anexaram o conteúdo de alguns dísticos que apresentariam no decorrer do evento, por exemplo: “Queremos a reabilitação da Mpalabanda – Acção Cívica de Cabinda, Cabinda é um povo com direito à liberdade e à dignidade”.
Erro dos activistas! Não levaram em conta que dar prova de sinceridade e transparência à espera de serem ouvidos e serem contemplados com uma resposta cordata é o mesmo que esperar o comboio num aeroporto.
No dia anterior à data da manifestação (13), aconteceu uma espécie de milagre inspirado naqueles que algumas seitas religiosas fabricam, foram apanhados em flagrante delito indivíduos que transportavam uma mochila com explosivos e panfletos arruaceiros. Os “terroristas” conseguiram – estrategicamente – fugir, mas ficou a mochila com a sua insignificância probatória.
Na noite desse mesmo dia, ó coincidência bendita!, insultuosos panfletos foram distribuídos pela cidade. Era demais, “Basta! Vamos prender esse Mavungo”. E prenderam-no no dia seguinte. À saída da missa. Não poderia haver melhor lugar.
O peso da acusação
A acusação que pesou sobre José Marcos Mavungo assentou sobre nada, a não ser a descoberta e apreensão dessa tal mochila contendo explosivos e panfletos que incitavam a violência.
Segundo o que consta nos autos deste processo, o resgate da referida mochila foi feito quando alguns indivíduos foram interpelados pelos Serviços de Inteligência (?) do Estado no dia 13 de Março nas imediações do bairro 4 de Fevereiro da cidade de Cabinda.
Aconteceu, porém, que a operação redundou num fracasso inexplicável, uma vez que só a mochila foi apreendida. Os indivíduos interpelados tiveram mais do que tempo de obedecer ao estabelecido e pôr-se em fuga e os policiais levaram a mochila sem terem a mais pequena ideia de onde ela vinha e de quem eram os seus transportadores.
Tal descuido, por parte de elementos que fazem parte de uma das instituições melhor treinadas de África, para não dizer do mundo, merece, pelo menos, alguns esclarecimentos sobre o modo como a “fuga” desses indivíduos aconteceu. Mas não vale a pena esperar que tal aconteça, fugiram e mais nada. Se é que tiveram necessidade de fugir. Coisas que acontecem a muita gente, mas praticamente nunca a quem tenha boné do MPLA.
Segundo o que o advogado de Mavungo declarou numa entrevista concedida à DW, “os explosivos nunca foram vistos nem nunca foram mostrados, nem ao réu, nem à defesa, mas, de acordo com as informações que nós encontrámos no processo, são blocos de TNT de 200 e 400 gramas, alguns metros de mecha lenta e de cordão detonante e cápsulas detonantes. Há também material de propaganda, material subversivo, como eles dizem. Seriam dez ou 11 panfletos (nos autos constam nove panfletos). Mas, até agora, não há nenhum exame ou qualquer elemento objectivo que permita relacionar este material com Marcos Mavungo”.
É elementar, claro está! Deixaram fugir, no decorrer de uma situação de suposto flagrante delito, aqueles que poderiam dar informações sobre o nome dos eventuais mandantes ou proprietários e a proveniência da dita mochila, transformando esta última em vírus sem anfitrião, ou seja, uma prova de crime inerte, sem valor provatório. A não ser que os explosivos estejam autografados ou… falem. Nunca se sabe.
“Vamos arrancar à força estes valores, se necessário for, usando a violência como forma de conquistar. A polícia nada poderá fazer contra a nossa vontade. Caso nos impeçam recorram à força com paus, pedras e catanas”; “Devemos arrancar a força do governo e do MPLA, o que nos pertence e pacificamente não é possível. O recurso tem que ser a força e é este o momento”.
Este são dois exemplos de conteúdos lavrados nos alegados panfletos, cujo autor foi identificado como sendo Mavungo. Ninguém sabe como, mas foi! Estariam, presume-se, assinados, tinham impressões digitais ou vestígios de ADN de Marcos Mavungo.
Nos autos consta também: ”O réu, dada a rejeição do evento, em gesto de ameaça e afronta, proferiu as afirmações segundo as quais, “A manifestação teria lugar, nem que fosse por força da ponta dos bayonetes”.
Falsidades da mais baixa estirpe
Esta afirmação apontada a Marcos Mavungo, saiu da boca – embora possa ter origem em qualquer outra parte do corpo – da governadora de Cabinda. Foi ela quem pronunciou essas palavras. Não se pode admitir que o juiz tome por palavra de Evangelho as declarações duma personalidade política demente e que usa artifícios torcidos a preceito para redourar os seus brasões ferrugentos junto do Executivo.
Em função de toda esta construção jurídica, feita sem contraditório, assente em presunções e agravada por intromissão de grosseiras mentiras no conteúdo da sua argumentação, o juiz concluiu que a manifestação teria de ser interdita por haver prováveis confrontos com possibilidade e probabilidade consideráveis de risco de poder haver perda de vidas humanas, ao mesmo tempo que, dada a sua postura, agressiva, Marcos Mavungo deveria permanecer encarcerado por uma questão de prudência. Em Angola, a justiça é isto!
As aventuras de um juiz na ilegalidade
Que a Justiça em Angola vai mal é por demais conhecido, mas que fosse tanto assim é que não. O Conselho Superior da Magistratura judicial e o Presidente do Tribunal Supremo, se quiserem – e puderem – ser honestos, em relação à doutrina do Direito teriam de tomar uma atitude de nobreza.
O juiz, quando colocou na pronúncia que o arguido decidiu realizar a manifestação quando esta não foi autorizada, demonstrou não ter competência para o exercício do cargo, uma vez o art.º 47.º ser claro:
1) “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei.
2) As reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos estabelecidos por lei.“
Ora, onde é que este (suposto) juiz tirou a necessidade de autorização, logo só isso em qualquer país do mundo, incluindo o Estado Islâmico, este juiz seria imediatamente demitido por ofender a justiça e demonstrar analfabetismo jurídico, merecedor de um repouso compulsivo.
Não podem ficar indiferentes, como se nada estivesse a passar num reino cada vez mais putrefacto, como é o da justiça, aplicada de acordo com as conveniências políticas e/ou com o engajamento dos juízes e procuradores pertencentes ao comité de especialidade dos juízes e procuradores do MPLA.
Quem lê a pronúncia do juiz Jeremias Sofera, não pode deixar de apanhar um enjoo e nojo ante total desconhecimento sobre a Constituição e a Lei. Isto, é claro, partindo do princípio de que um juiz deve conhecer a Constituição e a Lei.
Todos podemos ser desconhecedores de alguns meandros do direito, mas não se admite analfabetismo jurídico de quem foi um dia investido na pele de juiz, para aplicar justiça, interpretando fielmente a doutrina e as leis.
Ora não foi o caso do juiz provincial de Cabinda, por sinal, quadro castrense, pois antes esteve ligado à justiça militar e por altura da extinção da Mpalabanda, quando os juízes proeminentes de Cabinda foram transferidos “compulsivamente”, por alegadas ordens dos generais Manuel Hélder Vieira Dias Kopelipa e José Maria, para Luanda, colocando no seu lugar juízes dóceis, não importa se competentes, pois para julgar Cabindas ou a FLEC, qualquer servo serve para o caso.
Como é que alguém pode pronunciar-se às cegas partindo de presunções?
Um juiz, mesmo com o primeiro ano, mandaria o processo regressar para melhor instrução ou mesmo poderia não se pronunciar, por falta de clareza, ausência de flagrante delito e factos esponjosos, que não blindam a acusação e agora a pronúncia.
Quando um juiz diz que Marcos Mavungo disse que a manifestação sairia a bem ou a mal e outras invencionices, estas foram declarações da governadora e aqui não houve contraditório, para se apurar em que altura Mavungo disse aquilo. Mais uma vez a palavra de um elemento do MPLA, mesmo sendo mentira e uma sacanagem, tem força de lei.
Enfim, a derradeira pérola (The last, but not the least) é a de terem uns tipos sido avistados por diligentes agentes secretos, carregando sacos com TNT e não terem sido agarrados mas o produto que só a polícia viu e diz que os homens eram de Mavungo, mas sendo Cabinda uma cidade pequena como é que não conseguiram os homens aparecer à luz duma simples investigação?
Com juízes deste quilate, os amantes das liberdades e democracia nunca serão cidadãos iguais aos do MPLA e Angola vai continuar a ter uma casta isenta dos direitos mais elementares, ainda que constitucionalmente consagrados.
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