O medo de não ter o que comer e um tecto para dormir leva cada vez mais imigrantes lusófonos a procurar ajuda nas associações, que já cerram fileiras para ajudar estas comunidades e principalmente os mais vulneráveis, como os doentes. Os angolanos do país profundo (20 milhões são pobres) que o digam. É claro que o dono dos escravos (João Lourenço) e o seu clã partidário (MPLA) continuam a ter uma vida de nababos (homens ricos que vivem com grande luxo e fausto).
Ou seja, em Portugal “não morrer à fome já é bom”, afirmou à Lusa o presidente da Associação de Angolanos e Amigos de Angola, João Inglês, preocupado com o impacto da crise em Setúbal, onde está localizada a organização.
Para este dirigente associativo, “não há quem não esteja preocupado”, principalmente com a subida das despesas com a habitação e os bens alimentares. “O vencimento não chega. Tudo subiu de preço. O grande desafio é a aquisição de géneros, para que a alimentação da família não falte”, disse.
A alimentação é, para esta associação, “o factor primordial” e é nela que está focada, esperando que as autarquias não se esqueçam de orientar quem está no terreno para, juntos, poderem fazer um trabalho útil, pois acredita que este “vai ser mais preciso que nunca”.
E recorda os doentes que vieram de Angola para Portugal para tratamentos e muitos deles estão agora sem qualquer apoio do país de origem, sendo “os mais vulneráveis de todos” e não podem, como acontece com o clã de João Lourenço, ir – por exemplo – tratar-se a Espanha, nem que seja a uma bitacaia…
“Se já é difícil para quem tem saúde, imagine para quem não tem e nem pode trabalhar”, observou.
Ildo Rocha Fortes, promotor e coordenador do Gabinete de Apoio à Inclusão dos Cabo-verdianos, em Almada (Portugal), também está apreensivo, sobretudo perante uma crise tão longa, que começou a agravar-se com a pandemia de Covid-19, depois com a guerra e agora a inflação.
Sobre a comunidade cabo-verdiana em Portugal, “a mais antiga”, como faz questão de sublinhar, o também jornalista e investigador sociocultural referiu que é conhecida por ser trabalhadora, embora isso agora nem sempre garanta segurança. “Os cabo-verdianos estão sempre a trabalhar. O problema é que as despesas aumentaram”, afirmou.
Esta comunidade sofre duplamente, como explicou, porque além de precisar de rendimento para estar em Portugal, precisa de enviar dinheiro para as suas famílias em Cabo Verde, muitas das quais não se conseguem alimentar sem esta ajuda.
“É uma dupla angústia: Precisar de ganhar dinheiro para viver em Portugal e para ajudar os seus em Cabo Verde. Como as despesas são cada vez maiores, muitos não conseguem nem uma coisa nem outra”, apontou.
Sobre estas remessas, referiu que elas só acontecem porque os cabo-verdianos “estão bem inseridos em Portugal e não integrados”.
“Qualquer comunidade integrada não consegue fazer remessas como as que os cabo-verdianos fazem para o país de origem, pois quem está integrado gasta muito dinheiro no país de acolhimento”, frisou.
A mais numerosa em Portugal, a comunidade brasileira também assiste com apreensão ao escalar dos preços que vem agravar dificuldades antigas, como disse a presidente da Casa do Brasil, Cynthia de Paulo.
Com baixos salários nos empregos para onde é “empurrada”, como a restauração, a comunidade brasileira viu nos últimos tempos agudizar a dificuldade em pagar uma habitação e em suportar o custo de vida.
“Na associação, crescem pedidos de ajuda de pessoas que chegaram há pouco tempo e que estão em vias de ficar sem-abrigo”, contou, acrescentando que a outros tipos de associações os brasileiros pedem sobretudo apoio alimentar.
E alerta para a forma pouco preparada com que muitas famílias chegam a Portugal, desconhecendo o verdadeiro nível de vida, os salários e as exigências aos imigrantes, o que os coloca numa vulnerabilidade preocupante.
O impacto da crise também tira o sono ao presidente da Associação da Comunidade de São Tomé e Príncipe em Portugal (Acosp), António Paraíso, para quem os efeitos atingem muitos, mas “mais ainda os imigrantes”.
“A base do trabalho da nossa imigração são empregos não qualificados. Mesmo assim, torna-se muito difícil, ou quase impossível, para quem não tem os documentos tratados e o tempo para os conseguir é cada vez maior”, disse.
E acrescentou: “Quem não tem documentos, não tem trabalho, não tem salário. Ou então sujeita-se a patrões sem escrúpulos, que aumentam em tempos de crise”.
António Paraíso tem conhecimento de várias famílias que sobrevivem apenas graças à caridade, seja de familiares, de organizações como a Cáritas, ou os serviços sociais das câmaras municipais.
Neste rol de dificuldades, elegeu a habitação como a principal devido aos preços: “Muitos não conseguem pagar um quarto, quanto mais uma casa”.
À Associação guineense de solidariedade social (Aguinenso) chegam cada vez mais pedidos de ajuda, como disse o seu presidente, João Tatis Sá.
“As pessoas queixam-se de já não conseguirem comprar alguns alimentos e bens essenciais. O preço das rendas também começa a ser impraticável para muitas famílias que vivem com medo de não ter um tecto para dormir”, salientou.
E explicou: “As pessoas já ganhavam pouco. Muitos trabalham nos serviços de limpezas e outras tarefas e muitas mulheres estão sozinhas com os filhos, com um só vencimento, que já é baixo”.
O que era difícil tornou-se impossível, com os preços dos bens e serviços a dispararem. “Há quem não consiga comprar leite”, avançou, receando que este aumento dos pedidos de ajuda não seja acompanhado por igual aumento de doações.
As inquietações também atingem a Associação Lusofonia, Cultura e Cidadania (ALCC) que actualmente presta apoio a 95 famílias. Segundo a coordenadora do apoio social da associação, Lisley Filipe, são sobretudo os mais vulneráveis, nomeadamente os que se encontram em Portugal a fazer tratamentos, que mais a preocupa.
“Muitos deles contam inicialmente com o apoio das famílias, que depois deixam de os ajudar e eles ficam perdidos, em situação irregular ou em processo de regularização”, notou.
Lisley Filipe acredita que a situação vai piorar e está já a trabalhar no sentido de aumentar a resposta que a ALCC pode dar, mas reconheceu dificuldades.
“Tal como aconteceu durante a pandemia de Covid-19, vamos fazer campanhas de doação de alimentos ou de dinheiro para melhorar o apoio a essas famílias, para quem o aumento do custo de vida torna incomportável a aquisição de bens, muitos deles essenciais”, adiantou.
A presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, confirmou a “pressão” que a instituição está a sentir em várias áreas do país, de “pessoas vindas de fora e de proveniências diferentes”.
E evidencia a comunidade brasileira – a maior em Portugal -, com chegadas consistentes já há alguns anos e também com famílias vulneráveis já sinalizadas.
Ainda assim, referiu que o facto de as comunidades lusófonas partilharem a mesma língua que os portugueses é menos uma barreira que têm de ultrapassar quando chegam a Portugal.
O apoio da Cáritas, a braços com o aumento de pedidos de ajuda devido ao impacto da subida dos preços, é prestado de forma idêntica a nacionais e estrangeiros, sublinhou.
EM ANGOLA, SECA, FOME, MORTE
Indiferente a cimeiras climáticas ou debates sobre transição energética, a seca avança inexoravelmente em Angola, ameaçando modos de vida tradicionais de pastores como os Mucubais do Namibe, obrigados a procurar pastagens cada vez mais longínquas para o gado.
Esta é uma das províncias do Sul de Angola que mais tem sentido os efeitos da seca severa que afecta o país desde 2012, com estações das chuvas cada vez mais curtas e solos em erosão, acompanhada de uma crescente escassez de alimentos para pessoas e animais. Tudo perante a indiferença e criminosa incompetência de um governo que só olha para o seu, sumptuoso, umbigo. Estima-se que, nesta região, 45% da população vive em situação de crise ou emergência a nível nutricional (fome).
No município do Virei, um dos mais afectados, a percentagem sobe para mais de 60%. Chegar até lá não é fácil.
A placa que indica o cruzamento para Virei está praticamente à saída da cidade de Moçâmedes, mas a estrada está deteriorada e os cerca de 100 quilómetros de gravilha e pedras pontiagudas desincentivam o aluguer de viaturas, levando os que acedem a cobrar preços astronómicos para compensar a manutenção. Tudo normal, “explica” o MPLA que só está no governo há… 47 anos.
Pelo caminho, vão surgindo as formas tentaculares características das ‘welwitschias’, espécie de planta autóctone e das poucas formas de vegetação que prospera nesta paisagem semidesértica e áspera, a par de arbustos e acácias espinhosas.
Ali vivem quase 43 mil pessoas, entre Mucubais, Cuisses, Muhakaona e Muílas, distribuídos por uma extensão territorial de cerca de 15.000 quilómetros quadrados, onde caberia- por exemplo – meio Alentejo (Portugal), segundo dados do administrador adjunto do Virei, Narciso Pires.
Criadores de gado transumantes, os Mucubais têm nos bois a sua identidade e principal fonte de riqueza, mas a falta de chuva obriga a ir cada vez mais longe em busca do capim verde que lhes serve de alimento.
Chegam a fazer 300 quilómetros levando as manadas a pé até às vizinhas províncias do Cunene e da Huíla, relata Narciso Pires, sublinhando que não cai “chuva de verdade” há mais de uma década.
Os rios que correm na região são intermitentes e, por esta altura, época das chuvas, que teimam em não cair, apenas são visíveis as formas da água desenhadas no leito arenoso.
Homens e bois partiram em Abril e só vão regressar “quando a chuva voltar a cair e o capim crescer”, diz Paihama Catenga, responsável da administração para os sectores de Cultura e Turismo.
Para trás ficaram mulheres, crianças e mais velhos, que sobrevivem como podem durante os meses de ausência. Comercializam cabritos e galinhas à beira de estrada e, por vezes, levam até aos mercados alguns produtos locais como o mahungo (larvas de insecto) ou o óleo para cabelo a que chamam mupeque.
Quando vão à sede do município, as mulheres caminham quase 30 quilómetros, muitas vezes descalças, ignorando o desconforto do solo escaldante e semeado de escorpiões.
Queixam-se da fome e da dureza da vida, mas resistem a abandonar os hábitos tradicionais e quando se pergunta se gostariam de ir para a cidade, a resposta é pronta: “já tem lá muita gente. Estamos melhor aqui”, diz Muanpitacana, acompanhada de um grupo de mulheres e algumas crianças, que vivem numa ‘onganda’ (aldeia provisória) próxima das grutas de Tchitundo-Hulo.
Estão ornamentadas de missangas, cobrem-se com panos azuis, deixando os seios à mostra e exibem os dentes da frente limados em forma de triângulo (mpeleleco), característicos da sua cultura, atributo sem o qual não se sentem mucubais.
“E ficamos mais bonitas”, sorri, vaidosa, Muanpitacana.
Tidos como resistentes e “insubmissos” pela administração colonial portuguesa, os mucubais protagonizaram episódios macabros nas décadas de 1930 e 1940, documentados pelo historiador Rafael Coca de Campos, autor de Kakombola: O genocídio dos Mucubais na Angola Colonial, 1930 – 1943.
Num artigo publicado em 2 de maio de 2022, no site “Esquerda.net” o académico descreve o que uma testemunha escreveu ao governador da província da Huila em 1941, chocada com o que tinha visto em Moçâmedes: “escassas dezenas de miseráveis pretos, homens, mulheres e crianças, que mais pareciam esqueletos cobertos de pergaminho negro (…) arrastando-se como animais, atravessaram a cidade, no meio de uma numerosa guarda de baioneta calada”.
Segundo Rafael Coca de Campos, terão sido encarcerados em campos de concentração e de trabalho forçado, onde a maioria “pereceu em decorrência da brutalidade do sistema de trabalho”.
Hoje os tempos são outros, mas nas tradições – como nas dificuldades – dos mucubais pouco mudou. Quem tem manadas vai atrás de pasto. Os que não têm, “passam fome mesmo”, resigna-se Muantipacana.
Porque ser mucubal é criar bois. A manada deve ser aumentada, não para vender ou para comer, mas para ostentar a riqueza e estatuto social.
Homem sem bois não casa: “a família não lhe dá a mulher, não tem como sustentar”, afirma, categórica, Muantipacana.
Os bois funcionam como o banco dos mucubais e tal como não se pergunta a uma pessoa quanto dinheiro tem na conta, também não é suposto perguntar a um mucubal quantas cabeças de gado possui, avisam.
“Nunca foi cultura dos mucubais vender ou matar os bois para comer, preferem transaccionar cabritos ou galinhas”, explica Paihama Catenga.
Muetchiavi, mãe de sete filhos, é outra das mulheres das comunidades do Virei que falou sobre as suas provações. Diz que não consegue cultivar porque não chove e Paihama confirma que, por esta altura, quando há alguma precipitação a secura da terra e o calor absorvem imediatamente toda a água, inviabilizando as produções agrícolas.
Por isso, vão-se alimentando de frutos silvestres, leite e fuba de milho com que fazem o tradicional funge. Por vezes, não comem nada e a magreza atesta a dieta pobre e pouco variada.
Se a seca continuar, o gado vai desaparecer, lamenta a mulher que recorda que antes, “quando a chuva caía”, os maridos ficavam.
Bauaiala conta que chegou a ter “muitos bois”, mas a seca foi matando os animais e ficaram só os cabritos. O filho, a quem restaram ainda algumas cabeças de gado, foi procurar pasto na fronteira com o Cunene.
“Nós dependemos do gado e está a morrer, o governo tem de nos ajudar”, apela.
Muanpitacana reforça as súplicas. Pede ajuda alimentar, um posto médico, furos de água. “Um não dá para beber, outro está avariado”, diz, acrescentando que estão a recorrer a uma cacimba “de risco” onde vão buscar água cada vez mais fundo.
“Precisamos de apoio”, apela. “Nós confiamos no governo para nos apoiar, não podem nos abandonar, vamos morrer à fome”, lamenta-se.
Mais à frente, já a caminho do município, um rapazito mucubal segue sozinho na estrada, pastando o seu rebanho de cabras, com a inseparável catana que serve para abrir caminho, como defesa pessoal e para disciplinar as reses mais rebeldes.
Um dia também ele, que nunca ouviu falar de alterações climáticas, deixará o deserto com os seus bois, à procura do capim verde, cada vez mais distante.
Folha 8 com Lusa