QUANDO AS BARBAS DOS NOSSOS VIZINHOS JÁ ARDEM…

Um total de 468 civis foram mortos em confrontos armados entre Janeiro e Março no Sudão do Sul, anunciou hoje a Missão das Nações Unidas no país (UNMISS), que lamentou o aumento dos “incidentes violentos”.

Desde que se tornou independente do Sudão em 2011, o Sudão do Sul tem sido atormentado pela violência político-étnica e pela instabilidade, que o impediram de recuperar da sangrenta guerra civil que deixou quase 400.000 mortos e milhões de deslocados entre 2013 e 2018.

Um acordo de paz assinado em 2018 prevê o princípio da partilha do poder no âmbito de um Governo de unidade nacional, formado em Fevereiro de 2020 com Salva Kiir como presidente e o seu rival Riek Machar como vice-presidente. Mas o acordo não foi, em grande parte, aplicado, deixando o país instável.

Entre Janeiro e Março de 2024, “468 civis foram mortos, 328 feridos, 70 raptados e 47 sujeitos a violência sexual relacionada com o conflito”, afirmou a UNMISS em comunicado, indicando que estes ataques envolveram milícias comunitárias e grupos de defesa civil.

De acordo com a missão da ONU no Sudão do Sul, o número de incidentes violentos aumentou 24% em relação ao mesmo período do ano passado. E acrescenta que o remoto estado pastoral de Warrap (noroeste) é o mais afectado.

No entanto, numa nota positiva, a UNMISS observou que o número de raptos e de violência sexual diminuiu 30% e 25%, respectivamente, em comparação ao último trimestre de 2023.

“Nunca é demais sublinhar a necessidade urgente de uma acção colectiva por parte das autoridades nacionais, estatais e locais, bem como dos líderes comunitários e dos políticos nacionais, para resolver pacificamente as queixas de longa data, em particular no período que antecede as primeiras eleições do Sudão do Sul”, instou o enviado da ONU para aquele país, Nicholas Haysom.

As eleições, as primeiras na história do país, deverão realizar-se em 22 de Dezembro, depois de terem sido adiadas várias vezes.

Em 9 de Julho, numa declaração que assinalou o 13.º aniversário da independência do Sudão do Sul, o chefe de Estado não fez qualquer referência às eleições.

SUDÃO A FERRO E FOGO

As zonas de conflito no Sudão correm risco de sofrer “níveis catastróficos de fome”, enquanto milhões de pessoas já lutam para se alimentarem, alerta a Organização Mundial da Saúde (OMS).

O representante interino da OMS no Sudão, Peter Graaff, alertou que uma “tempestade perfeita” está a preparar-se, com pessoas enfraquecidas pela fome a tornarem-se vítimas de doenças infecciosas, enquanto o sistema de saúde praticamente entrou em colapso no meio dos combates em curso no país.

“Há o receio de que a próxima época de escassez possa levar a níveis catastróficos de fome nas zonas mais afectadas”, disse, numa videoconferência a partir do Cairo.

O período de escassez, ou seja, aquele que antecede as primeiras colheitas e onde se esgota o grão da colheita anterior, que se estende de Abril a Julho, vê os preços dos géneros alimentícios dispararem à medida que os stocks diminuem.

A guerra, que eclodiu em Abril de 2023 entre o chefe do exército sudanês Abdel Fattah al-Burhan e Mohamed Hamdan Daglo, seu antigo vice e comandante das forças paramilitares de apoio rápido, provocou milhares de mortos e desencadeou uma catástrofe humanitária.

Cerca de 25 milhões de pessoas, ou mais de metade da população, necessitam de assistência, e quase 18 milhões enfrentam insegurança alimentar aguda, segundo dados da ONU. Cinco milhões já estão em situação de emergência devido à fome, disse Peter Graaff.

As crianças subnutridas correm maior risco de morrer de doenças como diarreia, pneumonia e sarampo, especialmente num contexto em que não têm acesso a serviços de saúde vitais.

“O sistema de saúde mal funciona e as doenças infecciosas estão a espalhar-se: foram notificados mais de 10.000 casos de cólera, 5.000 casos de sarampo, cerca de 8.000 casos de dengue e mais de 1,2 milhões de casos clínicos de malária”, detalhou Peter Graaff.

Os combates fizeram com que 1,8 milhões de pessoas fugissem do país e 6,1 milhões deslocados internamente.

“Testemunhei em primeira mão os deslocamentos no Sudão e no vizinho Chade. E o que vi é alarmante e doloroso”, continuou Peter Graaff, descrevendo pessoas forçadas a caminhar durante dias, apenas para encontrar refúgio em áreas superlotadas com pouca comida e água.

“O povo do Sudão enfrenta uma situação de vida ou morte devido à violência persistente, à insegurança e ao acesso limitado a serviços de saúde essenciais”, disse Peter Graaff.

“E parece haver pouca esperança de uma solução política à vista”, afirmou apelando ao acesso seguro e sem entraves à prestação de serviços de saúde vitais.

A maioria das pessoas deslocadas no Sudão fugiu do estado de Cartum (67%) e do Darfur (33%) para os estados do norte do país (16%), do Rio Nilo (14%), do Darfur Ocidental (7%) e do Nilo Branco, especifica a Organização Internacional para as Migrações (OIM).

“A alimentação, o acesso aos serviços de saúde e os artigos de primeira necessidade continuam a ser extremamente escassos”, sublinhava já um relatório da OIM publicado em Julho de 2023.

Embora a maioria dos deslocados internos viva integrada em comunidades de acolhimento, mais de 280.000 estavam a viver em abrigos de último recurso, como campos, edifícios públicos e abrigos improvisados, em especial no estado sudanês do Nilo Branco, segundo a Matriz de Acompanhamento de Deslocações (DTM, na sigla em inglês) da agência das Nações Unidas para as Migrações.

O relatório já na altura dava conta de movimentos migratórios observados nas fronteiras do Sudão com o Egipto (40%), com o Chade (28%), com o Sudão do Sul (21%), com a Etiópia e com a República Centro-Africana (RCA).

Das mais de 697.000 pessoas que atravessaram a fronteira para os países vizinhos, 65% são sudaneses e estima-se que 35% sejam repatriados e nacionais de países terceiros, especifica-se no relatório. Destas quase 700.000 pessoas, “a maioria encontra-se em condições extremamente precárias”, alertava a OIM.

“A escalada contínua da violência está a agravar uma situação humanitária já de si terrível no país e na região. Pelo menos 24,7 milhões de pessoas – cerca de metade da população do Sudão – necessitam urgentemente de ajuda humanitária e de protecção”, apontava há quase um ano o relatório, segundo o qual “um terço” das pessoas mais necessitadas se encontra no Darfur, “onde a situação se está a deteriorar drasticamente”.

“A OIM reitera os apelos a um cessar-fogo permanente e à eliminação dos entraves burocráticos, a fim de assegurar corredores humanitários seguros e garantidos e permitir a entrega de ajuda às pessoas em zonas de difícil acesso”, afirmava o director regional da organização para o Médio Oriente e Norte de África, Othman Belbeisi, citado no documento.

Entretanto, a União Europeia (disse na altura que) quer “negociar sem demora um cessar-fogo duradouro para garantir a protecção do povo do Sudão”, onde pelo menos 1173 civis já tinham morrido.

A União Europeia condenou o recrudescer dos combates no Sudão e ataques em larga escala contra civis, e disse que admite adoptar sanções como meio para pôr termo ao conflito e incentivar a paz.

“A UE está pronta a ponderar a utilização de todos os meios à sua disposição, incluindo medidas restritivas, para contribuir para pôr termo ao conflito e incentivar a paz”, referiu em comunicado, condenando a contínua recusa das partes em conflito, desde 15 de Abril de 2023, em procurar uma solução pacífica.

A urgência de “negociar sem demora um cessar-fogo duradouro para garantir a protecção do povo do Sudão” é destacada na nota, em que se pede que, independentemente do cessar-fogo, os intervenientes permitam e facilitem a prestação de ajuda humanitária.

A fim de “interromper o ciclo de impunidade, os responsáveis pelas atrocidades devem ser identificados e responsabilizados”, defendeu a União Europeia, que disse apoiar a recolha de provas sobre violações graves dos direitos humanos.

Bruxelas diz-se particularmente preocupada com os relatos de “ataques em larga escala contra civis e zonas civis, nomeadamente com base na etnia, em especial no Darfur, com relatos horríveis de violência sexual e baseada no género generalizada, assassínios selectivos”.

Altos funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU) denunciaram também o aumento da violência, incluindo sexual, contra mulheres e raparigas no Sudão.

A UE manifestou ainda “profunda preocupação com a rápida deterioração da situação humanitária” e prometeu manter o apoio ao povo do Sudão, “especialmente as mulheres e os jovens que lideraram uma revolução pacífica há quatro anos”, lembrando os 256,4 milhões de euros afectados em 2023 para a ajuda humanitária e ao desenvolvimento do país.

O número exacto de vítimas dos combates, entre as milícias das Forças de Intervenção Rápida (RSF, na sigla em inglês) e o exército sudanês, não é possível de contabilizar com exactidão, devido à situação de insegurança.

Recorde-se que, ciente do seu papel e do peso político que tem, seja no contexto africano ou no mundial, o Presidente angolano, general João Lourenço, manifestou-se em Maio do ano passado, em Itália, “apreensivo” com o rumo dos conflitos no mundo e voltou a considerar a invasão da Ucrânia como a maior ameaça à paz e segurança na Europa, apelando novamente a um cessar-fogo. Moscovo e Kiev pararam para escutar o “campeão da paz” em África…

O general João Lourenço apontou, nomeadamente, a instabilidade em África, criada pelo terrorismo e os golpes de Estado nos países da região do Sahel, conflitos como o da República Democrática do Congo e do Sudão, bem como o conflito israelo-palestiniano que “não tem contribuído para os esforços da comunidade internacional de fazer do Médio Oriente uma zona de paz e segurança”.

92 PAÍSES ENVOLVIDOS EM GUERRAS

Segundo o ranking do Instituto de Economia e Paz, Portugal aparece na sétima posição como país mais pacífico do mundo, com 1.372 pontos numa listagem em que a pontuação mais baixa, ou seja a melhor, é da Islândia (1.112 pontos). Os dez piores colocados no ranking são, em último lugar, o Iémen (163º lugar) precedido do Sudão, Sudão do Sul, Afeganistão, Ucrânia, República Democrática do Congo, Rússia, Síria, Israel (155º) e Mali (154º).

No Índice Global da Paz (IGP) 2024, elaborado anualmente pelo Instituto de Economia e Paz em colaboração com as Nações Unidas, Portugal ocupa a 114ª posição no impacto económico da violência, representando estes custos cerca de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) português.

Produzido pelo grupo de reflexão internacional Instituto de Economia e Paz, o relatório apresenta a análise mais completa até à data sobre a paz, valor económico, tendências e forma de desenvolver sociedades pacíficas, abrangendo 99,7% da população mundial através da análise de 23 indicadores qualitativos e quantitativos. Estes indicadores estão agrupados em três domínios-chave: Conflitos em curso, Segurança e Protecção e Militarização.

A Islândia é o país mais pacífico do mundo, segundo IGP, enquanto os conflitos atingiram o seu maior número desde a II Guerra Mundial.

O IGP 2024 indica que há hoje 56 conflitos a nível global e alerta para o facto de o mundo estar numa encruzilhada e que sem esforços concertados, existe o risco de um recrudescimento de grandes conflitos.

Na décima oitava edição do Índice Global da Paz, o pódio da lista de países mais pacíficos é ocupado pela Islândia, Irlanda e Áustria, de seguida surge a Nova Zelândia, Singapura, a Suíça, Portugal, a Dinamarca, a Eslovénia e a Malásia.

Os dez piores colocados no ranking são, em último lugar, o Iémen (163.º lugar) precedido do Sudão, Sudão do Sul, Afeganistão, Ucrânia, República Democrática do Congo, Rússia, Síria, Israel (155º) e Mali (154º).

O conflito na Faixa de Gaza teve um impacto muito forte na paz global, com Israel (155º lugar, uma queda de 11 posições) e a Palestina (145º, com queda de nove posições) a registarem uma forte deterioração no índice de paz. Equador (130º posição), Gabão (118º) e Haiti (143º) foram outros países com grandes deteriorações no índice de paz, segundo o estudo.

El Salvador (107º) teve a maior melhoria no índice, devido à evolução muito significativa no indicador da taxa de homicídios e à melhoria da percepção de segurança dos cidadãos ao longo dos últimos anos. Emirados Árabes Unidos (53º), Nicarágua (113º) e Grécia (40º) também registaram melhorias significativas na paz.

A Europa é a região mais pacífica do mundo e as zonas do Médio Oriente e o norte de África continuam a ser as menos pacíficas.

A América do Norte registou a maior deterioração média de todas as regiões. No entanto, apesar dessa deterioração, continua a ser a terceira região mais pacífica do mundo, atrás da Europa e Ásia-Pacífico.

O relatório concluiu também que muitas das condições que precedem os grandes conflitos estão mais elevadas em relação ao que tivemos desde a final da Segunda Guerra Mundial. Existem actualmente 56 conflitos activos, o maior número desde o final da Segunda Guerra Mundial, e temos também menos conflitos a serem resolvidos, seja militarmente ou através de acordos de paz.

Os conflitos também estão a tornar-se mais internacionalizados, com 92 países agora envolvidos em guerras para além das suas fronteiras, o maior número desde a criação do Índice Global da Paz em 2008, complicando os processos de negociação para uma paz duradoura e prolongando as hostilidades.

“A internacionalização do conflito é impulsionada pelo aumento da competição entre grandes potências e pela ascensão de potências de nível médio, que estão a tornar-se mais activas nas suas regiões”, indicou o relatório.

Embora as medidas de militarização tenham melhorado durante os primeiros 16 anos do IGP, a tendência inverteu-se e em 2024 a militarização aumentou em 108 países. De acordo com o estudo, a combinação desses factores significa que a probabilidade de outro grande conflito é maior do que em qualquer momento desde o início do IGP.

Os resultados desse ano revelaram que o nível médio de paz deteriorou-se em 0,56%. Cerca de 65 países melhoraram o seu índice de paz, entretanto, 97 nações tiveram uma queda no ranking, o pior resultado num único ano desde o início do IGP.

O impacto económico da violência na economia global em 2023 foi de 19,1 biliões de dólares em termos de paridade de poder de compra (PPC). Este valor equivale a 13,5% da actividade económica mundial (produto mundial bruto) ou 2.380 dólares por pessoa.

As despesas militares e de segurança interna representaram mais de 74% do total impacto económico da violência, com os gastos militares respondendo por 8,4 biliões de dólares no ano passado.

Muitos países experimentaram enormes quedas no PIB como resultado de conflitos violentos durante 2023. A economia da Ucrânia encolheu cerca de 30% em 2022 como consequência da invasão russa, embora algumas estimativas sugiram que a guerra civil síria levou a uma queda de 85% do PIB.

Folha 8 com Lusa

Artigos Relacionados

Leave a Comment