O chefe da Diplomacia angolana, Manuel Augusto, defendeu hoje, dando voz a ordens superiores, a transferência para a Justiça do país do processo que em Portugal envolve o ex-vice-Presidente da República, Manuel Vicente, mas garantindo que Angola sobreviverá a uma crise de relações com Portugal.
O ministro das Relações Exteriores, Manuel Augusto, falava hoje à imprensa, no aeroporto internacional 4 de Fevereiro, em Luanda, à chegada de Abidjan, Costa do Marfim, onde participou na 5ª cimeira União Europeia – União Africana, acompanhando o Presidente João Lourenço, tendo alertado que Angola não está à procura de “briga”, mas que não vai fugir dela, para defender a soberania e dignidade do país.
Se analisado num contexto de democracia e de um Estado de Direito, coisa que Angola ainda não conseguiu ser nos seus 42 anos de independência, falar de soberania e dignidade do país é algo de muito estranho. O mesmo não se dirá se a comparação for feita, por exemplo, com a Coreia do Norte ou com a Guiné Equatorial.
Em causa está o caso “Operação Fizz”, processo em que o ex-vice-Presidente de Angola e ex-presidente do conselho de administração da Sonangol, Manuel Vicente, é suspeito de ter corrompido, em Portugal, Orlando Figueira, quando este era procurador do DCIAP, departamento do Ministério Público, que investiga a criminalidade mais grave, organizada e sofisticada, designadamente de natureza económica.
Com este pedido, realçou o ministro das Relações Exteriores de Angola, o Estado angolano está apenas a fazer recurso a um instrumento judiciário que existe entre os dois países, de cooperação em matéria judicial.
Para Manuel Augusto, a desconfiança que o Ministério Público (MP) português apresenta em relação à Justiça angolana, de que a mesma não vá levar “esse caso com a seriedade necessária”, “é um juízo de valor que não pode existir”.
Em bom português, a Justiça lusa sabe muito bem o que a casa (Angola/MPLA) gasta e, por isso, tem a certeza que o processo que fosse enviada para Luanda terminaria da mesma forma que terminaram muitos opositores do regime que, mesmo sendo do MPLA, foram assassinados no 27 de Maio de 1977.
“Portugal e o seu poder político não têm o direito de pôr em causa o nosso sistema judiciário [angolano] até porque se assinaram com Angola um acordo judiciário, é porque reconheceram em Angola um parceiro credível para esse tipo de acordo. Aqui é um problema de soberania, não é um problema de birra, de complexo”, atirou o ministro Manuel Augusto como se tivesse descoberto a pólvora ou a roda.
O governante angolano vincou ainda que Portugal tem que reconhecer que “está a lidar com um país, que tem a sua soberania, que vai defender os seus cidadãos e que vai neste caso defender um órgão de soberania”.
“Pois que, mesmo na interpretação técnico-jurídica do MP, que o cidadão Manuel Vicente, vice-Presidente da República não era titular de um poder de soberania, não precisamos de grandes conhecimentos jurídicos para entender que sendo ele vice-Presidente da República merece um tratamento condizente com esta condição. Até porque ele era o substituto automático do Presidente da República”, aclarou.
É um raciocínio brilhante e só por si revelador da capacidade intelectual do ministro. Anda bem que ele esclareceu o mundo que o vice-presidente “era o substituto automático do Presidente da República”. É que os portugueses certamente estavam a pensar que o vice-presidente da República “era o substituto automático” do seleccionador nacional de futebol.
O ministro reiterou que as relações entre os dois países são “excelentes” e as relações económicas “necessárias”, mas advertiu: “Portugal tem que reconhecer que está a lidar com um país, que tem a sua soberania, que vai defender os seus cidadãos e que vai neste caso defender um órgão de soberania”.
A técnica é bem conhecida. Repetir até à exaustão a mesma mentira na esperança de que, um dia destes, ela vire verdade. Não vai resultar, mas não será por falta de tentativas.
No referido processo, o antigo vice-Presidente de Angola e actualmente deputado à Assembleia Nacional é acusado de ter praticado alegados pagamentos no valor de 760 mil euros, ao então magistrado para obter decisões favoráveis em dois inquéritos que tramitaram no DCIAP.
Manuel Vicente está acusado de corrupção activa na forma agravada, branqueamento de capitais e falsificação de documentos.
Quando, no dia 17 de Fevereiro deste ano, o Presidente da República de Portugal considerou que a acusação judicial ao vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, corresponde ao “funcionamento normal das instituições” e à “separação de poderes em Portugal”, foi grande a vontade rir.
“É o funcionamento normal das instituições. Como sabem, há uma separação de poderes em Portugal, a justiça portuguesa é uma realidade, um poder separado do poder parlamentar, da Assembleia da Republica, do poder executivo, do Governo e do Presidente, e funcionou”, comentou Marcelo Rebelo de Sousa.
O chefe de Estado, que falava em Gualtar, Braga, foi questionado se a acusação de corrupção deduzida contra Manuel Vicente poderá afectar as relações entre Portugal e Angola.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, a acusação mostrava (será que ainda mostra?) apenas que a Justiça funciona. “Funciona, funciona com portugueses, funciona com estrangeiros, funciona naturalmente e portanto isso faz parte da vida das democracias. Em democracia, o funcionamento das instituições em si mesmo nunca é um problema”, sublinhou.
Para este efeito, como para todos os que lhe interessam, o regime do MPLA (foi assim com José Eduardo dos Santos e continua a ser assim com João Lourenço) chama à colação a Constituição da República de Angola que, é verdade, prevê que o presidente e o vice-presidente só podem ser responsabilizados criminalmente por crimes estranhos ao exercício das suas funções, perante o Supremo Tribunal, “cinco anos depois de terminado o seu mandato”. Simples, como se vê.
Como muito bem sabe o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, é fácil, barato e até pode dar milhões falar do “funcionamento normal das instituições” e da “separação de poderes em Portugal” quando se sabe que, mais uma vez, a montanha nem um rato vai parir e que o processo será inevitável e cobardemente arquivado.
Em Portugal ficou claro que, sobretudo a partir da altura em que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos deu um ultimato político aos governos portugueses, consubstanciado no fim, ou no adiamento sine die, da parceria estratégica, os tribunais portugueses – por determinação política – subjugaram-se e passaram a, juridicamente, ter uma só sentença em relação a qualquer questão que envolva altos dignitários do regime: arquive-se.
Isso mesmo se passou, recorde-se, com um tribunal português que recusou o pedido de abertura de instrução do caso ligado ao vice-Presidente de Angola, ao general Higino Carneiro e à empresa Portmil, cujo inquérito fora arquivado pelo Ministério Público português. E, pelo menos nos próximos anos, não vale a pena intentar qualquer acção. Lisboa rendeu-se e, como tal, encontra todos os subterfúgios legais, mas sobretudo políticos, para nada fazer.
Marcelo Rebelo de Sousa, como a mais alta autoridade portuguesa, sabe disso e, por isso, deveria abster-se de nos passar atestados de menoridade intelectual e matumbez. O mesmo deveria fazer João Lourenço.
E, de facto – não de jure -, as razões de soberania do Estado são em Angola uma espécie de albergue onde cabe tudo o que interessa ao regime e aos seus dignitários, nada importando que isso signifique um atropelo às regras de um Estado de Direito… que Angola não é. Ou seja, permite que se lavre a sentença antes da averiguação dos factos. Primeiro arquiva-se e depois articula-se juridicamente os argumentos que sustentem esse mesmo arquivamento. Simples.
Num Estado de Direito uma das regras fundamentais é dar à política o que é política e aos tribunais o que é dos tribunais, não é assim Presidente João Lourenço? Pois é… ou deveria ser. Mas, em Angola, nada disso é assim. A promiscuidade é tal que, cada vez mais, os tribunais fazem política e a política investiga e dá sentenças.