A libertação, até novas ordens de sua majestade o rei José Eduardo dos Santos, de Marcos Mavungo mostra que uma nova edição, mais cuidada, do 27 de Maio de 1977 está em cima de mesa do regime.
Por Orlando Castro
A situação em Cabinda, território anexado em 1975 por Angola, poderá ser o rastilho que o regime quer para, reeditando ou não a tese do fraccionismo, decretar uma limpeza de todos quantos pensam de forma diferente e querem que Angola seja uma democracia e um Estado de Direito.
Como os donos deste MPLA (quase todos discípulos directos de Agostinho Neto) não sabem viver longe da gamela do Poder, a existência activa da FLEC pode funcionar com justificação de uma nova guerra. E nesse caso, não será difícil ao regime limpar todo o país, alegando que os independentistas de Cabinda têm apoios em todos os recantos de Angola.
Recorde-se que um forte contingente das Forças Armadas e da Policia Nacional de Angola, em colaboração com os Serviços de Inteligência, impede todas as manifestação que presumam não ser apoio ao regime, não sendo Cabinda uma excepção. No caso de Marcos Mavungo, a manifestação que originou mais esta vergonha jurídica e pretendia denunciar os atropelos aos direitos humanos e a falta de transparência na administração do erário público em Cabinda.
Como foi o caso, mais uma vez o Governo de Angola entendeu que uma manifestação para denunciar o que se passa em Cabinda se enquadrava nos crimes contra a segurança do Estado.
Como primeira medida para lançar o medo no seio dos organizadores, os órgãos de segurança do regime de Luanda, detiveram, logo nas primeiras horas do dia, o activista José Marcos Mavungo, o principal rosto da organização.
Uma hora depois, o activista e presidente do conselho provincial da Ordem dos Advogados de Angola em Cabinda, Arão Bula Tempo, era igualmente detido na fronteira com o Congo Brazzaville, quando tentava sair de Cabinda para tratamento médico no país vizinho. Segundo o porta-voz da manifestação coercivamente abortada, Alexandre Kwanga, os dois activistas foram detidos sem qualquer mandato judicial, como mandam as leis do regime que não respeitam as leis do país.
De novo, segundo as regras do regime, até prova em contrário todos são culpados. Num Estado de Direito, que Angola não é, seria exactamente o contrário.
“Os polícias não exibiram nenhum mandato judicial”, conta o activista. A polícia alega que os activistas não estão detidos. O que é certo é que estão privados de liberdade. E não entendemos o porquê desta privação,” contava na altura Alexandre Kwanga.
Privados da liberdade não significa presos. Significa, na terminologia ditatorial do regime, estarem em retiro de educação patriótica.
Dois dias depois da detenção dos dois activistas, dezenas de homens e mulheres concentraram-se em frente à sede da investigação criminal exigindo a libertação dos dois activistas e defensores dos direitos humanos.
Note-se que outros cidadãos de Cabinda foram pressionados pelas autoridades: o jornalista José Manuel, foi um deles. O correspondente da Voz da América em Cabinda foi intimado e intimidado ao telefone pelas autoridades a comparecer na sede da investigação criminal, mas o jornalista recusou-se, alegando ”inexistência de notificação por escrito”.
O activista Alexandre Kwanga, em entrevista à DW África, sublinhou que a situação era de extrema gravidade e que Cabinda vivia num estado de “neocolonialismo”: “Não nos podemos expressar, estamos sempre subjugados. Não há discussão em torno dos nossos direitos aqui em Cabinda.”
A situação em Cabinda levou a Ordem dos Advogados de Angola em Cabinda a reunir-se, de emergência. Depois da reunião a organização emitiu um comunicado em que condenou a “prisão arbitrária” de Arão Bula Tempo, o presidente do conselho provincial daquela associação angolana de advogados.
O advogado José Zau exigiu, em nome da Ordem dos Advogados, explicações às autoridades governamentais: “A detenção feita é manifestamente ilegal. Viola de forma flagrante o artigo 63 da Constituição da República de Angola, pelas seguintes razões: não foi exibido qualquer mandato de prisão ou detenção, emitido por qualquer autoridade competente. Além disso, os presos não foram apresentados perante qualquer magistrado do ministério Público para confirmação ou não da prisão”.
O caso Mavungo é a mais recente prova de que o Povo de Cabinda, embora habituado a comunicados enviesados do Governo sobre Cabinda, continua a ter dificuldades em compreender e digerir o que o regime entende como verdades absolutas.
Verdades absolutas que lembram aquelas do Império romano que, aliás, tinha homens sérios na sua direcção. Diz o provérbio latino que quem se cala (parece) que consente, e é por isso que a sociedade civil de Cabinda acha pertinente dizer de sua justiça, diante de tantos quiproquós gerados e difundidos pelo regime.
Ouvindo a verdade absoluta do regime, fica-se com a impressão que o nacionalismo cabindês, com as suas lídimas aspirações à autodeterminação, surge nos fins dos anos noventa. Essa é a estratégia oficial que, ao subverter a realidade, tenta passar a ideia de que os cabindas são terroristas e subversivos, justificando por isso prisões, raptos e assassinatos.
Importa, por isso, recordar (para além do facto de ninguém ser dono da verdade) que, por exemplo, FLEC/FAC foi fundada em Agosto de 1963, fruto de um longo processo político nos anos quarenta. Testemunhas, ainda vivas, atestam as idas, separadamente, de cabindas e angolanos à ONU.
Termos, como Paz, Reconciliação e Desenvolvimento, parecem ter, quando se fala de Cabinda, uma outra conotação e, simplesmente, esvaziados da força quer humana quer histórica que transportam, em princípio, consigo. A Paz que o regime impõe em Cabinda é ter as povoações cercadas de militares, é impedir que os cabindas vão livremente às lavras e à caça, é conviverem, sem direito à indignação, com a discriminação e permanentemente sob a mira de uma polícia com carta-branca para tudo, de uma Polícia de Investigação Criminal que primeiro prende e, posteriormente, investiga. Segundo o regime, para Cabinda é, até, impor-lhe um deus, uma igreja e um pastor à força da baioneta.
Reconciliação para os cabindas é, segundo o regime de Eduardo dos Santos, desaparecer como Povo e ajoelhar-se diante de um poder sempre predisposto a humilhar e a descaracterizá-lo. Desenvolvimento para Cabinda é ter a mão estendida aos dois Congos para o frango, o feijão, o cimento e para a dor de dentes.
Em Cabinda vive-se uma guerra, desmentindo todos os que em Luanda dizem o contrário. Como se isso não bastasse, o regime confunde deliberadamente diálogo com monólogo. Tem sido sempre esta permanente sobranceria do Governo angolano, quando dialoga, monologando com o Povo de Cabinda, ao impor à FLEC as suas soluções unilaterais, amordaçando a Sociedade Civil, ao reduzir o seu espaço e calando a sua voz. Numa palavra; o cabinda não tem direito à cidadania.
As gerações sucedem-se, mas mantém-se indelével o sentimento profundo de um Povo, que uma acção política tendente simplesmente a cercear tudo o que cheira a cabinda: História (datas e momentos marcantes) e Cultura (nomes, língua e espaço vital) não logrou aniquilar. A política da palmatória não desenvolveu, até agora, no cabinda a Síndrome de Estocolmo, pelo contrário, enrijeceu a sua determinação em salvaguardar a sua especificidade.
Nenhuma solução será encontrada para Cabinda se o Governo e o MPLA, porque nem todo o Povo angolano pensa assim, continuarem a sofrer da psicose da ponte sobre-o rio Zaire. Esta unir-se-á com a RDC e não com Cabinda, se o cabinda não for poder em Cabinda.
A independência do Sudão do Sul, a queda de muitos Mubaraks e as grandes mudanças constitucionais levadas a cabo pelo próprio rei de Marrocos, Muhamed VI, deviam levar as elites do poder angolano a reflectirem seriamente sobre o futuro do território de Cabinda.
É um contra-senso que alguém que tenha lutado contra o colonialismo teima, agora, que um outro povo não viva a sua liberdade plena (mestre do seu destino colectivamente consentido e das suas riquezas) e que todos os dias lhe recordam que não é livre.
A FLEC e todos os seus líderes estiveram sempre abertos ao diálogo e a Sociedade Civil um facilitador, todavia, do lado do Governo meramente um fazer-de-contas com um monólogo insistente e ensurdecedor.