REFLEXÃO (I). Quererão os angolanos mais do mesmo? Angola é um dos países mais corruptos do mundo? É. É um dos países com piores práticas “democráticas”? É. É um país com enormes assimetrias sociais? É. É um país com o maior índice de mortalidade infantil do mundo? É. É um país eternamente condenado a tudo isto? NÃO! Quarta-feira ficaremos a saber se a escolha é pelo futuro ou pelo passado.
O Folha 8 vai republicar alguns artigos de reflexão, convicto de que a verdade mão tem prazo de validade. Começamos com um trabalho de João Paulo Batalha, Presidente da Transparência e Integridade, Associação Cívica, intitulado “Fraude de cebolada” e que aqui foi divulgado em 28 de Julho de 2017:
“O saco de truques com que o MPLA alcançará a vitória nas próximas eleições tem muitas camadas, como a cebola. Primeira camada (a óbvia): o MPLA capturou o Estado. Não é só a Comissão Nacional Eleitoral e toda a organização da votação que está nas mãos do Governo, é toda a poderosa máquina do Estado com a sua capacidade de mobilização (e pressão) que é colocada ao serviço de uma campanha amplamente servida de meios públicos.
Na verdade, no terreno, Angola não é uma democracia multipartidária. É uma ditadura de partido único com roupas coloridas de democracia pluralista (já lá vamos a essa camada).
Segunda camada: a repressão. Os observadores estrangeiros mais distraídos podem já ter-se esquecido do célebre processo dos 15+2, que deu ao regime angolano infâmia mundial. Mas basta ler os relatórios da Amnistia Internacional ou da Human Rights Watch para perceber que há coerência e continuidade entre esse processo – em que um grupo de jovens é condenado pelo crime de ler um livro que mete medo ao Presidente – e todo um currículo sombrio de abusos, de repressão violenta de manifestações pacíficas, de detenções arbitrárias, até de execuções sem julgamento.
Mesmo o trabalho que os carrascos do regime não fazem, a insensibilidade do regime encarrega-se de fazer. São as pessoas que morrem não pela acção do Estado, mas pela sua inacção, pela negação de condições básicas de saúde ou segurança por um poder que se exibe como pai do povo mas é insensível às suas dores. Esta é a camada de ferro.
Terceira camada: a mordaça. Não basta a propaganda contínua dos órgãos de comunicação social do Estado e o condicionamento (a bem ou a mal) da imprensa privada, a obsessão com o controlo dos olhos e ouvidos dos angolanos vai ao ponto de calar a imprensa estrangeira. Isabel dos Santos justificou o silenciamento da SIC em Angola como uma questão de negócio. Terá sido mais uma questão de falta dele. Uns anos antes, depois de a revista Forbes a ter apresentado ao mundo como a menina dos diamantes do papá Presidente, foi mais astuta: comprou os direitos da revista para Portugal e Angola. O petróleo valia mais na altura. Ou talvez fossem as amizades que se comprassem por menos. Desta vez nem houve operação de charme. É calar e andar.
Quarta camada: a oposição. Várias vozes da sociedade angolana tinham apontado, a tempo, o caminho a tomar: a oposição devia ter-se coligado num movimento único. Isso dar-lhe-ia voz e projecção, mas sobretudo derrotaria, antes sequer de ir às urnas, a ficção do regime. Porque nas democracias pluralistas, a oposição nunca se coliga em bloco. Isso só acontece nas ditaduras, precisamente para sinalizar que se trata de ditaduras. Uma coligação em bloco de todas as forças anti-MPLA diria ao mundo que o que está em causa nestas eleições não é uma disputa de programas ou de candidatos, é um combate pela instauração de uma verdadeira democracia pluralista que o MPLA, fiel à cultura de partido único, sempre rejeitou. Ao participar num jogo viciado, a oposição legitima a ficção pluralista do regime. É uma derrota auto-infligida. Os partidos concorrentes ao MPLA reduzem-se a partidos coadjuvantes do MPLA.
Mesmo que tudo o resto falhasse, resta sempre, sólida, a última camada: fazer batota. A forma como o Governo angolano convidou, desconvidando, os observadores da União Europeia diz tudo sobre a seriedade com que se abre ao escrutínio dos seus parceiros internacionais. Turismo eleitoral sim, observação eleitoral não. É um pré-anúncio de fraude nas urnas – tanta ou tão pouca quanto for preciso para assegurar o resultado pretendido.
É normal chorarmos quando descascamos cebolas. O ácido faz parte da planta. Mas é com esta receita que o MPLA pretende comer o povo angolano de cebolada. Neste contexto, o papel do cidadão eleitor não é escolher a próxima Assembleia ou decidir o próximo Governo – esse campeonato está viciado. O que há a fazer é tornar a fraude visível, é obrigar o MPLA a esforçar-se, é assegurar que fica claro para todos, em Angola e no mundo, aquilo que o regime quer branquear: que esta eleição é um roubo. O que o MPLA tem a perder no dia 23 não é a votação, é a face. O combate não é, por isso, eleitoral. É um combate pela dignidade e pelo orgulho de cada cidadão.
Felizmente, essa dignidade está em campo. O povo está desperto, as redes sociais estão atentas e a sociedade civil mobilizou-se. A publicação da Cartilha do Delegado de Lista, pelo jornalista William Tonet, é um exemplo de uma cidadania exigente e interventiva. O lançamento da plataforma Jiku pela nova associação Handeka, que permite a qualquer pessoa denunciar irregularidades eleitorais, é outro sinal de que a maturidade democrática do povo angolano está uns furos acima da dos políticos que o representam. No dia 23 será essa maturidade, essa dignidade e orgulho cívico – e não qualquer partido, ou candidato – que abrirá o caminho para o futuro de Angola.”