A capital ardeu esta semana. Não só em labaredas de pneus e contentores, mas em indignação e desespero. O caos que se espalhou por Luanda e encontrou eco no Huambo, na Huíla e em Malanje… não brotou do nada. Foi apenas a superfície a rachar sob a pressão de um vulcão antigo: a fome.
Por Mwata Santos
Pilhagens, vandalismo, confrontos. Supermercados saqueados, armazéns invadidos, bens de primeira necessidade levados aos montes. À primeira vista, parece barbárie. À segunda, é sobrevivência.
Recorremos, aqui, à velha lição da Pirâmide de Maslow: sem comida, sem abrigo, sem água, não há liberdade possível. Nenhum povo sobe ao andar da cidadania se está confinado ao rés-do-chão da sobrevivência. E a maioria dos angolanos continua aí: ignorada, manipulada, reduzida a estatística em discursos de ocasião.
O Gu-ver-nu sabe disso. Sempre soube. Governa pelo estômago e para o estômago. Mantém o povo à míngua para garantir controlo e dependência. Educação? Saúde? Segurança? Emprego? Não são prioridades quando o cidadão tem de escolher entre o pão e o kandongueiro, entre a fuba e o medicamento, entre viver ou morrer.
O aumento do preço dos combustíveis, anunciado a 4 de Julho, acendeu o rastilho. A paralisação dos táxis — prevista para os dias 28, 29 e 30 — espalhou a faísca. Mas o fogo instalou-se antes mesmo da greve. Os acontecimentos de segunda-feira foram a resposta crua, ainda que inconsciente, de um povo farto de promessas vazias e de políticas que esmagam os de baixo para manter os de cima confortáveis.
Tudo começou com um anúncio: os taxistas, fartos da última subida dos combustíveis, decidiram parar. De 28 a 30 de Julho, o país assistiu à paralisação de quem move grande parte da economia informal e garante mobilidade à maioria. Segunda-feira, o colapso foi inevitável. Mas o que se seguiu: pilhagens, saques e confrontos, revelou algo muito mais profundo e doloroso, a falência do pacto social.
Estamos perante um colapso moral e social. A violência não é o caminho, mas ignorar as suas causas é perpetuar o ciclo. A ausência do Estado nos bairros, nas escolas, nos hospitais, nas estradas, gera o Estado de Natureza, onde quem tem fome não espera por decretos.
A imprensa chama-lhe vandalismo. As autoridades, arruaça. Mas nós, os que sentimos o país a partir do rés-do-chão da Pirâmide de Maslow, sabemos o nome verdadeiro disso: desespero.
Não são os livros que alimentam. Nem os slogans da propaganda. Não é a bandeira que se come, nem o hino que sacia. Um povo com o estômago vazio não discute democracia, sobrevive. Quando a fome aperta, a ética é um luxo e a moral, um eco distante. E, nesta Angola onde uma caixa de frango custa o mesmo que um salário mínimo, a fome tornou-se a linguagem universal dos esquecidos.
Não foram atacadas bibliotecas tampouco lojas de perfumes caros. Foram assaltados supermercados. A mensagem está clara: o problema não é ideológico. É estomacal.
E o mais perigoso não é o povo faminto. É o poder que se aproveita disso. Há um risco silencioso a crescer: o de que estas convulsões sirvam de argumento para reforçar o controlo, restringir liberdades e justificar a repressão em nome da “ordem pública”. Um Estado que falha na prevenção prepara-se para a punição. E essa punição pode vir vestida de legalidade, com decretos e força sem jamais tocar a causa real do tumulto.
Este é um aviso. A fome já está a explodir pelas costuras da dita nação. E se não houver políticas reais, não paliativos, não promessas para devolver a dignidade a quem já só tem dívidas, o próximo saque não será apenas ao supermercado. Será à esperança.
2027 aproxima-se.
Será mais um ano de slogans, promessas e brindes eleitorais? Ou seremos capazes de perceber que um país com o estômago vazio não pode ter cabeça para votar conscientemente?
Queremos cidadãos ou reféns?
Pensar Angola não é um luxo de intelectuais. É uma urgência nacional.
Precisamos pensar Angola. É urgente!