Arrepia-me o espectáculo degradante de uma Angola distópica, transformada em paraíso de charlatães que há muito atraiçoaram o testamento político original do MPLA.
Por Carlos Pacheco (*)
Arrepia-me continuar a ver Angola nas mãos de mestres da farsa e da teatralidade que persistem, sem nenhum decoro, em usar de arteiros subterfúgios para acomodar o passado de horrores da ditadura de Agostinho Neto. Que usam de um perdão fictício para canonizar com nomes altissonantes o que o regime do MPLA chama de reconciliação nacional. De modo nenhum me conformo com as torpezas do general João Lourenço que, com as suas retóricas de tartufo, subverte todos os preceitos de inteligência e adúltera a memória nacional e fere a coesão social inspirado na cartilha de protecção de homens desqualificados e criminosos. Arrepia-me este espectáculo degradante de uma Angola distópica, transformada em paraíso de charlatães que há muito atraiçoaram o testamento político original do MPLA e fazem da intolerância e da fobia contra os dissidentes e desafectos uma forma de militância. Arrepia-me porque para a maioria da juventude a história parece já não fazer sentido. Dir-se-ia que a independência nacional foi algo que sucedeu em vão, varrida pela herança trágica de Neto e que o imobilismo dos seus sucessores se empenha em ocultar. Arrepia-me, enfim, continuar a ver Angola condenada a um futuro de vileza.
Eis aqui uma pequena radiografia da personalidade política de Neto para melhor se entender quanto a sua sombra sufoca a respiração e a vida do país. Parece que o bastão do poder jamais lhe saiu das mãos mesmo depois de morto. Ele conseguiu galgar até aos píncaros do poder de Estado mercê da conjugação de vários factores extraordinários, não sem deixar de recorrer àquilo a que o filósofo Francis Bacon chamou de Scala Coeli (“escada para o céu”)[1] (#_edn1), providencialmente colocada debaixo dos seus pés por forças políticas dominantes em Portugal. Isto é, por um sector de esquerda do MFA (Movimento das Forças Armadas) controlado pelo Partido Comunista Português que, astucioso na intriga política e em jogos de táctica, o ajudou de forma decisiva a reerguerse e lhe abriu caminho para alcançar o poder soberano.
Ancorado neste apoio, Neto ainda na guerrilha dizia, ao saber da derrubada da ditadura em Portugal, que os portugueses teriam de se render ao MPLA e só ao MPLA e que qualquer projecto de paz e independência a ser negociado para Angola deveria levar em conta este princípio.
Reconheça-se que, não obstante o auxílio de forças estrangeiras, ele soube usar de uma “afortunada astúcia” pessoal que faltou aos seus adversários da UNITA e da FNLA. Na esteira de outros ditadores, ele pensou que, para se sentar na cadeira presidencial e ter o domínio exclusivo do país pelo seu Partido, nada lhe seria mais importante senão agir sem escrúpulos e seguir o preceito de Goebbels, segundo o qual “quem pode conquistar as ruas, pode conquistar as massas e quem conquista as massas conquista o Estado”.
Contudo, o fenómeno de novidade e de deslumbramento por ele simbolizado de que algo de extraordinário se iria passar em Angola na senda do “cosmopolitismo, da cultura, do pluralismo e da liberdade”, durou pouco tempo. Tal fascínio assemelhou-se a um raio de luz fulgurante que cruza os céus e instantaneamente se apaga diante dos nossos olhos. A bebedeira da utopia colectiva progressivamente se desvaneceu como se tratasse de “fragmentos de um sonho” e logo o génio sombrio e negro da personalidade política de Neto se desentranhou perante os olhos estupefactos de toda a sociedade angolana. Com o tempo este deslumbramento deu lugar à mais profunda decepção, igual à parábola nicaraguense do pássaro de doce encanto, de “bela plumagem e cores refulgentes”, que voa sobre as nossas cabeças e concita o nosso deleite, até ao dia em que se tenta agarrá-lo, mas o que fica nas nossas mãos é um “montão de excrementos”[2] (#_edn2)] (#_edn2).
Neto entronizou-se com poderes absolutos. Instaurou um Estado policial-militar terrorista e um sistema político extremista de partido único (grotescamente chamado de ditadura do proletariado). Com estas ferramentas passou a manipular as populações e a controlar todos os seus gestos e palavras. Num ápice demoliu a antiga ordem sem se importar com os efeitos catastróficos que poderia causar, especialmente no plano económico, cujo desastre repercute até hoje em potência e alcance. A este paradigma político de força bruta servido por um exército de pletórico de espiões, delatores e outros voluntários, o pensador Isaiah Berlin diria que “[…] homens implacáveis em situações “flexíveis” ou caóticas são capazes de dar à vida de uma nação um giro violento, inesperado e irracional, a tal ponto que nem os sóbrios estudantes de história social conseguem prever”[3] (#_edn3).
Muito da estética netista cheirava a vendetta política, arte em que decerto se revelou brutal e exímio, apesar de algumas das suas acções mais hediondas não terem tido a sua marca pessoal directa. Matreiramente sabia encomendar os trabalho de esbirros conhecidos pela sua vocação homicida, e se algum parente das vítimas lograva saber o nome do matador e as suas proezas e exigia medidas punitivas, Neto como sempre respondia que iria mandar proceder a averiguações e obrigar o culpado a prestar contas. Nunca fez nada, pelo contrário protegeu os assassinos sob o manto da impunidade e imperturbável continuou a violar direitos e princípios éticos e de justiça não só fomentando rivalidades internas, mas estimulando pelo silêncio os processos mais irregulares e abjectos.
Detenhamo-nos, para começar, num julgamento célebre e referencial que inaugurou o teatro macabro da governação de Neto à cabeça do Estado angolano. O julgamento de Virgílio Francisco [por codinome “Sotto-Maior”] no Campo da Revolução, em Luanda, algumas semanas após a proclamação da independência nacional. Logo ali, diante daquele julgamento-farsa se comprovou quão visceral era a complacência e conluio de Neto com as ilegalidades de uma facção que há muito dentro do MPLA “brandia punhais
e espalhava venenos” pela calada contra os companheiros.
A fama de “Sotto”, como se sabe, vinha de longe, da sua participação na rebelião de 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda, pela qual amargou uma pena de prisão de vários anos no Campo de Chão-Bom, no Tarrafal, em Cabo Verde. É aqui, parece-nos, que reside a incógnita não decifrada até hoje deste julgamento. Atingido por uma barragem de intrigas e falsas arguições, os seus inimigos – do tempo da luta clandestina em Luanda no final dos anos de 1950 – conseguiram levá-lo ao banco dos indiciados em praça pública diante de uma mole humana excitada pelos fluídos da propaganda do MPLA, que a todo o instante assobiava e apupava o réu de criminoso. A manipulação dos factos por parte do Tribunal Popular Revolucionário lembrava tudo menos um Tribunal de Justiça, cuja actuação se revelou a mais sórdida que se possa imaginar, dado o cruel desenlace que resultou na condenação do réu à pena de morte por fuzilamento. Por desgraça não estava ali presente um Pitágoras que apelasse ao bom senso dos juízes e os fizesse ouvir a voz da razão.
Mencionar procedimentos heterodoxos seria dar uma imagem distorcida da realidade. Para além da ausência de uma investigação preliminar e de provas testemunhais, bem como de uma contestação, o acusado sequer teve um juiz de instrução criminal para o ouvir imparcialmente e protocolar o seu depoimento, e muito menos um magistrado judicial para conduzir o julgamento. Sem esquecer outro registo fundamental: o ter-se privado o réu do benefício de defesa por parte de um advogado. Os membros do jurado eram nada menos do que figuras pertencentes ao feudo político no poder, todas destituídas de qualquer grau de profissionalização em matéria forense e absolutamente ignorantes em filosofia do direito. Eles estavam ali tão-somente na função de carrascos de Agostinho Neto.
É inútil afirmar que a ausência de provas consistentes representou um detalhe sem nenhum peso naquele tribunal angolano, de recorte iminentemente político. O importante era o público e não o processo ou a necessidade de decidir conforme a justiça. O importante era o medo com que se pretendia paralisar as fibras do país e torná-lo refém dos instrumentos de propaganda do regime. Um bom exemplo para contrapor esta impostura do MPLA são as palavras do magistrado Aubels, conselheiro de um tribunal de Paris no romance de Anatole France, que dizia: o que menos interessa são os motivos pelos quais se condena alguém. “Motivos arranjam-se sempre”, acrescentava ele [4 (#_edn4)] (#_edn4). Pois bem, para os difamadores de “Sotto” o móbil era só um, desacreditar o réu com “provas” que ninguém se arriscava a contraditar e, desde logo, calar a sua voz devido a um rol de coisas ou segredos comprometedores que este indivíduo supostamente possuía contra eles. Quase sempre segredos relacionados com traições que conspurcam a odisseia da luta libertadora e que os estudiosos deverão um dia desenterrar do esquecimento.
Neto não perdeu tempo a sacramentar aquela escandalosa arbitrariedade e o veredicto dos seus esbirros e ainda hoje corre a versão de que teria sido enganado. A explicação não podia ser mais fantasiosa. Do princípio ao fim o Grande Chefe revelou-se cúmplice dessa encenação vergonhosa, se não mesmo o seu mentor intelectual, na medida em que acolheu uma das facções em luta e deixou de fazer uso do seu poder absoluto que lhe permitia barrar a injusta acção dos maquinadores. Ao acomodar-se numa atitude de aparente imobilismo, ficou patente o seu interesse em caucionar a trama secreta daqueles agentes exterminadores, tal como já havia feito antes com as mortes de Cândido Fernandes da Costa e Bernardo Joaquim Silas, ambas toldadas de sombras; sem esquecer outros muitos casos que enchem de opróbrio as páginas da história do MPLA relativamente à guerra pela Independência nacional. O veredicto, consubstanciado em pena capital, estava pré-definido e os julgadores de antemão instruídos a conduzir a sua decisão pelos atalhos da arbitrariedade. Se houve sentença e não houve juízo, simplesmente condenou-se o réu sem justiça.
Conclusão, foi em clima de consternação e de terror provocado por este vil “julgamento” que Angola, sob os ferros do autoritarismo e da violência, iniciou a sua caminhada como Estado emancipado. Como reza a sabedoria árabe, “quando o pastor entra em cumplicidade com os lobos, os cães deixam de ladrar”.
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1. Francis Bacon. Nova Atlântida [tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade], São Paulo, Abril S.A Cultural e Industrial, 1.ª edição, Julho de 1973, p. 255.
2. Ver Sergio Ramírez. “El Pájaro del Dulce Encanto”, El País [Madrid], año XL, n.º 13.901, domingo 26 de Julio de 2015.
3. “Carta de Isaiah Berlin a Morton White, 19 de Julio de 1957, Headington House”, in Cartas Inéditas, Letras Libres [Madrid], n.º 116, Mayo 2011, p. 15.
4. Anatole France. A Revolta dos Anjos, Lisboa, Editora Arcádia, 1980, p. 48,