O líder do Clube de Paris disse hoje que os credores privados terão de participar no alívio da dívida dos países mais vulneráveis, admitindo, ainda assim, a possibilidade de haver “excepções específicas e muito limitadas”.
Em entrevista à agência de informação financeira Bloomberg, o chefe do Tesouro do Ministério das Finanças da França, Emmanuel Moulin, que acumula a presidência do Clube, disse que “um tratamento de dívida ao abrigo do Enquadramento Comum para o Tratamento da Dívida para além da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) vai requerer que os credores privados forneçam um esforço pelo menos tão importante como aquele que é dado pelos credores oficiais bilaterais”.
Ainda assim, acrescentou, “isso não significa necessariamente uma redução nos termos do valor actual líquido, pode haver um reperfilamento da dívida”.
A DSSI é uma iniciativa lançada pelo G20 em Abril do ano passado que garantia uma moratória sobre os pagamentos da dívida dos países mais endividados aos países mais desenvolvidos e às instituições financeiras multilaterais, com um prazo inicial até Dezembro de 2020, que foi depois prolongado até Junho deste ano, com possibilidade de nova extensão por seis meses.
Esta iniciativa apenas sugeria aos países que procurassem um alívio da dívida junto do sector privado, ao passo que o Enquadramento Comum, aprovado pelo G20 em Novembro, defende que é forçoso que os credores privados sejam abordados, ainda que não diga explicitamente o que acontece caso não haja acordo entre o devedor e o credor.
O pedido de adesão a este Enquadramento por parte da Etiópia, no final de Janeiro, agitou os investidores, que encararam o país como o primeiro de vários países na África subsaariana a pedirem alívio da dívida, o que é também a perspectiva da directora executiva da Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA), que antevê que mais países sigam o exemplo do Chade, da Zâmbia e da Etiópia.
A proposta apresentada pelo G20 e Clube de Paris em Novembro é a segunda fase da DSSI, lançada em Abril, e que foi bastante criticada por não obrigar os privados a participarem do esforço, já que abriria caminho a que os países endividados não pagassem aos credores oficiais e bilaterais (países e instituições multilaterais financeiras) e continuassem a servir a dívida privada.
Este Enquadramento pretende trazer todos os agentes da dívida para o terreno, incluindo os bancos privados e públicos da China, que se tornaram os maiores credores dos governos dos países em desenvolvimento, nomeadamente os africanos.
“A longo prazo, o Enquadramento Comum pode ser a antecâmara para a China juntar-se ao Clube de Paris como membro pleno”, disse Emmanuel Moulin, apontando também que a França vai propor, na próxima reunião do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, em Abril, um aumento dos Direitos Especiais de Saque (DES) no valor de 500 mil milhões de dólares, cerca de 413 mil milhões de euros, uma iniciativa que, apesar de repetidamente defendida pelos governos africanos, foi bloqueada no ano passado pelo antigo governo dos Estados Unidos da América.
“Vários países na Europa estão a favor de uma nova alocação de DES, por isso vamos trabalhar intensamente para que isso aconteça, e quanto mais cedo melhor”, concluiu o governante.
Os DES são uma espécie de reservas do FMI que só podem ser desbloqueadas com o apoio dos membros com maior poder de voto, como é o caso dos EUA, que têm poder de veto sobre esta iniciativa.
Metamorfoses da dívida africana
Há décadas a dívida africana mobiliza a atenção das instituições financeiras internacionais e das associações que reclamam pura e simplesmente a sua anulação. Alguns países desendividaram-se graças ao aumento do preço das matérias-primas, porém, outros construíram novos passivos e são ameaçados por fundos abutres.
Na euforia das independências, conquistadas nos anos 1960, os países da África subsaariana quiseram romper com a divisão internacional do trabalho que lhes dava o papel de exportadores de matérias-primas e importadores de bens manufacturados.
Esforçaram-se para diversificar as suas economias pela industrialização e ampliação das suas capacidades produtivas, mas chocaram imediatamente com uma dificuldade: com a notável excepção da África do Sul e da Rodésia (Zimbábue), na época governadas por uma minoria branca, nenhum desses países tinha acesso aos mercados internacionais de capitais por não possuírem a chave mágica entregue pelas agências de notação de risco.
Foram então obrigados a limitar-se aos fundos privados garantidos pelos Estados, aos fundos bilaterais acordados pelo Clube de Paris e aos fundos multilaterais emprestados pelas organizações internacionais: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Africano de Desenvolvimento (BAD).
Ao mesmo tempo, as receitas das exportações com as quais contavam para investir encolheram, principalmente em função da queda do preço mundial dos produtos agrícolas, cujo índice passou de 155 em 1977 para 94 em 2002. Os custos das importações, por sua vez, aumentaram sem parar. Em 1979, a alta das taxas de juros dos EUA, decidida unilateralmente para lutar contra a desvalorização do dólar, acabou por fazer explodir a dívida do continente.
Desse modo, para “higienizar” as suas contas, os países africanos voltaram novamente para as instituições financeiras internacionais. Estes ofereceram os “remédios que matam”: os programas de ajustamento estrutural (PAS) – os quais impõem a desregulação financeira, o livre-comércio, as privatizações, a redução dos salários, os cortes orçamentais etc.. Estes programas multiplicaram-se, prescrevendo a todos a mesma poção liberal.
Através da iniciativa Países Pobres Muito Endividados (PPME), lançada em 1996, 36 países, dos quais 30 africanos, beneficiaram de uma diminuição total de 76 mil milhões de dólares do valor das dívidas bilaterais e multilaterais. No entanto, segundo o Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), estas medidas foram um engano: o valor da dívida da África subsaariana passou de 2 mil milhões de dólares em 1970 para 331 mil milhões de dólares em 2012, apesar de os reembolsos efectuados no período chegarem a 435 mil milhões de dólares, o equivalente a quatro vezes o capital emprestado.
Além disso, os países africanos enfrentam os fundos de investimento baptizados de “abutres”. Estes compram ao preço da chuva, de “segunda mão”, dívidas de Estados em dificuldade. Aguardam o regresso destes países a uma situação normal (o fim dos problemas políticos, por exemplo) e convertem as dívidas perante jurisdições dos Estados Unidos e do Reino Unido para a cobrança das dívidas, dos atrasos de reembolsos e dos juros. Uma primeira onda atingiu a África entre 2000 e 2008, ano da crise financeira mundial. O número exacto de ataques é difícil de avaliar, pois, para não afectarem sua imagem, os Estados preferem evitar a mediatização e negociam com os fundos abutres fora dos tribunais.
Segundo o FMI, 17 processos foram iniciados contra PPME, dos quais 15 africanos. Em Abril de 2014, uma decisão do Tribunal de Recurso dos Estados Unidos deu razão à República Democrática do Congo (RDC) contra o fundo abutre FG Hemisphere Associates. Em primeira instância, este tinha obtido o direito de se apropriar de bens da Sociedade Geral de Estradas e Minas (Gécamines) com a justificação de que esta deveria responder pelas dívidas do Estado ao qual pertence. O FG Hemisphere reclamava 104 milhões de dólares da RDC a título de um contrato de fornecimento de energia que não foi pago.
Obviamente, desde a crise financeira de 2008, os fundos abutres voltaram-se para os mercados europeus, mas nem por isso deixaram de lado a África. Em 2010, o BAD criou a Facilidade Africana de Apoio Jurídico (FAAJ), a fim de sensibilizar os governos para a importância dos aspectos jurídicos da gestão da dívida soberana. A FAAJ insiste na necessidade de serem acompanhados por conselheiros experientes.
Dois acontecimentos suscitam ao mesmo tempo uma esperança de desenvolvimento e um temor de reendividamento. Primeiro, a presença cada vez mais firme no panorama africano de países emergentes, como China, Índia, Coreia do Sul, Malásia, Turquia e Brasil. Desde o início dos anos 1990, as exportações de matérias-primas a preços melhores trouxeram um real benefício aos países da região. Isso aumentou as opções de crescimento económico e deu-lhes uma hipótese de reduzir o saldo das suas dívidas graças ao crescimento das receitas externas.
Foi assim que a Nigéria, maior potência económica do continente, pôde, em Novembro de 2005, pagar dois terços dos 18 mil milhões de dólares que devia aos credores do Clube de Paris. Em 2009, Angola tornou-se o principal parceiro comercial africano da China. Pequim anulou a dívida angolana, de 67,38 milhões de Yuanes, e suprimiu as taxas de alfândega para as importações de 466 categorias de produtos em favor de Luanda. O mapa dos investimentos chineses recobre o dos recursos naturais preciosos: Sudão, Angola e Nigéria para petróleo; África do Sul para carvão e platina; RDC e Zâmbia para cobre e cobalto.
Se o envolvimento crescente de Pequim abre possibilidades, também traz riscos para o desenvolvimento africano. Os chineses tomaram o controlo de certas indústrias locais, adquirindo de uma só vez as cotas de exportação sobre os mercados ocidentais de produtos africanos como o têxtil. Pequim estuda o mercado da Etiópia, cujas exportações de têxteis cresceram 257% em dez anos. Da mesma forma, o modelo de cooperação adoptado consiste num pacote que combina investimentos directos, empréstimos concessionais (que compreendem uma parte em doações – em princípio, pelo menos 35%), comércio e ajudas públicas.
Sem regras de repartição dos custos, nem sempre é possível determinar se os empréstimos concessionais são incluídos no valor da dívida ou são parte integrante da ajuda. Levando em conta o importante volume de empréstimos desse tipo, a preocupação quanto ao fardo futuro da dívida dos países africanos aumenta se, na óptica chinesa, os empréstimos concessionais forem assimiláveis à ajuda.
Segundo acontecimento: a abertura para a África dos mercados de capitais. Diversos países receberam a chave que constitui o grau de investimento atribuído pelas agências de notação de risco – Congo-Brazzaville, Costa do Marfim, Egipto, Gana, Quénia, Moçambique, Uganda, Ruanda, Senegal e Zâmbia, principalmente. Essa nota revelou-se, na maioria dos casos, superior ou igual à de nações industrializadas como a Turquia, o Brasil ou a Argentina. O interesse dos investidores internacionais por estes mercados aumentou nos últimos anos. Consideram a maioria deles mercados intermediários a alto rendimento. Os investidores institucionais nacionais – tais como bancos, empresas de seguro ou fundos de pensões privados – e os investidores privados locais também são activos.
Desde 2007, países como Senegal, Gabão e Gana levantaram centenas de milhões de dólares no mercado de capitais. A tendência é aumentar. O Quénia lançou um título de crédito de 25 mil milhões de dólares para a construção de um segundo porto, de um gasoduto de 2 mil quilómetros e de uma estrada para o transporte do petróleo a partir do Sudão do Sul. Na Etiópia, a barragem da Renascença foi financiada graças a títulos subscritos pelos próprios etíopes.
Entre os países africanos que souberam atrair os capitais privados pela emissão de títulos, figura o Ruanda, cujo Banco Central emitiu os seus primeiros empréstimos em dólares em Abril de 2013. Segundo o index Bloomberg, os investidores obtiveram um nível de rentabilidade da ordem de 9,3%, o que é superior à taxa de 6,6% gerada pelos mercados dos países emergentes. Como explica Aboubacar Fall, presidente do Conselho de Gestão da FAAJ, “esse sucesso financeiro deve-se essencialmente à boa qualidade das reformas estruturais empreendidas pelo Ruanda há diversos anos, assim como à diversificação das bases de sua economia”.
Em Maio de 2014, durante um encontro em Maputo, Moçambique, a então directora-geral do FMI, Christine Lagarde, revelou-se preocupada a banqueiros, ministros da Economia e bancos centrais da África subsaariana: “Os governos deveriam mostrar-se atentos e prudentes, a fim de não sobrecarregarem os seus países com dívidas públicas”, alertou, antes de precisar que, ainda que isso representasse “um financiamento suplementar”, era também “uma vulnerabilidade suplementar”.
O risco de superendividamento, no entanto, permanece limitado. As finanças públicas melhoraram, cinco países da região (Benim, Togo, Guiné-Bissau, Burkina Faso e Costa do Marfim) estamparam inclusive superavit, a inflação estava controlada, as reservas de moeda estrangeira e as poupanças aumentaram, a dívida externa foi reduzida. Assim, para Tiémoko Meyliet Koné, governador do Banco Central dos Estados da África do Oeste (BCEAO), “as perspectivas de crescimento da União Económica e Monetária do Oeste Africano (Uemoa) são favoráveis. Mostram que a dívida deveria permanecer estável no conjunto dos Estados-membros”.
Para mobilizar os fundos necessários aos grandes investidores dos quais necessitam particularmente na agricultura, na energia e na infra-estrutura, os governos africanos e as empresas públicas e privadas recorrem cada vez mais aos empréstimos nos mercados de capitais nacionais, regionais e internacionais. O investimento público, essencial para recuperar o atraso económico, chegou a ocupou o seu lugar nas políticas nacionais.
Iniciativa Países Pobres Muito Endividados (PPME): programa de redução das dívidas gerado pelo Banco Mundial e pelo FMI. Lançado em 1996, organiza-se em torno de medidas de liberalização da economia que permitem a um país ser declarado elegível (ponto de decisão), depois ter diminuições provisórias da sua dívida até que ela se torne “suportável” (ponto de conclusão). Os credores acordam então uma redução estabelecida do valor da dívida. O impacto da iniciativa PPME pode ser medido principalmente pelos índices de serviço da dívida. Para os 36 países que tocaram o ponto de decisão, o serviço da dívida relacionado ao PIB passou, segundo o FMI, de 2,9% em média em 2001 para 0,9% em 2011.
Iniciativa para o Alívio da Dívida Multilateral (IADM): lançado em 2005 pelo G8 de Gleneagles, dirige-se aos países que atingiram o ponto de conclusão da iniciativa PPME. Estes beneficiam de uma anulação do conjunto das suas dívidas para com o FMI, o Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento.
Acordos de Parceria Económica (APE): regem as relações comerciais entre a União Europeia e os países da África, das Caraíbas e do Pacífico (ACP). Prevêem medidas de livre-comércio.
Africa Growth Opportunity Act (Agoa): lei votada pelo Congresso dos Estados Unidos em 2000 e renovada em 2014. Graças a tarifas preferenciais, facilita a exportação para o mercado norte-americano de uma lista de produtos provenientes dos 40 países africanos declarados elegíveis.
Folha 8 com Lusa e Le Monde Diplomatique
Foto: John Baptist Wandera/CIFOR