Hoje trouxemos um militante convicto, ex-secretário geral do MPLA, ex-primeiro-ministro, ex-secretário executivo da CPLP, jurista e doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa, Marcolino José Carlos Moco, um intelectual que bateu com a porta sobre a “patuscada corruptora”, do seu próprio partido, aliando-se as vozes da indignação, para que o país não soçobre ante a voraz saga corruptora privilegiando a blindagem de formação académica.
Por William Tonet
F olha 8 – Como encara esta pretensão do MPLA, que tanto se opôs a uma maior ponderação, surgir agora a pedir uma revisão?
Marcolino Moco – Provavelmente porque pertenci à direcção do MPLA num tempo em que as decisões fundamentais (boas ou más) eram escrutinadas, efectivamente por um partido que decidia autonomamente da Presidência da República (PR), tenho dificuldades de responder a perguntas desta natureza. Haverá hoje um MPLA que decide independente da PR? Entendo que seja difícil para quem viu sempre as coisas de fora compreender assim as coisas, como as entendo eu. Mas a minha pergunta, que pode ser, naturalmente, refutada é esta: o MPLA de há alguns tempos a esta parte, este por exemplo que ficou em tão maus lençóis com o escândalo não desmentido do BESA, pode ter alguma pretensão autónoma?
F8 – Acha que o MPLA está refém do Presidente Eduardo? E ainda, se a forma como ele decidiu resolver o caso BESA pode demonstrar uma identidade muito próxima do MPLA, como partido onde muitos dos seus dirigentes estão comprometidos com a corrupção?
MM – Homem, isso está à vista de todos. Mas entendo os que, militantes do MPLA ou não, que nunca estiveram na sua direcção no meu tempo, não são obrigados a saber como as coisas funcionavam, numa relativamente ampla democracia interna, sobre as questões fundamentais. Como deve entender, pelo espaço, tempo e oportunidade, não me vou debruçar sobre isso aqui. No, entanto, no meu ponto de vista, houve dois momentos, numa altura em que eu já havia sido afastado da direcção, em 1998. Num primeiro momento, a partir do fim da guerra civil, na base de uma espécie de “chantagem”, do tipo, “se vocês não me dão todo o poder não me exijam responsabilidades se a “terrível UNITA” (de que dirigentes influentes do MPLA e outros elementos da sociedade angolana a que alguns chamam de “nação crioula” têm um mal disfarçado pavor e horror, não obstante a propalada “reconciliação nacional”) ganhar as próximas eleições. Ou, como muitas vezes se houve dizer, “se a UNITA tomar o poder”, como se em regime democrático alguém pudesse tomar o poder que sempre pertence ao conjunto de todo o povo, independentemente de quem ganhar as eleições. É isso que “obrigou” a direcção do MPLA a ceder perante aquela inqualificável alteração da “constituição constituiinte” de 1992 e ao adiamento das eleições presidenciais previstas para 2009, dando mais quatro anos de borla, a quem já lá estava há tantos anos, como queria agora o Kabila no Congo. Em seguida, “o estratega genial”, como alguns o chamam muito carinhosamente, amedronta os pares com a balela da “probidade e tolerância 0” contra a corrupção, enquanto ele promove “mobutiscamente” o enriquecimento da família e de fiéis servidores.
F8 – Como assim? Pode explicar-se melhor?
MM – Mal a insatisfação começava a tomar conta até dos menos puritanos “anticapitalistas” da direcção do MPLA, aí chegou o segundo momento: foi montado o esquema BESA que se especula ter desencadeado toda a crise escandalosa do BES em Portugal, sendo no entanto perigoso pôr o dedo na ferida nesse país (lembremos o destino da moção do Bloco de Esquerda contra a violação dos direitos humanos em Angola no parlamento português) e que, claramente, serviu para acalmar a indignação dos mais puritanos contra o selvático novo-riquismo. Agora, naturalmente é o “calem-se para sempre”. Há dias uma jornalista colocava-me a questão de saber se os dirigentes do MPLA aceitariam o Filomeno dos Santos como substituto do pai. Se bem que o meu problema não é o próximo Presidente ser filho do Presidente (já há e houve muitos) mas a questão do regime, (fortes risos), a não ser que ele volte atrás, está à vistas que ninguém o vai contrariar. Agora, o que está fora de caso (risos) é, realmente, até onde o Presidente Santos chegou e quer chegar para teimosamente segurar o poder pessoal, até para além da vida, dentro de um Estado proclamado democrático.
F8 – Está a esquecer-se do BESA
MM – Esta situação do BESA devia fazer pensar os que acham que morremos de inveja por não exercermos o poder e por isso criticamos ou como dizem “cospe no prato onde comeu”. É particularmente grave, que um Banco Nacional cubra o crédito mal parado a particulares, nas volumosas somas anunciadas, por ordem de um chefe de governo intocável. E, na mesma altura, ou logo a seguir, não há divisas no país. Se vierem coisas piores do que isso, então adeus… Na verdade é o Presidente que, hoje, se tornou refém de si próprio.
F8 – Quais são as consequências, no início do ano para os órgãos e restante máquina estatal, deste OGE rectificativo?
MM – Entendo que pela natureza do jornalismo, esta questão possa ser posta assim, com este carácter sobre os efeitos imediatos. Nesta linha as minhas respostas serão sempre decepcionantes. É que eu não tenho actuado como um opositor a um governo de Angola, o que cabe à oposição política, a que por enquanto, não pertenço. Todas as minhas intervenções têm sido no sentido de que quando um rio está envenenado a montante, ninguém pode esperar por águas saudáveis a jusante. A minha preocupação é que Angola devia resolver pacificamente o problema de um regime que nunca produzirá bons frutos, como governar com previsão e, por isso, elaborar bons orçamentos; quando se vive da distribuição de avultadas riquezas líquidas a familiares, a servidores pessoais e aos que se calam a algum preço, alto ou baixo.
F8 – Acha estar esgotado o consulado do actual presidente? Melhor, não se cala por não ter recebido, também dinheiro fácil do erário público, como os outros dirigentes?
MM – Vou responder a essa questão com algum desencanto (risos), porque não pensava que ainda houvesse alguma dúvida sobre algo de que tantas vezes falei. Em primeiro lugar, costumo desafiar, quem quer que seja que tenha passado pelo exercício do poder que diga que não se aproveitou de nada, não ajudou algum parente ou amigo ou não ajudou necessitados, muitas vezes por questão de promoção da própria imagem; e costumo concluir que nunca me considerei santo. Mas há uma coisa que não faço: vender a confiança, a imagem de razoável prestador de serviço público e de dignidade possível que conquistei entre muitos angolanos (nenhum homem pode pretender a conquista do coração de todos os outros, nem é preciso) e não só. Isso não é nenhum julgamento contra aqueles que tenham outras opções, até porque pode ser que não tenham tido as condições psicológicas de fugir – como eu tenho conseguido ter até aqui – a tão desmedidas benesses, para abdicarem do razoável. Como me dizia um amigo há dias, e numa espécie de brincadeira, porque sabe que eu não estou alinhado nisso, “vocês do MPLA, o vosso mal é o exagero. Não têm a noção do limite”. No tempo em que passei pela direcção do MPLA (1985-1998) havia a noção do limite. Havia…
F8- O executivo de Eduardo dos Santos poderia evitar esta decalage?
MM – Como um governo imediatista e que não presta contas a ninguém, no que for essencial, pode evitar “decalages”? A única solução é a boa arte de encontrar “bodes expiatórios” e “desculpas do mau pagador”, o que nas circunstâncias nem é difícil, num país onde se reprime e até se mata quem reclame com alguma veemência.
F8 – Que reflexos haverá na economia nacional, mais concretamente, na restante máquina produtiva?
MM – Outra resposta que se espera, provavelmente, decepcionante. Entendo muito pouco das previsões económicas. O que sou, sem rebuços é humanista. É o que me levara para a política. Por isso espero que não se agrave ainda mais a vida dos angolanos. Se há coisas que me deixaram de boca aberta, dos actos do Presidente Santos, depois da domesticação do MPLA e do fim da guerra, foi essa de entregar o Fundo Soberano de Angola à direcção do próprio filho. Tenho perguntado a todos os que acham que eu nem devia falar nessas coisas porque pertenço ou pertenci ao regime se isso tem alguma parecença com o tempo do partido-único ou do tempo em que pertenci ao governo, sem nunca me ter declarado santo. Mas agora vou esquecer todo o espanto e vou esperar que independentemente do nepotismo do mais admirável que se pudesse esperar, que ao menos sirva esse fundo para aliviar as consequências humanas da crise. Terá sido criado para coisa diferente, que não seja para estas situações?
F8 – Os produtos produzidos em Angola, ficarão mais caros, com a subida do preço do crude?
MM – Quem me leu até aqui, pode adivinhar a resposta.
F8 – Infelizmente não estamos no campo das adivinhas e nem todos os nossos leitores o são, por isso, gostaria que não tivesse receio de responder. Vão ou não os preços subir no mercado local, uma vez grande parte da indústria funcionar com geradores e os direitos aduaneiros em Angola são uma autêntica roubalheira?
MM – Quando fala em receio, não o entendo, porque só o teria se eu tivesse responsabilidades governamentais ou se concordasse com a actual direcção do partido no poder, com quem, como sabe, eu divirjo em 360 graus esticados e intocados. O que quis dizer, com toda a franqueza que me caracteriza, é que a minha linha de intervenção é mais do tipo institucional, na área jurídico-constitucional, onde penso residir o problema fundamental do que na linha de previsões económico-sociais. Se um dia eu voltar ao governo, que nunca será neste regime completamente amoral e atrapalhado com a ideia de acumulação de capital para parentes e servidores, saberei rodear-me de pessoal competente nessas áreas (risos).
F8 – Que relevância política terá o parlamento, que não fiscaliza ser chamado para esta situação de rectificação?
MM – Esta é que é, até aqui, a questão mais importante. Os problemas que vivemos derivam fundamentalmente da morte a que o Presidente Santos, com o silêncio de quem devia reagir minimente contra isso, sujeitou as instituições previstas num sistema de Estado moderno que corresponde a um território vasto e variado. Sem falar hoje de outros aspectos como o controlo da comunicação social, como é que um parlamento exerce a sua função positiva em qualquer assunto se não é ouvido pela país e se há um tribunal presidencial (Tribunal Constitucional) que lhe retira, de forma descarada, as competências, quando a Constituição não cobre a defesa de determinados interesses pessoais supervenientes do titular da Presidência da República?
F8 – Conhece alguma latitude onde tenha sido tão espezinhada e recuada a visão de Montesquieu sobre a separação de poderes. Como pode um Estado aceitar que o Parlamento não possa fiscalizar o Executivo. Tirando a Coreia do Norte e a China comunista conhece algum outro exemplo?
MM – Fui dos primeiros juristas e cidadãos a levantar essa questão, apenas se tinha anunciado a possibilidade de se organizar o Estado angolano tal como está hoje (totalmente entregue a uma pessoa), antes da aprovação da Constituição de 2010. Bom, esta situação agora agravou-se porque vendo-se que havia uma lacuna naquela “constituição” para proteger completamente os interesses pessoais do actual e longevo titular da Presidência da República, o Tribunal Constitucional (deve ler-se “tribunal presidencial eduardista”) concluiu a proclamação do actual Presidente da República em monarca absoluto (v. acórdão 319/2013) depois de ter proclamado o filho José Filomeno dos Santos seu príncipe herdeiro (v. acórdão 233/2013). É um regime que pouco tem a ver com a China actual de “um Estado e dois sistemas”, onde o Presidente é sujeito ao controlo do partido no poder e ao princípio da alternância geracional não nepotista, obrigatória.
F8 – O MPLA com esta acção mostra sentido de Estado ou trata os deputados como uma espécie insignificante?
MM – A resposta à primeira pergunta serve aqui.
F8 – Haverá reflexos dramáticos nos organismos sociais?
MM – Serve a resposta à pergunta 4.
F8 – Acha que se responder como ficará a Saúde, a Educação e outros sectores sociais, poderá ser perseguido. Teme por um assassinado, por isso não está a vontade, mesmo estando em Lisboa?
MM – Esta é uma questão que para quem tem acompanhado o meu percurso, só pode ser entendida como sendo feita por um “advogado do diabo” (risos). Mesmo antes de entrar na “idade da cinza”, em que, como dizia o velho Mendes de Carvalho, já não há nada para queimar, sempre entendi que se tiver que morrer por defender uma paz alicerçada num mínimo de justiça, que venha esta morte antecipada. A morte é uma estrada por que todos, até os assassinos dos outros terão de passar, deixando, no entanto, um legado de desumanidade e escuridão atrás de si. Veja os raios de esperança que deixaram Sócrates, Jesus Cristo, Maathma Gandi e o Pastor Luther King, apesar de terem sido assassinados, alguns, tão precocemente, por defenderem o perdão, o amor e a transformação positiva?!
F8 – Independentemente do que respondeu antes, a vida das populações vai ou não piorar, na sua visão?
MM – Insiste! (risos). Na verdade são questões que devem ser colocadas ao governo que tem os recursos e as reservas. Como leigo na matéria não posso prever e depois ser desmentido pelos factos, amanhã. O que faço é votos para que a vida não piore mais do que já está, especialmente para as camadas mais sofridas da população. Por vezes, dá a impressão, que é sadicamente tratada. Veja-se os desalojamentos e demolições de casas de pobres, para propiciar a tal acumulação primitiva do capital para uma minoria; e o mau trato às quitandeiras e jovens vendedores de rua, sem incentivos de outras actividades fora das cidades, especialmente de Luanda!
F8 – O que acha pessoalmente, sobre toda esta forma de gestão da máquina do Estado?
MM – Tudo dito, antes.
F8 – Repito, considera estar a ser bem gerida a máquina do Estado, numa altura até que o ex-ministro das Finanças, regressa agora a governador do BNA. Afinal o MPLA tem ou não quadros, pois são sempre os mesmos a rodar todos os postos e a perceberem de tudo.
MM – Não sei como não entendeu a resposta a essa questão em devida altura. Também repito: com um regime pessoalizado como o de Angola, não é possível uma boa gestão da máquina do Estado de um território e complexidade tão vastas e variadas. E como também referi a sua colega do Terra Angolana, não importa se os quadros são novos ou velhos, porque o comando é só um e sempre o mesmo
F8 – Acredita que o aumento do preço dos combustíveis vão conseguir equilibrar as contas do Estado?
MM – Como lhe disse deveriam os angolanos perguntar; para que serve afinal o Fundo Soberano de Angola?
F8 – Qual a receita que apresentaria, neste momento, para uma melhor gestão da coisa pública?
MM – A reposta já foi dada ao longo da entrevista: quem espera por águas puras a jusante de um rio a montante envenenado só se aperceberá quando desfalecer ou lhe acontecer o pior; como quem espera por “boa gestão da coisa pública” num regime “pessoalizado” só colherá algumas quimeras. Em todas as minhas intervenções eu coloco este grande desafio: apresentemos, efectivamente, uma lição à África e ao mundo: esqueçamos um passado inútil que já não se recupera, perdoemo-nos e construamos, claramente, um regime que sirva, minimamente, a todos. Tenho conversado sobre isso com líderes da oposição e o MPLA do Presidente dos Santos não desconhece as minhas ideias. Acredito que um dia o bom senso despertará as consciências dos homens da elite política da minha geração, a tempo que futuras gerações não resolvam isso de forma inesperada. Os sinais não andam muito longe e isso não se resolve com eleições sucessivamente armadilhadas, para a UA, a ONU e UE verem.
F8– Qual a sua visão, como conhecedor de uma máquina que pede sempre ao povo para pagar impostos, mas eles continuam com tudo subvencionado, inclusive os combustíveis?
MM – Há uma subvenção de combustíveis que só favorece dirigentes e afins? Isso para mim é uma novidade e repito, na minha humildade, que não domino todos os aspectos da vida económica do país, hoje. Estando eu no governo (é preciso lembrar que saí do governo vai fazer 19 anos, em Junho) a subvenção aos combustíveis era geral e era entendida como necessária para aliviar a vida das populações em situação de guerra. Uma tentativa de alterar a situação para melhorar os aspectos macro-económicos teve de ser suspensa, devido às reacções negativas, por iniciativa do Presidente da República. Aproveito para reiterar que o que está mal não é, em si, a máquina governativa mas o regime material que dirige Angola, que em vez de corrigir o que estava mal no regime do partido único e o que funcionou durante a guerra pós eleitoral faz o pior: entrega todo o poder a uma pessoa a quem deixa fazer tudo o que quer. Também, quem inventou que governantes devem chamar-se “dirigentes”, foi infeliz. Deviam chamar-se servidores. Por isso é que muitos se acham superiores ao resto da sociedade e “donos da vida e da morte” dos restantes humanos.