Quando nestes últimos dois dias vi com horror imagens das cheias de Luanda, vieram-me à memória tempos da minha infância. Mais precisamente memórias do dia 20 de Abril de 1963, quando caiu sobre Luanda uma enorme tempestade tropical bem típica dos meses de Março e Abril, naquela região do globo.
Por Carlos Pinho (*)
Durante toda a madrugada e parte da manhã a trovoada e a chuva intensa não deram descanso aos luandenses. As crianças e mulheres choravam e rezavam, impotentes perante tamanha manifestação do poder da natureza perante a insignificância dos homens.
Quem pesquisar na internet usando os temas “Enxurradas em Luanda em 1963” ou “Chuvas intensas em Luanda em 1963” conseguirá descobrir imagens da altura, essencialmente referentes à parte baixa da cidade.
Nas fotos que ilustram este texto, mostra-se essencialmente a parte baixa da cidade à excepção da referente à Rua de Timor no Bairro do Cruzeiro.
O que então aconteceu foi o resultado de deficiências no planeamento urbanístico que desrespeitou as linhas de água e ravinas naturais, as quais permitiam o escoamento livre das águas pluviais nas alturas críticas. Imagens das zonas mais pobres e degradadas da cidade não consegui obter, mas como na altura os musseques não tinham as dimensões e densidades populacionais actuais, presumo que a situação não tenha sido tão gravosa como a presente.
Como resultado do que se passou naquele longínquo Abril de 1963 fizeram-se algumas intervenções na cidade de modo a se garantir que tal não viesse de novo a acontecer. Lembro-me que uma das maiores intervenções foi na actualmente chamada Rua da Missão, antiga Luís de Camões, assim como o famoso rio seco que ia (e hoje ainda vai) do Bairro Alvalade, lá pertinho da Rua Cabral Moncada, até à Samba, ou se quiserem até ao final da Praia do Bispo.
Sei que houve intervenções análogas nalguns musseques, embora dada a minha pouca idade na altura, não possa garantir a veracidade de tal facto. Contudo das informações que recolhi, constato que houve igualmente intervenções na zona alta da cidade, mormente alargadas ruas e avenidas e criadas barreiras de sustentação de alguns morros. De um modo geral, aquilo que foi feito na sequência de 1963 prestou logo provas em 1967 e os danos neste último caso foram menores. Ou seja, houve humildade e profissionalismo para proteger a cidade e seus cidadãos.
E hoje em dia, ou melhor, o que é que nestes 45 anos e mais uns meses de independência o partido do governo fez para melhorar e proteger a cidade e seus habitantes?
Bom, foi impotente para travar a ganância de construtores civis que vêm enchendo a baixa de altíssimos edifícios, não cuidando da pouca ou nenhuma adequação das redes de água, de saneamento, de escoamento de águas pluviais, de estradas, para levar em conta as novas e enormes solicitações que estes edifícios impõem em termos de consumos de produção de efluentes e de tráfego. A baixa de Luanda continua na mesma, ou melhor, segue para pior, com os tais mamarrachos, sendo que ruas e outras infra-estruturas que estavam minimamente dimensionadas para a dimensão dos edifícios à altura da independência, são agora manifestamente insuficientes para lidar com as implicações de tais monstros.
Depois, ainda no que respeita à baixa, em todo e qualquer terreno ou combro ou barroca livre, foram construídas habitações deficientes e precárias, bairros de lata ou musseques, chamem-lhes o que quiserem. Até podem usar o termo carioca e politicamente correcto de comunidades. Ou seja, as zonas de risco e de escoamento de águas foram ocupadas. O solo dessas barrocas e escarpas ficou mais ou menos impermeabilizado. Quando vem a enxurrada, essas habitações deficientes são as primeiras a serem varridas.
Nas zonas periféricas ou nos musseques da cidade, a construção desordenada e caótica, com ocupação de linhas de água e a acumulação do lixo devido à incapacidade da gestão autárquica da cidade em resolver este problema, tudo isto contribuiu para uma desgraça anunciada há muitos anos e que se verificou nestes últimos dias.
Mas o mau exemplo não veio das populações fugidas à guerra que poucas ou nenhumas alternativas teriam. Veio daqueles autarcas e governantes que alinharam nos habituais esquemas tão queridos aos políticos de MPLA em particular e angolanos em geral. Senão, porque é que deixaram construir um prédio no parque de estacionamento que havia junto à Cervejaria Biker, e outro no parque de estacionamento do Cinema Karl Marx, antigo cinema Avis, lá no Bairro Alvalade, ou deixaram construir aquele centro comercial-mono junto ao Morro da Fortaleza?
E o mercado do Kinaxixe, obra de arquitectura emblemática substituído por um mero centro comercial, igual a qualquer outro por esse mundo afora? Como é que há gente que autoriza tais barbaridades e fica impune? E o gabarito dos edifícios construídos e em construção na baixa, sem nesta existirem infra-estruturas adequadas? E a conversa que anda por aí a propósito de um metropolitano em Luanda. Na baixa? Subterrâneo? Mas como, se aquilo é tudo areia e em escavando se encontra a dois ou três metros de profundidade água salobra em abundância? Vão construir túneis sobre estacas ou tuneis flutuantes naquela mistura de água salobra e areia em suspensão? Flutuantes e perfeitamente impermeáveis. Vai ficar um metropolitano pago a peso de ouro, vai sobrar gasosa para muita gente e o povo vai continuando a se lixar.
E esta paródia vem continuando alegremente. Hoje os principais partidos com realce para o MPLA, choram lágrimas de crocodilo pelas pessoas mortas e pelas outras desgraças acontecidas aos desalojados. É mesmo? Esse chorinho é mesmo sincero? Caramba, desculpem, mas não dá para acreditar. O que as senhoras e os senhores dirigentes, autarcas e governantes do MPLA estão de momento a fazer é assobiar para o lado, a ganhar tempo para depois seguir a farra.
Esta gente, uns verdadeiros bandidos, vem há mais de quatro décadas a pilhar alegremente Angola e continua impune, porque toda a estrutura de poder está construída para os proteger e desresponsabilizar. Afinal, tal é mais que lógico, estão todos a comer da mesma gamela.
E conseguiram destruir alegremente a minha querida cidade de Luanda. Querem, penso eu, convertê-la numa Manhattan ou numa Singapura à moda africana. Só que não têm nem honestidade nem capacidades intelectuais e de trabalho para conseguirem tal desiderato, conseguiram apenas uma Manhattan ou numa Singapura à moda do MPLA, isto é, com a mediocridade que se lhes conhece. E o problema do lixo de Luanda, e não só, noutras cidades há casos semelhantes, só que de memores dimensões, é a melhor prova da cabal incapacidade de MPLA para governar o que quer que seja.
E além de alinharem em esquemas para sacarem umas massas em proveito próprio e depois irem curtir para as arábias, não souberam gerir o alojamento dos deslocados da guerra civil, isto não só em Luanda, mas também na zona de Benguela-Lobito.
Aliás, neste último caso, os avisos da natureza têm sido mais do que frequentes.
E tanto em Luanda, como na região de Benguela-Lobito, a natureza ir-nos-á avisando periodicamente das nossas burrices, para desespero e fatalidade dos mais despreparados e desprotegidos.
Contudo, não se pode vir com o discurso catastrofista de que Luanda é uma cidade sem solução. Há sempre solução desde que haja inteligência e vontade de trabalhar. E, é claro, se use devidamente o dinheiro ao invés de o consumir em esquemas tão ao gosto dos políticos de MPLA em particular e angolanos em geral.
A única maneira de retirar o excesso de população, quer de Luanda quer de Benguela-Lobito, os dois casos verdadeiramente muito graves de Angola, no que diz respeito às cidades sobrepovoadas, será o de se criarem condições que levem as populações, de motu próprio, para as sua terras de origem. Incentivação à agricultura, ao comércio, à indústria, ao alojamento, escolas, hospitais, etc.. Isto terá de ser um projecto a 10 ou 20 anos. Bem amadurecido e pensado, e principalmente gerido pelas províncias, nunca pelo governo central.
No caso da colonização de Angola, os portugueses tinham conseguido criar cidades razoavelmente distribuídas pelo país com dimensões relativamente equilibradas, ao contrário do que aconteceu nas colónias de outros países europeus, onde praticamente só havia uma única cidade sendo esta com uma dimensão desproporcional comparativamente às outras localidades. No caso de Angola havia algum equilíbrio, não obstante Luanda sobressair em dimensão. Actualmente, com os deslocados da guerra civil, Luanda e o binómio Benguela-Lobito, sobressaem pelas más razões. Há que resolver isto de um modo ponderado e sensato.
Agora convenhamos, não é com esta gente que lidera o MPLA que o país lá vai. Esta rapaziada só tem cabeça para nela enfiar um boné, os homens, e um turbante, as mulheres, e nada mais. Ou seja, é gente que nem sequer consegue imaginar que a cabeça serve para pensar em coisas mais sérias do que berrar uns slogans e engendrar uns esquemas para sacar, em proveito próprio, umas massas ao erário público.
Só que a realidade dos slogans é bem mais pérfida, a evidência experimental continua a gritar alto e bom som “o MPLA é o lixo e o lixo é o MPLA”, que agora, infelizmente para os pobres luandenses passou a ser complementado por “o MPLA é a enxurrada e a enxurrada é o MPLA”.
(*) Professor na FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.