A fuga à paternidade liderou, em 2024, as denúncias de violência contra crianças angolanas, com 8.064 casos de um total de 18.555 alertas às autoridades, segundo o relatório da linha SOS -Criança. Como já não bastasse às nossas crianças serem geradas com fome, nascerem com fome e morrerem pouco depois com… fome.
O chefe de departamento de Prevenção de Violência e Protecção dos Direitos da Crianças do Instituto Nacional da Criança (Inac), Bruno Pedro, considera grave o problema que atinge todo o país (gerido há 50 anos pelo MPLA) e classes sociais, com maior destaque para as províncias de Luanda (2.102), Benguela (1.281), Huíla (246) e Huambo (562).
De acordo com Bruno Pedro, os casos abrangem desde professores, pastores (religiosos), jornalistas, taxistas, polícias e militares, sendo estas duas classes profissionais as mais denunciadas.
“Estamos satisfeitos porque há agora uma colaboração muito grande com esses dois órgãos [polícia e forças armadas], porque todas as situações tão logo os responsáveis tenham conhecimento, por um lado, denunciam e encaminham para aqui. Por outro lado, temos sido recorrentemente solicitados para fazer trabalhos de sensibilização, de informação”, observou.
“A fuga à paternidade (…) tem sido o tipo de violência contra criança que mais se pratica nos nossos registos”, disse Bruno Pedro.
Segundo o assistente social, o problema é grave, porque a ausência do pai e, em alguns casos, também abandono por parte das mães, deixa traumas nas crianças que podem tornar-se futuros cidadãos “desprovidos de várias habilidades para viverem socialmente”.
“Hoje, nós olhamos para a crise no seio das famílias e da sociedade, mas precisamos nos questionar que tipo de cidadãos é que temos, sendo que uma boa parte deles vêm de um contexto em que foram vítimas da fuga à paternidade”, frisou.
Para Bruno Pedro, os números estão aquém da realidade, apesar de irem aumentando as denúncias, salientando que se verifica um aumento do número de crianças na rua, que dizem ter família.
“Temos situações nos bairros de muitas crianças que à noite circulam desacompanhadas, atravessam de uma província para outra sozinhas. Reconhecemos um ambiente de muita fragilidade e que dá azo a que muitas crianças sejam vítimas de rapto, tráfico, abuso sexual, atropelamento e outras coisas”, disse.
O ambiente familiar, as competências familiares, precisam ser fortalecidas, prosseguiu o responsável, acrescentando que são alegadas como causas para a fuga à paternidade, o desemprego, a insuficiência de recursos quando arranjam outra família, dúvidas sobre a paternidade, disputa da guarda da criança, entre outras.
“Temos situações concretas de pais, até pais com estudo superior, que simplesmente não aceitam assumir a paternidade porque acreditam que essa criança seja fruto de uma situação de feitiçaria ou coisas relacionadas com isso, são várias as situações”, realçou.
Apesar de os juristas separarem os casos, considerando a fuga à paternidade como falta de reconhecimento legal das crianças distinta da falta de prestação de alimentos, o INAC junta as duas realidades, reconhecendo que é maior o número daqueles que não dão sustento aos filhos.
“Isso [registo civil] também nos preocupa. O registo é importante para garantir que ela tenha acesso a outros direitos, mas a falta de prestação de alimentos é determinante para a vida da criança”, comentou.
Em 2024, de acordo com Bruno Pedro, preocupou também o aumento de casos de exploração do trabalho infantil (2.875), a violência física (1.722), a violência psicológica (875), a violência sexual (649), entre outros casos relacionados à violência contra a criança.
“Precisamos muito de sensibilização, porque há uma consciência de normalização de violência contra a criança, que precisamos desmistificar”, apelou.
“Muitas vezes é falta de informação, de formação, da cultura jurídica das pessoas, de conhecimento sobre a psicologia do desenvolvimento (…) há crianças que podem vir ao mundo com alguma deficiência, podem ser autistas, e por não entendermos isso acusamos de feitiçaria”, observou.
A fuga à paternidade, a violência doméstica e a acusação de prática de feiticismo, foram apontadas como as principais causas que concorrem na desestruturação familiar. Na verdade, em Angola, ser criança e crescer com a sua família é quase um milagre.
Segundo o sociólogo e docente universitário, Paulo Matuba, em declarações à Angop a propósito do Dia Internacional da Família de 2024, a desestruturação familiar é um assunto transversal e que resulta, também, na decadência dos valores morais e cívicos da sociedade e no aumento da criminalidade.
Paulo Matuba exemplificou que o fenómeno meninos de rua ou na rua, que se assiste um pouco por todo o país, é o resultado do desmoronamento de algumas famílias, aumentando, desta forma, o que apelidou de “órfãos de pais vivos”.
“Uma criança abandonada é potencial candidato à criminalidade, porque na medida em que vai crescendo as suas necessidades aumentam. E a única forma de satisfazê-las é recorrendo a acções criminosas”, enfatizou.
“Num estado de total ignorância ou superstição, toda a desgraça é tida como resultado de alguma força oculta. E o elo mais fraco, nesta condição, são sempre as crianças e os idosos, considerados como a camada mais vulnerável”, referiu Paulo Matuba.
QUANTO MAIS POBRES… MAIS FILHOS
Angola, a par da Nigéria, ocupa a quarta posição entre os países com maior taxa de fertilidade a nível mundial, segundo um relatório das Nações Unidas que estima que população angolana tenha 36,7 milhões de pessoas.
O relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) incide sobre indicadores demográficos e saúde reprodutiva e sexual em duas centenas de países e regiões, prevendo que a população mundial tenha ultrapassado em 2023 os oito mil milhões de pessoas.
Segundo o mesmo documento, dois terços da população mundial vivem em regiões onde as taxas de fertilidade desceram abaixo do chamado nível de substituição de 2,1 nascimentos por mulher, sendo a média mundial de 2,3.
No entanto esta tendência é contrariada pelos países africanos que estão nos lugares cimeiros da fertilidade, com destaque para o Níger, que encabela a lista com 6,7 nascimentos por mulher. Seguem-se, com 6,1, a Somália, a República Democrática do Congo e o Chade, empatados em segundo lugar, a República Centro-Africana e o Mali em terceiro, com 5,8 nascimentos por mulher e Angola e Nigéria na quarta posição.
Angola tem também uma elevada percentagem de população jovem, com 45% da população com idades entre 0 e 14 anos (25% a nível mundial), enquanto apenas 3% dos angolanos têm mais de 65 anos (10% na média mundial).
O relatório avalia também a velocidade a que duplica a população, o que no caso de Angola acontecerá a cada 23 anos (76 a nível mundial).
No que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, os indicadores da ONU apontam para uma baixa prevalência do uso de anticoncepcionais em 2023 nas mulheres entre os 15 e 49 anos: 17% face à média mundial de 50%.
No entanto, no que diz respeito às leis e regulamento que garantem o acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva Angola está em linha com a média mundial (62% e 76%, respectivamente), mas bastante abaixo dos índices de cobertura dos serviços de saúde (39 face a 68%).
E as crianças escravas?
Para erradicação do trabalho infantil em Angola os ministérios do Trabalho e da Acção Social fazem o que tem sido o diapasão da governação do general e João Lourenço e do MPLA: elaboram planos de acção. As acções propriamente ditas ficam em lista de espera. Tem sido assim, reconheça-se, ao longo das últimas cinco décadas.
Assim tivemos um Plano de Acção Nacional (PANETI 2018-2022), que visava a tomada de medidas que facilitam a tarefa dos diferentes agentes na aplicação prática dos direitos da criança.
O PANETI foi apresentado em Luanda durante um fórum sobre o lema “Não ao trabalho infantil: criança protegida segura e saudável” no âmbito do dia Internacional do Combate ao Trabalho Infantil.
O projecto previa aumentar o acesso à educação e programas de formação profissional, apropriados para crianças, assim como mapear as zonas e os tipos de trabalho infantil em todo país.
Ao intervir no encontro, o secretário de Estado do Trabalho e Segurança Social, Jesus Moreira, considerou o trabalho infantil como um fenómeno que deforma a criança, para além de não proporcionar condições para escapar da situação de penúria e privação na vida pessoal, familiar e social.
O responsável apontou ainda a pobreza (chaga que o MPLA ainda não conseguiu debelar nos últimos 50 anos) como uma das principais razões que tem levado as crianças ao trabalho infantil, assim sendo defende o esforço ao combate e a luta contra a pobreza no país.
Prevê-se, assim, que os 20 milhões de pobres passem também a alimentar-se dos planos do governo, eventualmente tendo como conduto mandioca, farelo ou peixe… podre.