Nova Lisboa (Huambo). Antes de me despedir, eu gostaria de ter ido à festa da Queima da Raposa, dos finalistas do Colégio Alexandre Herculano, incinerar algumas memórias das negas que abandonei, vivas e tristes, a pairarem, como espíritos malignos, no ar do Cambiote, na anhara junto à casa do Tio Franklin, e que por vezes me visitam.
Por José Filipe Rodrigues
Os amores adolescentes com a Helena, a loira do Liceu (Nacional General Norton de Matos), que de tão perfeita e desejada até parecia oxigenada, a que foi com os pais para o Brasil.
As lágrimas do Júlio, o filho do André, quando soube que os meninos iam para o Puto, a quem a minha mãe ensinou o abecedário e as regras mais perfeitas da caligrafia.
O medo dos xinganges que dançavam junto ao cemitério, perto da loja do Leonel Açoriano.
As derrotas do Mambroa nos jogos decisivos para o campeonato de futebol de Angola, com o Independente de Porto Alexandre ou com o ASA de Luanda.
A palmatória de madeira do Padre Costa, que teimava em ensinar matemática, não com regras simples, com reguadas, até ao momento em que o Kartaus lhe retirou a palmatória das mãos e disse que chegara o dia de um aluno bater no professor por ele não saber ensinar.
As conversas com o Rui Moura, amigo do Ernesto Lara Catabola, que, depois de escrever na Voz dos Mais Novos e n’ O Grito, já era um escritor a sério, e redigia crónicas e críticas para publicar n’ O Planalto.
As fotografias e os poemas do Orlando Castro que conquistavam muitas namoradas e faziam as raparigas sonhar.
O idealismo do Pele Vermelha, o Pelinha, o professor José Duarte, o que sabia tudo sobre os filósofos e os poetas e dava porrada aos alunos que se portavam mal, os que não prestavam atenção à lição.
A bebedeira do Reitor do Liceu no baile dos finalistas, (que mau exemplo para os estudantes,) o que queria ser deputado da Assembleia Nacional, mas nem para ditador tinha um talento especial;.
O Serafim de Carvalho, o professor de ginástica, com uma relação simples com quase todos os estudantes, a quem os ingratos e mal formados, escondidos, para não serem espancados, gritavam uma quadra de escárnio e depois fugiam.
Ó Serafim de Carvalho/que lindo nome tens tu/tira o V de carvalho/ e mete o resto no cu.
Naquele tempo eu tinha medo e não os denunciei, se fosse hoje revelaria as identidades, um a um, numa campanha para tentar acabar com o escárnio que se faz de tantas pessoas boas.
A Menina Mirita, a chefe dos contínuos, a que foi amante do médico mais conhecido da cidade, depois abandonada porque o corpo enruga-se com a idade, a que perdeu a voz de vez com uma doença esquisita, aquela a quem o Ganho humilhava, pedindo-lhe, com sarcasmo, para não gritar tão alto com os alunos.
A morte prematura da minha irmã quando veio visitar a mãe ao hospital, porque os médicos condenaram-na à morte com um cancro maligno.
A minha mãe sobreviveu durante muitos anos, a minha irmã partiu para o lugar das boas memórias, de onde regressa muitas vezes para me inspirar no altruísmo, na simpatia e na afectividade.
Eu queria desembarcar em Lisboa sem memórias, para construir o meu futuro no hemisfério Norte, depois de terem queimado, com um fogo de ódio e de morte, tantas e tantas referências da minha infância e da minha adolescência e todo um passado de suor e honestidade dos meus pais.
O olhar bom e sempre positivo do meu pai, mesmo depois de ter sido roubado e vencido pela guerra fratricida de Angola e pela incoerência dos políticos regressados do exílio, não me avisou de que Lisboa tinha mais prostitutas, de todos os géneros, do que o bairro de Cacilhas, muito mais adornadas do que as da Esmeralda, do bairro de São José, onde os homens apanhavam esquentamentos tratáveis com a penicilina que o Feio comercializava na farmácia da Baixa, junto ao consultório da Doutora Elvira.
Ele não me alertou para o facto de os que respiravam aqueles ares, às pessoas chamavam de retornados, continentais e insulares, e brancos e pretos e mestiços, e indianos, e madeirenses e açorianos, e minhotos e beirões e transmontanos, e ribatejanos e alentejanos e algarvios e muitos meninos, em idade de escola, andarem pelas ruas a pedir esmola.
O meu pai viveu sempre numa espiritualidade positiva e tratava todas as pessoas com dignidade, conversando olhos nos olhos com todas as pessoas.
Ele conhecia todas as capitais dos países e o mundo, das lições dos livros, dos jornais e noticiários das estações de rádio, permitidas e proibidas, e da leitura das pessoas que eram incapazes de conversar olhos nos olhos.
Despediu-se, quase octagenário, depois de tanto sofrer e viver, muito mais jovem do que algum dia eu hei-de ser.
Por tudo isso, depois de não ter ido incinerar as minhas negas na Queima da Raposa do Colégio Alexandre Herculano, eu vivo sempre a partir, sem me despedir.
Agora, o lugar mais belo onde pretendo chegar, depois de percorrer tantos mares e trilhos, é a um paraíso de harmonia, com sorrisos no olhar dos amigos, da minha companheira e dos meus filhos.
Acendam fogueiras, toquem batuques, ergam-se taças de champanhe e rebentem bombas de carnaval, como aquelas que comprávamos na loja do Simões, no Bairro de S. João, na celebração de um novo ano e que arda a raposa das negas, do ódio e do engano.
Nota. José Filipe Rodrigues é colaborador permanente do Folha 8 nos Estados Unidos da América.