Isabel dos Santos pode ser ouvida em Portugal ou noutro país com acordos judiciários com Angola, no âmbito do processo-crime por alegada má gestão e desvio de fundos da Sonangol, disse à Lusa fonte da Procuradoria-Geral da República (PGR) angolana. É a magnanimidade de um náufrago que, por andar à deriva, vê nas estrelas a salvação. Com a diferença de que só as vê durante o dia e quando o sol é radioso…
Na semana passada, uma fonte próxima da filha do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, considerou “injustificada” a emissão de um mandado de captura internacional contra a empresária, garantindo que tem existido “absoluta disponibilidade” de Isabel dos Santos para se manter em contacto com os tribunais.
Comentando estas declarações, fonte da PGR (depois de, no âmbito da separação de poderes, ter recebido ordens superiores) considerou que poderá não ser necessária a emissão de um mandado, mas destacou que a audição do arguido é fundamental para exercer o contraditório e se defender das acusações.
Finalmente alguém lembrou (e esse alguém não foi, com certeza, Bruce Lee) a PGR que – mesmo que apenas formalmente – contraditório é um princípio de igualdade entre as partes, permitindo que cada uma possa contestar a outra parte ou contra-argumentar, e não – como sempre pensou a PGR – estar contra.
“Se está disposta a colaborar com a justiça, poderá não haver a emissão de um mandado de captura, mas essa colaboração passa por uma audição presencial que pode ser feita em Portugal ou outro país onde se encontrar”, declarou, explicando que essa audição pode ser solicitada através de uma carta rogatória.
As autoridades angolanas notificaram Isabel dos Santos em Luanda, mas a empresária “se estiver fora, pode perfeitamente pedir para ser ouvida noutro Estado com o qual exista cooperação judiciária”, reforçou a PGR. Sobre o processo, não quis adiantar detalhes por se encontrar ainda em fase de instrução (como se isso fosse um problema quando convém à acusação) e decorrerem “diligências investigativas”, mantendo-se o segredo de justiça.
Isabel dos Santos é visada, em Angola, em processos criminais e cíveis em que o Estado angolano reclama mais de cinco mil milhões de dólares (4,4 mil milhões de euros). O processo-crime partiu de uma denúncia do seu sucessor (entretanto demitido) à frente da petrolífera estatal Sonangol, Carlos Saturnino, relativa a transferências monetárias alegadamente irregulares durante a gestão de Isabel dos Santos.
Além da filha do antigo Presidente angolano, são também arguidos Sarju Raikundalia, ex-administrador financeiro da Sonangol, Mário Leite da Silva, gestor de Isabel dos Santos e presidente do Conselho de Administração do BFA, Paula Oliveira, amiga de Isabel dos Santos e administradora da NOS, e Nuno Ribeiro da Cunha, gestor de conta de Isabel dos Santos no EuroBic, que morreu no passado mês de Janeiro.
A empresária viu também as suas contas bancárias e participações sociais serem arrestadas em Portugal e em Angola. Isabel dos Santos tem sempre afirmado a sua inocência, acusando a justiça angolana de forjar provas, e diz ser vítima de perseguição política.
Em Janeiro, o Consórcio Internacional de Jornalismo divulgou também mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de “Luanda Leaks”, que detalham alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais.
Fantasmas atormentam muita gente
O Presidente João Lourenço pediu em Novembro de 2017 aos então mais ou menos novos administradores da Sonangol, empossados após a exoneração de Isabel dos Santos, que “cuidassem bem” da concessionária estatal petrolífera, por ser a “galinha dos ovos de ouro” de Angola.
Menos de 24 horas depois de a Casa Civil do Presidente da República ter anunciado a exoneração do Conselho de Administração da Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol), o chefe de Estado deu posse à nova equipa da petrolífera estatal, que passava a ser liderada por Carlos Saturnino.
“Continue a ser, para a nossa economia, a galinha dos ovos de ouro. Eis a razão por que fazemos este apelo, para que cuidem bem dela”, disse João Lourenço, na cerimónia realizada no Palácio de Presidencial, em Luanda.
O até então secretário de Estado dos Petróleos, Carlos Saturnino, era assim nomeado e empossado como novo presidente do Conselho de Administração da Sonangol. Naquele cargo, o chefe de Estado empossou então Paulino Jerónimo, que até Setembro de 2017 fora presidente da comissão executiva da Sonangol.
Carlos Saturnino, que passava a liderar o maior grupo angolano, totalmente público (ou seja, do Estado/MPLA), foi até Dezembro de 2016 presidente da comissão executiva da Sonangol Pesquisa & Produção, tendo sido demitido por Isabel dos Santos, com a acusação de má gestão e de graves desvios financeiros.
“Não é correcto, nem ético, atribuir culpas à equipa que somente esteve a dirigir a empresa no período entre a segunda quinzena de Abril de 2015 e 20 de Dezembro de 2016”, respondeu na altura Carlos Saturnino, que em pouco mais de um mês como secretário de Estado dos Petróleos, nomeado por João Lourenço, tutelava a Sonangol a partir do Governo.
A empresária Isabel dos Santos, a filha mais velha de José Eduardo dos Santos, tinha sido nomeada para presidente do Conselho de Administração da Sonangol, pelo pai, em Junho de 2016, com a concordância de todos os membros do Governo (incluindo do ministro da Defesa, João Lourenço) e com a tarefa de assegurar a reestruturação da petrolífera estatal.
Em substituição, além do então novo presidente do Conselho de Administração, o Presidente nomeou, para administradores executivos, Sebastião Pai Querido Gaspar Martins, Luís Ferreira do Nascimento José Maria, Carlos Eduardo Ferraz de Carvalho Pinto, Rosário Fernando Isaac, Baltazar Agostinho Gonçalves Miguel e Alice Marisa Leão Sopas Pinto da Cruz.
Quem explica a verdade? Era bom, era!
Mas, afinal, Isabel dos Santos (essa perigosíssima marimbonda só comparável a Jonas Savimbi) trabalhou bem enquanto dirigiu a Sonangol, ou não? Ao demiti-la, João Lourenço assumiu o ónus de que ela foi uma má gestora. E não esteve com meias medidas, pôs no seu lugar Carlos Saturnino que, recorde-se, em Dezembro de 2016, tinha sido exonerado do cargo de presidente da Sonangol Pesquisa & Produção por Isabel do Santos. E então que dizer agora que demitiu Carlos Saturnino?
Tenhamos a hombridade de assumir alguma memória. Refira-se que Patrick Pouyanné, CEO da Total, disse sobre a liderança de Isabel dos Santos na petrolífera nacional: “A Sonangol está a fazer exactamente aquilo que nós fizemos. Quando o preço do petróleo caiu todos sentimos dificuldades. A sua prioridade tem sido a transformação e equilíbrio das contas, o que tem sido positivo e permite voltar a pensar no desenvolvimento”.
Por sua vez, Eldar Saetre, CEO da Statoil disse: “Estamos em Angola há 26 anos e por isso temos uma grande experiência neste mercado que tem sido muito importante para a nossa empresa. Sempre tivemos uma relação muito próxima com a Sonangol e queremos mantê-la por muito tempo. Por isso estamos para ficar e encontrar novas oportunidades de colaboração com a Sonangol”.
Também Clay Neff, presidente da Chevron África afirmou: “Vemos as mudanças que a Sonangol está a fazer com muitos bons olhos. Existe uma colaboração muito positiva entre a Sonangol, a Chevron e os outros membros da indústria para melhorar as condições de investimento em Angola”.
Em Setembro de 2015, o director da maior petrolífera estrangeira em Angola, a Total, avisou o governo angolano de que se os custos de investimento não descessem significativamente, o país arriscava-se a ficar sem indústria do petróleo.
“Se não houver uma significativa redução dos custos, tudo vai parar”, disse o director-geral da Total em Angola, Jean-Michel Lavergne, em declarações à agência financeira Bloomberg, nas quais explicou que caso as condições não melhorem, a indústria petrolífera angolana “vai desaparecer”, partindo do princípio que o preço do barril de petróleo se mantém nos 60 dólares.
Em causa estavam as várias medidas que o Governo tomou nos últimos anos, que fizeram os custos de produção aumentar em 500 milhões de dólares por ano, disse Jean-Michel Lavergne durante um fórum empresarial em Luanda.
Em Junho desse ano Angola ultrapassou pela primeira vez a Nigéria enquanto maior produtora subsariana, tendo bombeado 1,77 milhões de barris por ano, contra 1,9 milhões da Nigéria, embora no total de 2014 a média de produção tenha sido de 1,66 milhões, comparado com os 1,9 milhões da Nigéria.
Os poços de petróleo em águas profundas na costa de Angola têm um desenvolvimento muito caro, e a indústria precisa de preços entre 60 a 80 dólares por barril “para a operação fazer sentido”, disse Jean-Michel Lavergne.
Falência ou não falência
Isabel dos Santos disse (e certamente mantém) que Carlos Saturnino (com o óbvio apoio de João Lourenço) “procurou buscar um bode expiatório, para esconder o passado negro da Sonangol, e escolheu fazer acusações ao anterior Conselho de Administração! Ora, isto não passa de uma manobra de diversão, para enganar o povo sobre quem realmente afundou a Sonangol. E seguramente não foi este Conselho de Administração a que presidi, e que durou 18 meses, que levou a Sonangol à falência!”
E acrescentou: “Em 2015, após a apresentação pelo Dr. Francisco Lemos, então PCA da Sonangol, do “Relatório Resgate da Eficiência Empresarial”, o Executivo angolano tomou conhecimento da gravidade do problema da Sonangol que, supostamente deveria ser a segunda maior empresa de Africa, soube-se de repente que estava falida, e incapaz de pagar a sua dívida bancária.”
Recorde-se que outro ex-Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Francisco de Lemos José Maria, negou sempre a falência da petrolífera estatal, dizendo que era algo “virtualmente impossível de acontecer”. Francisco de Lemos José Maria recusou várias vezes usar termos como “falência técnica”, “bancarrota” e “crise” na Sonangol, contrariando essa tese que começava a ser comum na sociedade.
“Qualquer estado de falência ou de bancarrota teria que implicar que, num só ano, a Sonangol registasse prejuízo de 22 mil milhões de dólares, o que é virtualmente impossível de acontecer. Num só ano, mesmo num período de quatro ou cinco anos”, afirmou Francisco de Lemos José Maria.
E, para justificar a “estabilidade” e “robustez operacional” da empresa, acrescentou um pouco à semelhança da história recente do português Grupo Espírito Santos, que a Sonangol possui um nível geral de endividamento actual de 13.786 milhões de dólares, contra um património superior a 21.988 milhões de dólares, conferindo uma alavancagem “suficientemente estável” e superior a 63%.
Francisco de Lemos José Maria assegurou também que a Sonangol mantinha o programa de investimentos, avaliado em 6.700 milhões de dólares, em todos os segmentos, dos quais 58% em exploração e produção de petróleo bruto, 15% em refinação de petróleo bruto e 10% em distribuição e logística de combustíveis.
Disse ainda que as demonstrações dos exercícios financeiros da empresa, na sequência das noticiais publicadas sobre a “hipotética bancarrota”, foram explicadas numa reunião entre a administração da Sonangol e representantes de 22 bancos comerciais que operam em Angola, ponderando avançar em termos legais contra a publicação desta notícias
“A Sonangol, com a dimensão que possui, precisa de permanentemente ter flexibilidade para ajustar o seu modelo operacional, para continuar a vender, para continuar a produzir e para continuar a criar rendimentos”, sublinhou Francisco de Lemos, numa alusão às referências à falência do modelo operacional internacional da empresa nas mesmas notícias, que então citavam documentos internos sobre o futuro da concessionária estatal.
Regenerar também entrou no léxico
O Estado afirmou que iria gastar 43,85 milhões de euros com a consultoria de apoio à regeneração da Sonangol, segundo despesa autorizada por despacho do Presidente da República, João Lourenço. A informação consta de um despacho presidencial de 25 de Outubro de 2018, que justifica a despesa e o procedimento de contratação simplificado dos serviços com a “necessidade urgente de se contratar uma empresa com experiência nos sectores de actividade e do Grupo Sonangol, para suportar o seu processo de regeneração”.
Os 43,85 milhões de euros – valor equivalente em kwanzas, define o mesmo documento – seriam utilizados para a “contratação simplificada para a aquisição de serviços de consultoria à implementação do Programa de Renovação da Sonangol” e das suas subsidiárias.
Os actos de contratação ficavam a cargo do então idolatrado Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, podendo este subdelegar, em representação do Estado angolano, conforme estabelece o mesmo documento.
A regeneração da Sonangol integra o Plano de Desenvolvimento Nacional 2018-2022, que o documento considera ter “uma intervenção basilar”.
Desde que João Lourenço foi empossado, em Setembro de 2017, a petrolífera estatal tem sido alvo de várias alterações, visivelmente já não tanto de tiros mas, cada vez mais, de rajadas no escuro para verem se acertam em alguma coisa.
O chefe de Estado disse anteriormente que o plano de reestruturação da Sonangol tem como principal objectivo concentrar a actividade da empresa na cadeia de valor do petróleo e gás. No entanto, ao que parece, o objectivo principal é experimentar todo o tipo de rações para ver se a “galinha dos ovos de ouro” do Estado/MPLA não morre à fome.
“Para que a mesma se foque nas suas actividades essenciais, vai se iniciar em breve o processo de privatização de grande parte das suas empresas não nucleares, quer sejam subsidiárias ou participadas”, afirmou, então, João Lourenço. Estas privatizações só deverão ser concretizadas depois de Junho de 2019.
“Foi com espanto que acompanhei as declarações proferidas na Conferência de Imprensa da Sonangol a 28 de Fevereiro 2018. Não posso deixar de demonstrar a minha total indignação com a forma como, sob o título de “Constatações/Factos” foram feitas acusações e insinuações graves, algumas das quais caluniosas, contra a minha honra e contra o trabalho sério, profissional e competente que a equipa do anterior Conselho de Administração desenvolveu ao longo de 18 meses”, disse na altura – com todas as letras – Isabel dos Santos.
Recordam-se? Se calhar o Povo já não se lembra. Mas certamente que Carlos Saturnino e João Lourenço se lembram todos os dias, admitindo-se até que em breve a famosa frase “espinha atravessada na garganta” passe a ter uma actualização lexical, designando-se “Isabel atravessada na garganta”.
Na sua intervenção de Março de 2018, Isabel dos Santos não tinha (e continua a não ter) dúvidas. Sobre esse disparo de Carlos Saturnino, apresentado no auge da orgia governativa como sendo um tiro de misericórdia, um xeque-mate a Isabel dos Santos, a empresária e ex-PCA da Sonangol disse: “Trata-se nada mais que um circo, uma encenação! Procurar buscar um bode expiatório, para esconder o passado negro da Sonangol, e escolher fazer acusações ao anterior Conselho de Administração! Ora, isto não passa de uma manobra de diversão, para enganar o povo sobre quem realmente afundou a Sonangol. E seguramente não foi este Conselho de Administração a que presidi, e que durou 18 meses, que levou a Sonangol à falência!”.
Esta e outras afirmações de Isabel dos Santos fizeram o suposto tiro de misericórdia ricochetear e atingir quem tinha puxado o gatilho (Carlos Saturnino), mas também quem tinha dado ordem para disparar (João Lourenço).
Isabel dos Santos disse que “em 2015, após a apresentação pelo Dr. Francisco Lemos, então PCA da Sonangol, do “Relatório Resgate da Eficiência Empresarial”, o Executivo angolano tomou conhecimento da gravidade do problema da Sonangol que, supostamente, deveria ser a segunda maior empresa de Africa, soube-se de repente que estava falida, e incapaz de pagar a sua dívida bancária.”
Em consequência deste facto, o Executivo angolano tomou a decisão de criar a Comissão de Reestruturação do Sector dos Petróleos, e de contratar um grupo de consultores externos. Entretanto o Executivo avança com consultoria de apoio à regeneração. Afinal quem estava errado?
A Comissão de Reestruturação do Sector dos Petróleos criada por Decreto Presidencial 86/15 de 26.10.2015, foi composta por: Ministro dos Petróleos, Ministro das Finanças, Governador do BNA, PCA da Sonangol, Ministro da Casa Civil da Presidência da República.
Foi assim, em representação do governo de Angola, assinado pelo Ministério das Finanças, um contrato de consultoria para Reestruturação do Sector dos Petróleos em Angola, com empresa Wise Consulting, na qualidade de coordenador de um alargado grupo de consultores identificados.
Foi solicitado pelo Executivo, que este grupo de consultores desenhasse a solução, e apoiasse também na implementação da solução, devendo para tal apoiar e trabalhar com a gestão da Sonangol.
Este contrato foi posteriormente cedido à empresa Matter, por razões de organização interna do grupo de consultores e a pedido destes. A Matter, foi o gestor transversal do projecto, foi a entidade coordenadora, e gestora dos diversos programas de consultoria prestados no âmbito da reestruturação da Sonangol, nomeadamente pelos consultores PriceWaterCoppers, Boston Consulting Group, ODKAS, UCALL, VDA, McKinsey, etc., e que teve a responsabilidade de optimizar os custos, prestações e resultados da consultoria.
A cessão da posição contratual, e contratação foi oficial, e com a autorização do Conselho de Administração da Sonangol, e do seu PCE, Presidente da Comissão Executiva.
“Pôr em causa hoje as decisões tomadas pelo Governo angolano em 2015 e 2016, pôr em causa a presença de consultores, pôr suspeitas sobre o trabalho realizado e pagamentos feitos, significa negar o facto de que a Sonangol estava falida”, disse Isabel dos Santos, acrescentando que “pôr em causa a decisão do Governo angolano em querer reestruturar a Sonangol, e tentar manipular a opinião publica, para que se pense que a administração anterior trouxe os consultores por falta de competência ou por interesses privados, significa querer reescrever a história, e atribuir a outros as responsabilidades da falência da Sonangol.”
Uma outra tese de Isabel dos Santos, que se vai confirmando aos poucos, era a de que “esta manipulação dos factos assemelha-se a um autêntico revisionismo, e só pode ter como objectivo, o regresso em força do que convém chamar como “a antiga escola” da Sonangol.”