O Presidente de Angola foi hoje o cidadão número 591.886 a ser vacinado no país e insistiu na solidariedade internacional para um acesso mais igualitário às vacinas contra a Covid-19, pois “ninguém se vai salvar sozinho”. Este, sensato, aviso de João Lourenço à navegação internacional poderá, algum dia, ter aplicabilidade interna noutros contextos, como seja por exemplo o facto de termos mais de 20 milhões de pobres?
João Lourenço foi uma das altas figuras do Estado angolano acolhidas hoje no centro de vacinação contra a Covid-19 em Luanda, num altura em que os números de infecções não param de crescer em Angola, com as autoridades a mostrarem-se preocupadas com as novas estirpes e a tomarem medidas mais restritivas para prevenir a doença.
Provavelmente os angolanos vão sofrer forte e feio com a pandemia da Covid-19, mesmo considerando que há 45 anos convivem com uma muito mais letal pandemia, conhecida como MPLA-45 e cuja mais recente estirpe chegou ao país em 2017. Acresce que como é um vírus local não preocupa a comunidade internacional, não se vislumbrado por isso qualquer tipo de vacina.
“Reiteramos o nosso apelo para que os países desenvolvidos, que têm a capacidade industrial de produzir vacinas sejam mais sensíveis, e entendam que ninguém se vai salvar sozinho. Ou nos salvamos todos, ricos e pobres, poderosos e não poderosos, ou ninguém se vai salvar. É uma pandemia que atingiu todo o planeta e tem de se atender todo o planeta”, disse João Lourenço, à saída do centro onde recebeu a primeira dose da vacina russa Sputnik V.
Esta constatação do Presidente do MPLA não se aplica ao ancestral problema da pobreza. Neste caso, os ricos – quase todos do MPLA – safam-se sempre (talvez por serem angolanos de primeira). Já os de segunda, esses continuam – sem grande sucesso, diga-se – a aprender a viver se comer.
Além do chefe de Estado e da primeira-dama, Ana Dias Lourenço, receberam a vacina o vice-presidente da República, Bornito de Sousa, o ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, Pedro Sebastião, e a ministra de Estado para a Área Social, Carolina Cerqueira.
Angola recebeu já as primeiras 40 mil doses de um lote de 6 milhões da Sputnik V, adquiridas por cerca de 94 milhões de euros, bem como 624 mil doses da vacina AstraZeneca, no âmbito da iniciativa Covax, e 200 mil doses da Sinopharm numa oferta do Governo chinês.
João Lourenço assinalou que existe pouca capacidade de resposta por parte dos produtores de vacinas, face à procura mundial pelo que deve ser feito um esforço para que as vacinas cheguem aos beneficiários a preço acessíveis, nomeadamente aos países africanos sem grandes recursos financeiros. E recursos financeiros é coisa que Angola não tem, sendo que o pouco dinheiro disponível tem de ser canalizado para projectos mais prioritários, como é o caso do satélite Angosat.
O chefe de Estado manifestou-se, no entanto, optimista que “será ouvido” o apelo dos que mais necessitam para que o problema seja resolvido rapidamente. Será? É que o apelo dramático dos nossos 20 milhões de pobres não consegue sequer chegar ao Palácio Presidencial, em Luanda.
O Presidente admitiu, porém, que o executivo angolano não confia apenas no que é oferecido e que vai ser necessário comprar mais vacinas. Sendo que o Governo trabalhou sempre, ao longo dos últimos 45 anos, para que os poucos que têm milhões tenham mais milhões, esquecendo-se dos cada vez mais milhões que têm pouco ou nada, não seria viável pedir ajuda a esses milionários, começando pelo Titular do Poder Executivo?
“Esse esforço está a ser feito, apesar das dificuldades que existem. À medida que vamos mobilizando mais recursos financeiros vamos continuar a lutar por adquirir mais vacinas”, realçou.
Mas será que tudo se resume às vacinas? Parecido só mesmo aquele caso em que a comunidade internacional mandou toneladas de antibióticos para o Biafra para acudir, com extrema urgência, à situação catastrófica do país. Tempos depois as autoridades do Biafra devolveram, intactos, todos os antibióticos. Quando os doadores, estupefactos, pediram uma explicação, foi-lhes dito: «Os medicamentos que enviaram são para tomar depois de uma coisa que o nosso povo não tem, refeições».
Angola usou até à data mais de 620 mil doses de vacinas contra a covid-19, incluindo 40 mil pessoas já totalmente vacinadas (com a primeira e segunda doses administradas).
O país registou até quarta-feira 29.405 casos desde o início da pandemia, incluindo 645 óbitos, 25.187 recuperados da doença e 3.573 activos.
O governo que temos há 45 anos garante de forma categórica a lisura e a transparência na gestão das vacinas. Como árbitro, jogador, dono da bola e do campo e, ainda, com poder para escolher como alinha a equipa adversária, o MPLA pode garantir tudo o que bem entender.
Esta realidade, visível até por quem for cego, é legitimada desde sempre por uma coisa abstracta que dá pelo nome de comunidade internacional. Enquanto o Povo, a bem ou a mal, não transformar o bandido bestial em besta, essa coisa abstracta continuará a dizer que o bandido é bestial.
Todos, sobretudo os que estão do lado de fora amamentando-se do que está do lado de dentro, parecem acreditar que há um remédio milagroso para, por exemplo, garantir a boa governação em Angola. E esse remédio é manter no Poder os corruptos.
Em Angola a boa governação é, mais ou menos, como querer curar a ferida do pai dando antibióticos ao filho. Mas se é isso que a tal entidade abstracta quer, assim será. E os angolanos (sobretudo os 20 milhões de pobres) que se lixem.
É claro que, em Angola como em qualquer outro país, a razão da força impõe as suas regras. E, perante isso, os angolanos têm duas opções: ou aceitam… ou aceitam. Até um dia.
Folha 8 com Lusa