Pelo menos cinco mil crianças foram vítimas de violência em Angola, de Janeiro a Outubro de 2019, com Luanda a liderar os casos, disse hoje fonte oficial, manifestando preocupação com a existência de “menores envolvidas na prostituição”. As crianças são gente? Às vezes, vezes a mais, parece que não.
“Os dados que existem não são só de crianças, são de mulheres envolvidas e que no meio dessas senhoras há crianças, há menores. As menores envolvidas na prostituição existem e a situação é preocupante”, afirmou hoje à Lusa o director geral do Instituto Nacional da Criança (INAC) angolano, Paulo Kalesi.
Sem quantificar, o responsável deu conta que casos de crianças envolvidas na prostituição foram registados no distrito urbano do Zango, município de Viana, em Luanda, afirmando que na globalidade as “estatísticas de violência contra a criança aumentaram”.
Segundo explicou, “só no ano passado havia registo de 4.000 casos, agora só de Janeiro a Outubro de 2019 são já 5.000 casos” com Luanda com o maior registo seguida pelas províncias de Benguela, Huíla, Huambo e Cabinda.
Fuga à paternidade, abusos sexuais, queimaduras nos membros superiores ou inferiores, consumo de bebidas alcoólicas e inclusive mortes constam das tipificações de violência contra à criança em Angola, cenário que preocupa autoridades e sociedade civil.
Segundo Paulo Kalesi, para dar resposta aos casos, o INAC tem já elaborado um programa denominado Fluxograma de Resposta de Casos de Violência contra a Criança para “uniformizar os procedimentos para poder atender situações concretas que põem em causa o bem-estar da criança”.
“A nível dos municípios já há estruturas com esse fim e é nessa perspectiva que diria que há um acompanhamento permanente, e por isso é que esses casos vêm à tona”, adiantou.
A problemática de crianças de rua também preocupa o Instituto Nacional da Criança angolano que, só em Luanda, nos locais sob acompanhamento da instituição estavam até terça-feira catalogadas mais de 450 crianças.
“Mas, na generalidade, olhando para há cinco ou seis anos, a nível do país diminuiu muito o número, mas durante o ano passado e este ano, só em Luanda, há um ligeiro aumento, mas não em dimensão grande”, concluiu.
Apenas 25% das crianças angolanas com menos de cinco anos são registadas pelos pais, motivo que levou o Governo do MPLA (em boa verdade desde há 44 anos que Angola só tem governos do MPLA) a lançar uma campanha de incentivo ao registo de nascimento no país. Como se trata de um país pobre (embora tenha o maior número de ricos por metro quadrado), era bom que a comunidade internacional desse mais e mais ajudinhas…
A campanha, denominada “Paternidade Responsável, Eu Apoio“, encabeçada pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, com o apoio, obviamente financeiro, da União Europeia (UE) e técnico do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) visa fazer frente ao grande número de crianças no país sem registo de nascimento.
No final de 2018, o titular da pasta da Justiça e Direitos Humanos de Angola, Francisco Queiroz, disse que um estudo realizado com o apoio do Unicef dá conta de que poucos pais compareceram nos postos de registo das maternidades para fazerem o registo de nascimento dos filhos, “deixando as mães numa situação de abandono com os filhos nas mãos“.
“Em consequência disso, muitas mães optam por não registarem os filhos sem a presença do pai, porque é uma questão cultural também, por sentirem que incorrem em desobediência ao parceiro, caso façam o registo sozinhas”, referiu o ministro.
A pesquisa foi realizada em 70 maternidades do país e os dados apontam que “poderia haver talvez o triplo de registos, se os pais estivessem presentes”, salientou o ministro.
Francisco Queiroz disse que as estatísticas indicam que, desde a abertura dos postos de registos nas maternidades, a 7 de Julho de 2017, foram registados apenas 128 mil menores, “um número ínfimo para o universo de crianças que nasce todos os anos e para o grande grau de fertilidade que a população apresenta”. “Esperamos com esta campanha influenciar positivamente para uma mudança de atitude, no sentido de os pais respeitarem os direitos dos seus filhos”, disse o governante angolano, apelando à participação de toda a sociedade.
O estudo realizado no âmbito do “Programa Nascer com o Registo” mostrou que a fuga à paternidade é uma das causas do baixo número de crianças registadas.
Em declarações à imprensa, Francisco Queiroz referiu que o registo é gratuito, porque o Governo pretende estimular “o registo, por causo do forte impacto que tem na cidadania”.
E as crianças escravas?
Para erradicação do trabalho infantil em Angola os ministérios do Trabalho e da Acção Social fazem o que tem sido o diapasão da governação de João Lourenço e do MPLA: elaboram planos de acção. As acções propriamente ditas ficam em lista de espera. Tem sido assim, reconheça-se, ao longo das últimas décadas.
Assim temos um Plano de Acção Nacional (PANETI 2018-2022), que visa a tomada de medidas que facilitam a tarefa dos diferentes agentes na aplicação prática dos direitos da criança.
O PANETI foi apresentado em Luanda durante um fórum sobre o lema “Não ao trabalho infantil: criança protegida segura e saudável” no âmbito do dia Internacional do Combate ao Trabalho Infantil.
O projecto prevê aumentar o acesso à educação e programas de formação profissional, apropriados para crianças, assim como mapear as zonas e os tipos de trabalho infantil em todo país.
Ao intervir no encontro, o secretário de Estado do Trabalho e Segurança Social, Jesus Moreira, considerou o trabalho infantil como um fenómeno que deforma a criança, para além de não proporcionar condições para escapar da situação de penúria e privação na vida pessoal, familiar e social.
O responsável apontou ainda a pobreza (chaga que o MPLA ainda não conseguiu debelar nos últimos 44 anos) como uma das principais razões que tem levado as crianças ao trabalho infantil, assim sendo defende o esforço ao combate e a luta contra a pobreza no país.
Prevê-se, assim, que os 20 milhões de pobres passem também a alimentar-se dos planos do governo, eventualmente tendo como conduto mandioca, farelo ou peixe… podre.
Jesus Moreira reprova a atitude de alguns empregadores que aceitam crianças, porque estas são incapazes de defender os seus direitos. E os que tentam defender os seus direitos recebem os “cumprimentos” da Polícia.
De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), de 2015 a 2016 em Angola 25.830 crianças com idades entre 5 e 17 anos estão envolvidas em trabalho infantil, dentre as quais 13.117 são do sexo masculino e 12.713 do feminino.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o trabalho infantil tornou-se uma fonte de rendimento de famílias, principalmente daquelas em situação de pobreza, as idades variam entre 5 aos 14 anos.
Refere ainda a OIT que 218 milhões de crianças no mundo com idades entre 5 a 17 anos estão engajadas na produção económica, das quais 152 milhões são vítimas do trabalho infantil, sendo 58 por cento do sexo masculino e 42 do feminino.
Deste universo, 73 milhões estão em situação de trabalho infantil perigoso, 85,1 por cento do trabalho infantil realiza-se no sector da agricultura.
Em África 72.1 milhões de crianças encontram-se em situação de trabalho infantil, isto é, uma em cada cinco crianças africanas são vítimas da mesma violência.
Medalha de ouro para o MPLA
Recorde-se, por exemplo, que o secretário-geral da Central Geral de Sindicatos Livres e Independentes de Angola (CGSILA) denunciou no dia 16 de Junho de 2017 que Angola continua a registar a prática do trabalho infantil, sobretudo em empresas estrangeiras, lamentando a falta de fiscalização.
Não há fiscalização, mas há (ou haverá) planos. É que sem planos para inglês ver a coisa não se resolve…
Em declarações no quadro das celebrações do dia da Criança Africana, Francisco Jacinto fez saber que muitas crianças são recrutadas no interior do país para trabalharem em Luanda no sector da construção.
“A maior percentagem de crianças a trabalhar é encontrada em empresas estrangeiras. Tudo isso por falta de fiscalização e controlo dessas empresas, porque essas empresas estão aqui como se estivessem em zonas especiais, ou seja, fazem o que querem porque não há um trabalho cerrado de fiscalização”, disse.
De acordo com o sindicalista, a província do Cunene tem sido a mais visada no que diz respeito ao recrutamento de crianças para o trabalho, salientando que estas são muitas vezes submetidas a péssimas condições laborais.
“Em 2016 fizemos um inquérito e concluímos que mesmo aqui em Luanda, no município de Viana, há empresas, sobretudo chinesas, que vão buscar adolescentes às províncias de Benguela, Cunene, Huíla e que vêm aqui, são quase aprisionados. Aquilo é um trabalho de escravo”, explicou.
Acrescentou que estas crianças não só são submetidas ao trabalho, idêntico aos adultos, mas são também “acantonadas”, sem condições de alojamento ou refeições “muito precárias”.
“Nós denunciamos isso, mas infelizmente as nossas autoridades não colocam um travão nisso”, acusou Francisco Jacinto. Pois. Para resolver a questão são precisos planos e para que estes planos funcionem são precisos mais planos que, pelo seu lado, carecem de planos…
As “péssimas condições de habitabilidade” a que estão votadas muitas famílias em Angola constituem, segundo o sindicalista, um dos grandes impulsionadores do trabalho infantil, acrescentando que mesmo que este é já “um problema social” que decorre da falta de assistência a pessoas mais vulneráveis.
“São familiares que não têm emprego e muitas das vezes obrigam crianças a irem para as ruas à procura de alguma ocupação, quando deveriam estar, por exemplo, na escola”, concluiu.
No entanto, segundo o Governo, são muitas as acções empreendidas pelo Estado em defesa das crianças pela produção de planos, leis e criação de condições que permitam acolher menores vítimas de violência. Seria reconfortante saber, se fosse a regra e não a excepção, que o Estado está empenhado no combate a todo o tipo de trabalho infantil e em criar condições para todas as crianças poderem ir à escola.
O trabalho de menores é proibido por lei, salvo em casos excepcionais que a legislação laboral permite e em determinadas condições. Mas isso não basta. Não deveria bastar. No entanto, em cada esquina da sobrevivência se encontram exemplos de que a lei não é cumprida. Faltam… planos.
Já em 2013, Pinda Simão, então ministro da Educação, lamentou que a maioria das crianças que são obrigadas a trabalhar o façam no campo, na extracção de minérios e na rua nas mais vaiadas actividades. Foi em 2013 como poderia ser num qualquer ano dos 44 que levamos como país independente. Constata-se, olha-se para o lado e… assobia-se.
Naturalmente que as crianças, a não ser em casos muito especiais, não trabalham por iniciativa própria. São os adultos que as empurram para essa situação, que as exploram, pondo em causa a sua saúde e desenvolvimento harmonioso e lhes coarctam o direito de estudarem, de brincarem, de serem felizes.
Em Angola há demasiadas crianças a trabalhar e são as autoridades que, conhecendo bem a situação, devem actuar. No entanto, ao actuarem estarão a reconhecer a sua incapacidade para debelar o problema. E assim sendo, deixam que tudo fique mais ou menos na mesma e, é claro, o último que feche a porta e apague a luz.
Em 2014, o Papa uniu-se a vários líderes religiosos mundiais numa declaração comum pela erradicação da escravatura até 2020 e para sempre. Francisco qualificou como crime de lesa humanidade todas as formas de escravatura moderna.
Na sede da Academia Pontifícia das Ciências, no Vaticano, o Papa disse: “Trabalharemos juntos para erradicar o terrível flagelo da escravidão moderna, em todas as suas formas: a exploração física, económica, sexual e psicológica de homens, mulheres e crianças acorrenta dezenas de milhões de pessoas à desumanização e à humilhação”.
O Papa condenou um “delito aberrante”, um “flagelo atroz”, que atinge de forma especial os “mais pobres e vulneráveis”.
Na cerimónia de assinatura dessa declaração estiveram líderes anglicanos, muçulmanos, hindus, budistas, judeus, ortodoxos e católicos, que assinalaram desta maneira o Dia Mundial para a Abolição da Escravatura.
“Declaramos, em cada um dos nossos credos, que a escravatura moderna em todas as suas formas – prostituição, trabalho forçado, mutilação, venda de órgãos ou trabalho infantil – é um crime de lesa humanidade”, afirmou o Papa na sua intervenção.
“Cada ser humano é imagem de Deus. Deus é amor e liberdade, que se doa em relações interpessoais, de modo que cada ser humano é uma pessoa livre, destinada a existir para o bem de outros, em igualdade e fraternidade”, defendeu Francisco, agradecendo os esforços de todos os presentes em favor dos sobreviventes deste tráfico.
Qualificando a assinatura do acordo de “iniciativa histórica”, Francisco congratulou-se com o esforço conjunto de todas as confissões e apelou a todos os governos e empresas que se juntem a esse esforço.
Segundo o Papa, a escravatura está presente “tanto nas cidades como nas aldeias”, em todo o mundo, e “muitas vezes disfarça-se de turismo”.
Em Maio de 2016 o aumento de meninos de rua em Angola preocupava, pelo menos oficialmente, o Instituto Nacional da Criança (INAC), que enquadrava o fenómeno nas questões ligadas à violência contra menores.
Sem avançar números, a chefe do serviço provincial de Luanda do INAC, Ana Silva, disse na altura que aumentam os focos de meninos de rua na capital angolana, Luanda, facto que atribui maioritariamente ao fraco poder aquisitivo das famílias.
Ah! Estamos mais próximos da verdade. Pais com fome, sem emprego, doentes… filhos na rua à procura de subsistência.
“Temos hoje um acréscimo de meninos nas ruas, coisa que há dois ou três anos já não era visível, mas hoje temos focos de meninos de rua a aumentar”, frisou a responsável, acrescentando que é igualmente elevado o número de crianças com desvios comportamentais.
Ana Silva, que falava no âmbito das jornadas comemorativas do Dia Internacional da Criança, apontou ainda como preocupações a fuga à paternidade, o abuso sexual de menores e a negligência das famílias para com as crianças.
“Ultimamente, as famílias têm negligenciado muito em questões de protecção à criança, relegam esta protecção dos filhos, da responsabilidade que têm em relação às crianças a terceiros e até às próprias crianças”, lamentou.
O trabalho infantil continua a constituir preocupação, sobretudo no sector informal, na área do comércio, disse Ana Silva, onde as crianças servem de mão-de-obra para o transporte de mercadorias, para a limpeza, nos mercados, entre outras tarefas inadequadas.
“Nós ainda há tempos, estivemos a fazer um levantamento e há dois anos também já tínhamos chamado atenção para esse facto, por isso temos programadas várias actividades de consciencialização dos vendedores a nível dos mercados”, salientou.
Segundo Ana Silva, a situação da criança é muito preocupante e os problemas citados juntam-se ainda à falta de acesso às escolas e ao registo de nascimento. Ou seja, as crianças reais do país real não são familiares dos donos eméritos do país.
“Ainda temos alguns problemas neste sentido, que muitas vezes não tem nada a ver com a falta de estruturas, mas sim com as próprias famílias, que não têm disponibilidade e informação”, afirmou.
Folha 8 com Lusa