A propaganda oficial desceu para valores negativos na promoção da política governamental de negação da realidade e de difusão de fantasias.
Por Rafael Marques de Morais
MakaAngola
A comunicação social do Estado e os órgãos que gravitam em torno desta difundiram declarações de Leonor João, mãe de Afonso Matias “Mbanza Hamza”, segundo as quais a marcha das mães e dos familiares dos 15 presos políticos, incluindo o seu filho, decorreu pacificamente, do Largo da Independência ao Cemitério da Santana.
Quem, à partida, desmente essa afirmação é o próprio comandante provincial da Polícia Nacional, o comissário-chefe António Sita, veiculando outras mentiras. Em comunicado emitido no mesmo dia, a 8 de Agosto, ao fim da tarde, o comandante afirmou o seguinte: “O Comando Provincial da Polícia Nacional torna público hoje, cerca das 14 horas e 30 minutos, no Largo da Independência, quando alguns jovens divertiam-se pacificamente naquele local, em alusão aos 40 anos de independência nacional, surgiram cerca de 35 cidadãos e insurgiram-se contra aqueles, tendo resultado uma série de agressões múltiplas entre ambos.”
Nem sequer se pode dizer que seja vergonhosa a forma como o comandante Sita mente. A mentira faz parte da natureza do próprio regime. O comunicado continua: “A Polícia foi chamada ao local e colocou termo a tais acções, que se estenderam até às proximidades da Avenida Comandante Valódia, não tendo resultado em qualquer detenção ou ferimentos de cidadãos.”
Esta foi a marcha das mães a que o comandante Sita faz referência no seu comunicado. A marcha, por sinal, evitou o Largo da Independência, onde os tais jovens do MPLA se “divertiam” sob forte cordão policial, e percorreu os passeios da Alameda Manuel Van-Dúnem, tendo sido brutalmente reprimida a um quilómetro do ponto de partida.
No Largo da Independência, a polícia foi apanhada de surpresa, porque contava com a colaboração da mãe de Mbanza Hamza para encaminhar as outras mães e restantes familiares para o ponto estabelecido pela polícia. Essa estratégia não surtiu efeito, porque Leonor João foi de táxi até ao cemitério da Santana, onde conferenciou com a polícia sem o apoio das outras famílias.
O autor destas linhas conversou com ela ao telefone, pouco antes do início da marcha. Leonor João tentava a todo o custo dissuadir as outras famílias de prosseguirem com a marcha. É fácil desmentir as declarações de Leonor João à comunicação social do regime, dizendo que as famílias estavam do seu lado e marcharam consigo. Trata-se das famílias dos 15 detidos, nomeadamente: Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Albano Bingobingo, Arante Kivuvu, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz, Fernando Tomás “Nicola Radical”, Hitler Jessia Chiconda “Itler Samussuku”, Inocêncio Brito “Drux”, José Hata “Cheik Hata”, Luaty Beirão, Nelson Dibango, Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Sedrick de Carvalho e o tenente Osvaldo Caholo.
Por extensão e solidariedade, os detidos são também referidos como “15+1”, para incluir o capitão Zenóbio Zumba, detido a 30 de Junho por suposta amizade com o tenente Osvaldo Caholo.
Na linha da frente da marcha encontravam-se as mães, esposas e irmãs de Nito Alves, de Domingos da Cruz, de Benedito Jeremias, de Fernando Tomás “Nicola Radical”, de Nuno Álvaro Dala e de Arante Kivuvu. O pai de Nelson Dibango, Moisés Miguel, fez-se acompanhar de outros dois filhos. Os irmãos de José Hata abandonaram o local antes do início da marcha. Passaram praticamente a manhã no Largo, por falta de coordenação com as outras famílias. Isabel Correia, mãe do tenente Osvaldo Caholo, não compareceu na marcha devido a problemas de hipertensão e à altercação que teve com a mãe de Mbanza Hamza, que se reuniu com as autoridades à revelia do entendimento acordado entre as famílias dos detidos.
Estiveram ainda ausentes as famílias de Luaty Beirão, de Sedrick de Carvalho, de Inocêncio de Brito e de Hitler Jessia Chiconda “Itler Samussuku”.
“Eu estou com a perna inflamada. Apanhei cassete. Eu desmaiei. A senhora Leonor telefonou-me a pedir-me para irmos à TPA desmentir que fui espancada. Eu não posso. Vou desmentir o quê? Bateram-me mesmo e a polícia lançou os cães contra nós”, afirma Adália Chivonde, mãe do preso político Nito Alves.
“Ela [Leonor João] estava sozinha com os comandantes da polícia, no cemitério da Santana. Nós [as outras mães] marchámos e bateram-nos mesmo”, reafirma Adália Chivonde.
Por sua vez, Sara João Manuel, esposa do preso político Nicola Radical, explica que “a mãe do Mbanza deixou-nos no ponto de concentração e foi sozinha para o cemitério da Santana. Ela queria obrigar-nos [às famílias] a ir com ela, para realizarmos lá a manifestação, como queria a polícia, e recusámos”. “Eu apanhei com quatro porretes, dois nas costas e dois nos braços. A mãe do Mbanza mentiu na televisão ao dizer que as mães não foram espancadas pela polícia. Como ela pode dizer isso se nem sequer estava lá?”, interrogou-se Sara João Manuel.
A irmã mais velha de Nicola Radical, Nátalia Fernando, teve um cão agarrado ao pano que trazia vestida. Arrastou-o, embateu num ferro e perdeu os sentidos. Apresenta escoriações. “Para mim, é complicado. Tivemos a polícia por cima de nós com os seus cães e alguém vem dizer o contrário. É muito complicado. Até nem sei o que dizer”, lamenta Gertrudes Dala, irmã do preso político Nuno Álvaro Dala.
Esperança Gonga, esposa de Domingos da Cruz, teve de conter-se no seu pronunciamento sobre o sucedido. “Só as pessoas com cérebro vazio poderão acreditar no conto da senhora Leonor e da polícia. Uma mente séria não se deixaria manipular de forma tão vergonhosa. Dada a situação e o percurso de luta cívica do filho, o Mbanza, esse comportamento é chocante”, desabafa. Um dos cães atiçados pela polícia contra os manifestantes rasgou as calças de Esperança Gonga. “Quando íamos pela Alameda Manuel Van-Dúnem, pensei que a polícia estava a orientar a marcha. Os polícias não estavam a importunar a marcha, foram acompanhando a par e passo. Qual foi o meu espanto e a minha tristeza? Foi ver a emboscada da polícia. Foi terrível”, conta Moisés Miguel, pai de Nelson Dibango.
“Quando caímos na emboscada, vi o terror da nossa polícia. Desceram dos jipes com toda a carga e com toda a violência. Vi pessoas a serem surradas, a caírem. Eu vi a mãe do Benedito Jeremias [Deolinda Luís] a cair e o cão a saltar-lhe. Vi também a mãe do Nito Alves já no chão”, prossegue. Moisés Miguel manifesta-se “estupefacto pelas declarações de Leonor João e do comunicado da polícia”.
“Quem tratou da documentação para a marcha e deu entrada no governo provincial foi o próprio filho da Leonor João. Ela tinha sido uma das proponentes do trajecto que seguimos”, revela.
“Acho que é uma traição. A senhora apunhalou-nos pelas costas. Tudo começou com a convocação da Procuradoria-Geral. O procurador [general Hélder Pita Grós] mentiu quando disse que convocou as famílias todas. Só o fez a quatro senhoras. A partir daí, tudo começou a complicar-se”, indigna-se Moisés Miguel.
Desde 2011, Mbanza Hamza tem sido um activista perseverante e consequente, sendo alvo de um elevado número de detenções e vítima de espancamentos às mãos da Polícia Nacional e das forças de segurança. A 23 de Maio de 2012, Mbanza Hamza sofreu a pior agressão, quando as milícias então coordenadas pelo Comité Provincial do MPLA, com o apoio da polícia, assaltaram a casa do activista Carbono Casimiro, onde dez jovens se encontravam reunidos.
Na altura, Mbanza Hamza explicou ao Maka Angola: “Bateram-me com uma vara de ferro na cabeça e em todo o corpo, e apontavam as pistolas para não reagirmos à pancadaria.” Sofreu fracturas na cabeça, tendo sido suturado com 12 pontos, e no braço direito.
André Muculo, um transeunte que assistiu à pancadaria desferida pela polícia contra as mães, os familiares e os amigos dos presos políticos, comenta que “o governo tem sorte porque o povo é burro”. Mas, acrescenta, “o burro também se cansa”.