O vice-presidente da República de Angola, Manuel Domingos Vicente, é acusado formalmente de corrupção activa em Portugal. No dia seguinte, 17 de Fevereiro, o Jornal de Angola publica uma entrevista com o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, e a imprensa estatal e o governo de José Eduardo dos Santos ignoram publicamente e por completo o facto de o vice-presidente ter sido constituído arguido.
Por Rafael Marques de Morais (*)
Será que Angola perdeu o poder de mandar em Portugal, como fez nos últimos dez anos? Será que José Eduardo dos Santos e família encontraram a melhor forma de se livrarem de Manuel Vicente, o homem que desempenhou um papel-chave no seu enriquecimento desmesurado?
Poderemos agora dizer que a justiça portuguesa está a cumprir, de forma isenta e imune a pressões, com o seu papel em relação à alta corrupção que envolve os dois países e suas lideranças políticas e de negócios?
A 11 de Novembro de 2013, no dia da Independência de Angola, o procurador da República junto do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Portugal decidiu dar um presente às relações entre Angola e Portugal, arquivando os autos contra Manuel Vicente, o general Higino Carneiro e a Portmill – Investimentos e Telecomunicações S.A.
“Espera-se que esta separação de processos venha contribuir para o desanuviar do clima de tensão diplomática que tem ensombrado com mal entendidos a amizade entre os dois povos irmãos, permitindo, conforme decorre dos requerimentos apresentados, a realização de encontros e cimeiras sem estigmas infundados, numa reciprocidade de bom senso” – foi com esta tirada política que Paulo Gonçalves decidiu, na altura, arquivar o processo contra Manuel Vicente e outros.
Agora, Manuel Vicente deverá ser julgado sob a acusação de ter corrompido o procurador Orlando Figueira, para arquivamento dos processos contra si, e por mais um crime de branqueamento de capitais e outro de falsificação de documentos. O seu advogado português, Paulo Amaral Blanco, também foi constituído arguido no mesmo caso e responderá pelos mesmos crimes e mais o de violação de segredo de justiça. Este é o mesmo advogado que tem representado os generais Kopelipa, João Maria de Sousa (procurador-geral da República), Higino Carneiro, Leopoldino Fragoso do Nascimento, assim como Tchizé dos Santos e outras figuras angolanas investigadas por suspeitas de branqueamento de capitais e crimes conexos em Portugal, quase todos eles arquivados.
Grande parte das investigações sobre a elite angolana, que nos últimos anos têm causado celeuma entre os dois países, teve início em 2010, após a publicação do trabalho de investigação intitulado “Presidência da República: O Epicentro da Corrupção em Angola”. A referência à aquisição de 24 por cento do capital do Banco Espírito Santo, no BESA, pela Portmill, SA, uma empresa criada por Manuel Vicente e os generais do presidente Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa” e Leopoldino Fragoso do Nascimento, levou o autor (Rafael Marques de Morais) a ser interrogado pela Polícia Judiciária portuguesa no final de 2010. Após a apresentação de provas sobre o que escreveu, o caso foi prontamente arquivado, tendo sido mais tarde reaberto pelo DCIAP.
O princípio dessa investigação é importante para situar os leitores na forma como Angola tem sido roubada com o alto patrocínio do presidente José Eduardo dos Santos, e com o olhar silencioso e cúmplice da Procuradoria-Geral da República de Angola. As investigações em Portugal deveriam ter começado em Angola, onde apenas restam patriotas para justificar a manutenção do poder, conferir legitimidade ao roubo e exigir o silêncio dos críticos.
Na referida investigação, o autor explicou que, a 10 de Junho de 2009, Manuel Vicente, os generais Kopelipa e Dino cederam formalmente 99,96 por cento das acções – de que eram proprietários equitativos – ao oficial de escolta do presidente José Eduardo dos Santos, tenente-coronel Leonardo Lidinikeni. Outros membros da Guarda Presidencial e da Casa Militar passaram a deter nominalmente as restantes acções.
Passados seis meses, a 10 de Dezembro de 2009, a empresa Portmill, Investimentos e Telecomunicações adquiriu 24 por cento das acções do Banco Espírito Santo Angola (BESA) por 375 milhões de dólares. Por altura da publicação da investigação, o Banco Espírito Santo escusou-se a responder às questões enviadas pelo autor.
Durante a investigação em Portugal, deu-se por provado que o escolta do presidente José Eduardo dos Santos “obteve” um financiamento de 400 milhões de dólares junto do Banco Angolano de Investimentos (BAI), a 7 de Dezembro de 2009, para pagamento da operação. O Banco Nacional de Angola autorizou a operação. A primeira parte, no valor de 350 milhões de dólares, foi realizada, entretanto, a 1 de Dezembro de 2009, através do Deutsche Bank Trust Company Americas (Nova Iorque, EUA), a favor do BESA e na conta que este tinha no BES em Lisboa. Uma segunda transferência, de 50 milhões de dólares, foi realizada a 14 de Dezembro do mesmo ano, através do Bank of New York Mellon, para a mesma conta do Banco Espírito Santo. O negócio foi acertado em 375 milhões de dólares, mas o pagamento foi de 400 milhões de dólares e não houve qualquer explicação sobre a diferença, para além do facto de a Portmill não ter tido qualquer actividade comercial anterior que justificasse receber tamanho crédito.
Mas, em Portugal, também foi revelado que a 7 de Junho de 2014 o general Manuel Hélder Vieira Dias “Júnior” Kopelipa reuniu com o então presidente do BES, Ricardo Salgado, e outros sócios do Banco Espírito Santo Angola (BESA), na qualidade de representante da Portmill, para discutir a crise no banco.
No ano anterior, e de acordo com o semanário Expresso, Ricardo Salgado afirmou à comissão parlamentar de inquérito o seguinte: ”Tenho a convicção de que nenhum dos recursos do BESA foi para membros do governo de Angola. Os generais Leopoldino Nascimento e Hélder Vieira Dias ficaram muitíssimos indispostos em relação a Álvaro Sobrinho na assembleia geral de Outubro de 2013 do BESA, obrigando a um adiamento da mesma”. O general Kopelipa fazia parte da Assembleia-Geral do BESA, ao mesmo tempo que exercia a função de ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do PR.
Ou seja, a transferência das acções de Manuel Vicente e dos generais Kopelipa e Leopoldino Fragoso do Nascimento para o escolta do presidente foi apenas um ardil mal encoberto. Na altura do empréstimo concedido pelo BAI à Portmill, Manuel Vicente era o vice-presidente do Conselho de Administração do referido banco e presidente do Conselho de Administração da Sonangol, que detém 8.5 por cento das acções do BAI. Por outro lado, Manuel Vicente também detém cinco por cento das acções do mesmo banco. Assim se evitou um aparente conflito de interesses. Como poderiam esses indivíduos ter utilizado o escolta do presidente sem o conhecimento do mesmo?
Mais grave ainda, as informações que o general Kopelipa tem prestado às justiças portuguesa e angolana , segundo as quais ele nada tem a ver com a Portmill, são falsas e não têm sido investigadas.
No caso de Angola, a Procuradoria-Geral da República, através do Inquérito Preliminar nº 06-A/2012, instaurado por denúncia do autor, encobriu os referidos dirigentes ao afirmar que nenhum dos denunciados alguma vez representou a Portmill. “Pelo que não se verificam nem os alegados crimes de corrupção passiva nem a alegada conflitualidade de interesses privados com a sua qualidade de servidores públicos”, referiu o magistrador-instrutor e procurador-geral da República adjunto, Domingos Salvador André Baxe, subscrito pelo vice-procurador geral da República Henrique Santos, a 7 de Fevereiro de 2013.
Entretanto, o procurador-geral da República sente-se ofendido e iniciou procedimentos legais contra o autor, em Dezembro passado, por este ter não só exposto uma negociata sua, mas por ter referido que “os corruptos protegem-se entre si, e a magistratura serve apenas para conferir um ar de legitimidade aos corruptos, além de punir os mais fracos e aqueles que se pretende excluir”.
Os crimes investigados em Portugal têm origem em Angola. Urge a abertura de investigações em Angola sobre os casos em referência. Para o efeito, é necessário, antes de mais, a demissão ou reforma imediata do actual procurador-geral da República, general João Maria de Sousa, pela sua gritante incompetência. A cidadania tem esse poder.
(*) Maka Angola