Quando, em Fevereiro de 2010, foi aprovada e promulgada a Constituição da República de Angola, muitos se alegraram e rejubilaram. Para eles, havia a certeza de que dali em diante, as coisas seriam melhores e a sociedade se tornaria mais aberta, mais democrática e mais justa.
Por Francisco Luemba (*)
N a verdade, a Constituição alargava o campo das liberdades, dos direitos e das garantias dos cidadãos e apostava clara e inequivocamente no Estado Democrático e de Direito.
Mas a evolução da situação internacional, com a chamada primavera árabe, cedo daria aos angolanos a ocasião de porem à prova tanto o regime democrático como a própria Constituição, tão elogiada e tão conceituada. E a melhor prova seria justamente o pleno, consciente e livre exercício dos direitos e, sobretudo, das liberdades (de expressão, de consciência, de associação, de manifestação…) na medida em que a prática destas exige uma postura activa e positiva; uma acção e um dinamismo que se demarquem claramente da simples observação ou da mera passividade.
Foi ali que veio a confusão. Todas as vezes que os cidadãos (homens ou mulheres, novos ou velhos, desmobilizados ou desalojados, desempregados ou activistas de direitos humanos, militantes de partidos da oposição ou jovens frustrados) quiseram manifestar-se, as polícias (da ordem pública, de intervenção rápida ou a secreta) caíram sobre eles, prendendo, agredindo e violentando os manifestantes, numa espécie de ritual anti-democrático e macabro.
Essa repressão parece provir do medo. Quem reprime tem medo. O poder (que reprime) tem medo do cidadão (que quer se manifestar)! Mas por que razão se há de temer o povo, um grupo de cidadãos desarmados e pacíficos, desejosos de passar uma mensagem e de promover determinados valores? Não sei o que leva o poder tratar um grupo de cidadãos como (se fossem) criminosos e inimigos do bem e da paz, desencadeando contra eles uma onda de violência tão grande e ao mesmo tempo tão desnecessária.
Salvo o caso de manifestações de apoio ao regime ou de «saudação» a uma determinada política ou tomada de posição, todas as restantes, aquelas organizadas por partidos da oposição e pela sociedade civil, são sistematicamente reprimidas e terminam em violência gratuita, excessiva e repugnante.
Tudo se passa como se à liberdade de manifestação (dos cidadãos, activistas cívicos ou membros da oposição civil) correspondesse um dever de repressão que ao Estado competisse. E fá-lo com o pretexto de garantir a ordem e segurança públicas e de salvaguardar a tranquilidade e preservar a paz, a estabilidade e a coesão sociais.
Ora, a manifestação não é sinónimo de desordem, anarquia ou violência. Aliás, as poucas manifestações realizadas (desde a abertura democrática, há pouco mais de vinte anos, até aos dias de hoje) foram quase sempre pacíficas, ordeiras e até festivas. E se algumas degeneraram em desordem e violência, foi na sequência de manipulações e infiltrações de elementos opostos aos manifestantes e animados da vontade deliberada de frustrar os propósitos daqueles, desencadear a violência e desacreditá-los.
Se o regime é democrático e a liberdade de manifestação tem fundamento, base e garantia constitucionais, todo o cidadão deve gozar da mais ampla liberdade de se manifestar sem risco de ser preso ou molestado, ameaçado ou impedido. A liberdade (qualquer que ela seja) não existe se não poder ser exercida livremente e efectivamente gozada. E o respectivo exercício deve ser feito em conformidade com a constituição e as leis.
Em vez de impedir, reprimir ou proibir as manifestações, o Estado tem o dever constitucional de respeitar e garantir o seu livre exercício; estando ainda obrigado a criar as condições que permitam tirar delas o máximo efeito e a mais plena satisfação. Qualquer limitação ou restrição da liberdade de manifestação deve estar prevista na lei e ser decidida no interesse da própria sociedade democrática e do bem comum (da segurança e tranquilidade públicas); e tal restrição ou limitação deve ser proporcional ao mal que se destina a combater ou ao bem ou valor que pretende proteger e salvaguardar.
Na verdade, o regime de exercício da liberdade de manifestação em Angola é assaz liberal. Não carece de autorização da autoridade política ou administrativa: necessita apenas de comunicação ou informação prévia. Assim, a postura do Governo de repressão contínua das manifestações e de agressão aos manifestantes é indigna e injusta, violadora da Constituição e das leis. Atenta à dignidade e à honra dos cidadãos (manifestantes).
Desacredita e compromete o Executivo. Nega e infirma o carácter democrático do regime. Desacredita e desonra os governantes, ao mesmo tempo que humilha e rebaixa os cidadãos, reduzindo-os à condição de súbditos. E o mais grave é que põe em causa – e mesmo em risco – as grandes conquistas dos últimos anos, tão orgulhosamente agitadas e proclamadas aos quatro ventos: a paz, a coesão, a estabilidade, a democracia, a igualdade, enfim, o Estado Democrático e de Direito!
É, pois, tempo de se pôr cobro a esta situação; de deixar o povo livre de provar a sua maturidade, e demonstrar o seu apego aos valores da cidadania: com a plena capacidade de se manifestar e se fazer ouvir, quer para apoiar o Governo, quer para desaprovar, rejeitar ou condenar as suas políticas (quando desajustadas ou erradas) e os seus vícios: a corrupção, as injustiças sociais, a sua intransigência e a sua arrogância!
O poder pertence ao povo. E este não pode exercer tal poder, ou fazer-se ouvir apenas por via das eleições. Deve ter a possibilidade de manifestar as suas alegrias ou tristezas, as suas dores, penas ou insatisfações, as suas reservas e suspeições, mas também a sua clara e flagrante oposição a esta ou àquela política, a esta ou àquela postura menos digna e menos aceitável. Deixemos, pois, o povo manifestar-se. Ponhamos um termo às vergonhosas e macabras cenas de pancadaria, à repressão ritual e habitual das manifestações e ao cerceamento contínuo das liberdades e dos direitos dos cidadãos. O povo tem maturidade, é livre e sabe o que quer; aquilo que, em determinado momento, é tido como bom e justo e, certamente também, aquilo que é mau e não lhe convém.
É o exercício das liberdades que honrará e credibilizará o poder e tornará a sociedade mais coesa e mais livre, fazendo também o regime mais forte, mais estável e mais sustentável.
E deixemos a política de dois pesos, duas medidas, parecendo distinguir boas e más manifestações a partir do conteúdo da mensagem que as inspira, motiva e orienta!
(*) Artigo publicado no Folha 8 em 18 de Outubro de 2014
[…] Liberdade? Mais uma utopia […]
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