O escritor moçambicano Mia Couto afirmou hoje, em Lisboa, que o actual processo do Diálogo Nacional Inclusivo em Moçambique é um sinal positivo, defendendo que é preciso torná-lo mais próximo dos cidadãos, após um ano das eleições gerais moçambicanas.
O autor, em declarações à Lusa, à margem da conferência “50 Anos da Literatura Moçambicana: Percursos e Práticas Criativas”, que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian, destacou que, embora Moçambique viva um momento de relativa calma após os protestos pós-eleitorais de 2024, persistem desafios profundos ligados à participação cívica e à exclusão dos jovens.
“Parece-me que há ali um processo que é bom, que é positivo, mas que para mim teria que ter alguma coisa menos formal”, observou o escritor, acrescentando que “o cidadão comum deveria sentir-se mais próximo, com lugares de participação mais activos”, sendo que já foram “designadas três pessoas da sociedade civil para representar a população”.
O Diálogo Nacional Inclusivo visa contribuir para uma maior estabilidade política e acelerar o desenvolvimento económico de Moçambique.
Mia Couto elogiou o facto de a sociedade civil estar representada no diálogo, mas alertou para a necessidade de legitimar esses representantes.
“Esses três ou quatro representantes da sociedade civil têm que ter processo de escolha que legitime essa posição”, acrescentou.
Por outro lado, o escritor de “Terra Sonâmbula” considerou ser positiva a criação de novos partidos políticos, desde que estes respeitem as regras democráticas.
“Eu acho que havendo novos partidos, e se esses partidos aceitarem essa regra do jogo e não quiserem fazer alguma coisa que é, digamos, com uma outra lógica à parte, como se houvesse um campeonato que estivesse a ser disputado em estádios diferentes, acho que isso só pode enriquecer”, afirmou o autor, destacando que “quem se diz representante, ou quem é designado por representante, tem que ganhar esse estatuto de uma forma muito concreta”.
Questionado sobre o papel da juventude nos protestos pós-eleitorais, que causaram a morte a pelo menos 200 pessoas, Mia Couto disse que a violência foi resultado tanto do descontentamento com as condições e qualidade de vida e a falta de emprego, como da manipulação dos sentimentos, que foi fomentada.
Para Mia Couto, é urgente enfrentar o sentimento de desesperança que domina muitos jovens moçambicanos, especialmente os de Maputo, capital de Moçambique.
“Não acho que se resolva [o conflito] encontrando culpas em alguém, não é isso. Mas houve responsabilidades em que aquela violência tivesse atingido aquele nível. É preciso lembrar que havia um convite para tomar o palácio da presidência”, sublinhou.
Segundo o escritor, existe um “sentimento de ausência do futuro, de esperança dos jovens, especialmente em Maputo, onde há uma grande imigração de gente de todo o lado do país”.
O autor, conhecido por abordar na sua literatura as feridas da Guerra Civil, que durou 16 anos, relatou ter vivido pessoalmente a violência das manifestações.
“Eu saía à rua e era objeto de várias violências (…). Eu tive que sair de Moçambique. Fui encontrar um refúgio na África do Sul durante quatro semanas”, contou Mia Couto, acrescentando que durante a Guerra Civil passou dificuldades, mas que nunca fugiu e que nestas manifestações foi diferente porque os cidadãos comuns foram “vítimas” da violência sentida.
Comparando os protestos com o período de guerra, o escritor destacou que a violência recente foi mais caótica e sem sentido definido.
“Na guerra há um entendimento de onde está a fronteira, qual é a causa. Ali não”, disse.
Mia Couto defendeu que os protestos devem ser entendidos como parte de um processo mais amplo na história do país, rejeitando análises simplistas e acreditando que as causas da crise moçambicana são “muito mais complexas”.
As eleições gerais moçambicanas, que se realizaram a 9 de Outubro de 2024, deram a vitória, nas presidenciais, a Daniel Chapo, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), com 65,17% dos votos, garantido igualmente, nas legislativas, maioria absoluta no parlamento.
O período pós-eleitoral foi marcado por uma onda de manifestações, convocadas pelo candidato da oposição Venâncio Mondlane, então apoiado pelo Partido Otimista pelo Desenvolvimento de Moçambique (Podemos), que questionou os resultados das eleições e alegou fraude eleitoral.
Os protestos, caracterizados por atos de vandalismo, destruição de bens públicos e privados, e confrontos entre os manifestantes e a polícia, provocaram num número significativo de mortos e feridos e agravou a crise política e social no país.
Mia Couto participou na sessão de abertura da conferência sobre os “50 Anos da Literatura Moçambicana: Percursos e Práticas Criativas”, que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.