“Finalmente” um português ficou gravemente ferido numa operação de resgate de Palma, vila sob ataque de rebeldes armados desde quarta-feira, junto aos projectos de gás natural de Cabo Delgado, norte de Moçambique. Talvez agora Portugal, a União Europeia, a ONU e a CPLP acordem e deixem de gozar à grande, neste caso, com a chipala dos moçambicanos.
Por Orlando Castro (*)
O ferido foi encaminhado para Pemba, capital provincial de Cabo Delgado, 250 quilómetros a sul, por via aérea, a partir do aeródromo do recinto do projecto de gás natural, na península de Afungi, para onde foi resgatado juntamente com outras pessoas.
Cerca de 200 refugiaram-se no hotel Amarula, em Palma, desde quarta-feira à tarde, quando o ataque armado à vila começou. Entre eles há trabalhadores de várias nacionalidades ligados às empresas que trabalham no projecto de gás natural liderado pela petrolífera francesa Total.
Na quinta-feira, começaram operações de resgate do hotel para dentro do recinto protegido da petrolífera Total, a seis quilómetros, acções que continuaram na sexta-feira, altura em que uma das caravanas foi atacada, disse à Lusa fonte que acompanha as operações. Na altura foram reportadas sete mortes, mas a mesma fonte disse hoje que o número de vítimas é ainda incerto.
Um residente que, juntamente com outros, fugiu de Palma, disse na sexta-feira que são visíveis corpos de adultos e crianças assassinadas nas ruas da sede de distrito. Um número incalculado de pessoas está desde quarta-feira a fugir para a península de Afungi, após o ataque que na sexta-feira entrou no terceiro dia de confrontos.
A Comissão Nacional dos Direitos Humanos de Moçambique pediu na sexta-feira apoio para o resgate de cerca de 600 funcionários do Estado que estão nas proximidades de Palma.
O ataque é o mais grave junto aos projectos de gás após três anos e meio de insurgência armada à qual a sede de distrito tinha até agora sido poupada. A violência está a provocar uma crise humanitária com quase 700 mil deslocados e mais de duas mil mortes.
Algumas das incursões foram reivindicadas pelo Estado Islâmico entre Junho de 2019 e Novembro de 2020, mas a origem dos ataques continua sob debate.
Enquanto em Cabo Delgado, norte de Moçambique, morrem moçambicanos vítimas de ataques terroristas, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, sorri, olha para o lado e justifica que a diplomacia europeia está a preparar o “documento político” de enquadramento da missão europeia de apoio ao combate ao terrorismo. Quanta hipocrisia, quanta vilanagem, quanto nojo.
“O Serviço de Acção Externa está a trabalhar com a Comissão Europeia no documento político de abordagem de crise, que é essencial para que a missão de treino se possa fazer”, afirmou Augusto Santos Silva, durante um debate sobre política externa no (Par)lamento português.
O governante, que em Janeiro liderou uma missão política a Maputo enquanto delegado do Alto Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa, Josep Borrell, explicou que, entretanto, estão já a ser implementadas no terreno iniciativas de acção humanitária e apoio ao desenvolvimento.
Neste contexto, Santos Silva apontou um projecto de apoio à criação de emprego, que está a ser gerido pela Cooperação Portuguesa. Será, no caso de Cabo Delgado, uma espécie de emprego para mortos? De agências funerárias?
A violência armada em Cabo Delgado, onde se desenvolve o maior investimento multinacional privado de África, para a exploração de gás natural, está a provocar uma tremenda crise humanitária com milhares de pessoas deslocadas, sem habitação, nem alimentos, o que levou as autoridades moçambicanas a pedir auxílio à UE.
Presumiram as autoridades moçambicanas que pedir auxílio seria uma forma de os moçambicanos estarem vivos quando a ajuda chegasse. Infelizmente enganaram-se. Já deveriam ser menos ingénuos.
Para melhor determinar o quadro de apoio a prestar às autoridades moçambicanas, Josep Borrell solicitou ao ministro dos Negócios Estrangeiros português que se deslocasse a Maputo enquanto seu representante, o que aconteceu em Janeiro.
No regresso da missão política a Maputo, Augusto Santos Silva adiantou que as prioridades de apoio identificadas em conjunto com as autoridades moçambicanas passam pelo reforço da cooperação entre a UE e Moçambique nas áreas da acção humanitária e dos projectos de apoio ao desenvolvimento e pelo “aumento significativo” da cooperação na área da segurança.
E enquanto a diplomacia europeia está a preparar o “documento político”, os moçambicanos vão morrendo, vão sendo mortos. São mortos sentindo e gemendo de dor em… português. Se não fossem pretos, certamente teriam mais sorte. Esta é que é a realidade. Ser vítima de terrorismo é só por si um drama. Ser negro é duplamente dramático. Ser negro e africano é ainda mais dramático. E se a ser negro e africano se juntar a dependência da Europa e sobretudo deste Portugal… é a morte certa.
Segundo esse engenheiro de obras feitas que dá pelo nome de Augusto Santos Silva, “o que está em causa é o apoio à formação e treino de forças militares moçambicanas, para que sejam mais capazes de responder à insurgência” bem como apoio logístico e de equipamentos. E tudo isso acontecerá se, entretanto, “ainda” houver moçambicanos vivos.
Africanos e europeus
De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (em alguns casos continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos dos colonizadores. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial, por exemplo, deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.
Neste conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem? Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano é obra desenganada. Infelizmente.
De uma forma geral, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso, que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem”.
Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento ao seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando.
Suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição ocidental em dominar as riquezas autóctones.
A tudo isto acresce a megalómana tese europeia de que a História só é válida quando são os europeus a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.
Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.
(*) Com Lusa