Alguns pacientes e familiares relataram à Lusa situações dramáticas no acesso aos “serviços” de saúde pública em Angola e afirmaram que negligência, mau atendimento, falta de medicamentos e de recursos humanos são responsáveis pelo “acelerar” das mortes hospitalares. Nada que o general João Lourenço não conheça bem, desde logo porque quando tem – por exemplo – uma bitacaia, recorre aos serviços de saúde de… Portugal, Espanha ou Dubai.
Muitos pacientes que acorrem aos hospitais públicos angolanos morrem, não pela doença, mas por falta de cuidados e da devida atenção dos técnicos de saúde, afirmaram alguns familiares de doentes, que pernoitam à entrada dos hospitais de Luanda.
A falta de medicamentos e meios médicos (luvas, algodão, fraldas, seringas e outros), de laboratórios para exames especializados e até de refeições para os pacientes obrigam dezenas de familiares a acamparem junto dos hospitais para garantirem “socorro e solidariedade” aos seus.
Maria Lopes, 41 anos, contou à Lusa que já perdeu mais de uma dezena de familiares directos nos últimos 16 anos em hospitais públicos do país, não devido a doenças, “mas por conta do mau atendimento dos técnicos de saúde”.
“Hoje não temos essa segurança [nos hospitais], eu pelo menos não tenho”, disse a gestora que chegou ao Hospital do Prenda às primeiras horas do dia para visitar um irmão ali internado e até perto das 10:30 não tinha qualquer informação sobre o seu estado de saúde.
Sentada sobre cartões espalhados na calçada principal que dá acesso à unidade hospital, ladeada de dezenas de mulheres que ali passam a noite, expostas ao frio e outros riscos, Maria disse que a “falta de amor”, de comunicação e dedicação dos profissionais da saúde obriga os familiares a ficarem à porta dos hospitais durante largos dias.
“É mais fácil estar aqui, mais perto do meu irmão, dá-me tempo, por exemplo, se precisarem de alguma coisa, porque normalmente nos hospitais é assim, porque às vezes não tem dipirona [medicamento], às vezes não tem luvas e outras coisas”, disse, enquanto ao lado outras pessoas acenavam a cabeça em jeito de concordância.
Porque “nem sempre eles (médicos e/ou enfermeiros) dizem (que há carência de material), mas às vezes eles deixam de atender porque não querem pedir e a pessoa acaba morrendo. Para isso não acontecer nós ficamos aqui de prevenção, só por isso”, enfatizou.
Após contar o drama do sobrinho que morreu no ano passado numa unidade hospitalar pública em Viana, por não ter sido medicado durante três dias, e de outros que morreram em circunstâncias similares, Maria deplorou o acesso à saúde em Angola.
“É das piores, porque cada dia quando olho para as unidades hospitalares, hoje temos das melhores a serem inauguradas, com equipamentos de ponta, mas o que nos falta são recursos humanos (…). Vimos perdendo muitas vidas porque não há amor, não há amor à profissão e às pessoas”, lamentou.
Maria Inácio, de 52 anos, também se queixa, ela que tem a tia internada no Hospital do Prenda, há quase uma semana, período em que tem pernoitado nas imediações para atender a qualquer chamada dos familiares.
Contou que por vezes permitem que aceda à sala de internamento, momentos que usa para trocar fraldas da paciente, para lhe dar de comer e mesmo para comprar alguns dos medicamentos receitados.
“Temos que ficar mesmo aqui, mesmo no frio, estamos a dormir aqui desde domingo passado”, frisou.
Também agastado com o atendimento no Hospital do Prenda está Mahula Armindo, 39 anos, que, em finais de Abril passado, partiu o braço direito.
Em busca de assistência dirigiu-se a este hospital às 22:00, mas apenas foi atendido às 02:00, sem que lhe fosse administrado qualquer analgésico para atenuar as intensas dores que sentia.
Mahula, funcionário de uma empresa de comunicação, aguarda há dois meses por uma nova consulta e continua com o braço engessado, lamentando a falta de informações que contribui para o agravar do estado de saúde de muitos pacientes.
“Vai ainda a questão da demora, só para marcar a primeira consulta eu já fiquei lá durante quatro horas à espera e no dia a consulta podes chegar lá as 07:00 e apenas saíres do hospital as 17:00 (…). Acho que temos hospitais bons, mas o pessoal é que não é bom”, atirou o paciente, que, como recurso, começou o tratamento numa clínica privada, onde diz ser atendido com humanidade.
À entrada principal da sede do Ministério da Saúde, na Avenida Amílcar Cabral, centro de Luanda, dezenas de cidadãos transformaram os passeios em dormitórios, o espaço que encontraram para se acomodar enquanto esperam por notícias dos seus familiares, internados no Hospital Josina Machel.
Esta unidade hospitalar, uma das maiores e mais antigas do país, recebe doentes de várias províncias, cujos familiares também relatam dificuldades para aceder à unidade hospitalar.
“Isso surge porque as pessoas lá dentro [do hospital] não têm uma melhor atenção para com os pacientes, porque pelo menos um doente estaria lá acompanhado de um familiar, mas isso não acontece e temos que estar fora e isso é mau”, disse à Lusa Sara Mariano.
A reformada, de 64 anos, sentada num dos passeios do conhecido prédio inacabado da Maianga, apontou para a necessidade de se melhorar o acesso à assistência médica e medicamentosa dos cidadãos angolanos.
“Falta muita coisa para melhorar, porque, por exemplo, a pessoa vai fazer a consulta e não tem medicamentos, tem de procurar fora do hospital e, nesse caso, muitos, estamos sem condições para comprar medicamentos, é complicado”, desabafou.
Até perto do meio-dia, mais de uma dezena de pessoas, entre homens e mulheres, preocupadas com a saúde dos seus entes, ainda repousavam em sono profundo por cima de papelões.
Luzia António Manuel, 32 anos, teve de acorrer à Maternidade Augusto Ngangula, distrito urbano da Ingombota, para acudir à irmã mais nova, grávida, que precisava fazer uma ecografia extra-hospitalar.
“Ficámos aqui porque os técnicos chamaram para fazer uma ecografia (…) e, então, tivemos de ir aqui no Bairro Operário, num consultório privado para poder fazer a ecografia”, explicou, referindo que tal movimentação pode colocar em perigo a vida da gestante e do respectivo bebé.
A Lusa tentou ainda contactar um funcionário, que se escusou a falar por falta de autorização, e a equipa médica em serviço no Ngangula, mas os efectivos da segurança não permitiram o acesso à maternidade.
No dia 23 de Setembro de 2023, sob o título “Parabéns João Lourenço, parabéns Sílvia Lutucuta”, o Folha 8 publicou o texto que transcrevemos na íntegra:
«Sem dinheiro para pagar hotéis ou transportes, dezenas de pessoas (seres menores, escravos, segundo o governo do MPLA que está no Poder há 48 anos) optam por pernoitar em improvisadas “camas” de cartão junto dos hospitais de Luanda, para estarem próximas dos seus familiares e prestar assistência, enquanto aguardam pela hora da visita.
Pelas 06:00 da manhã, na maternidade Lucrécia Paim, a maior de Luanda, a fila das visitas vai engrossando, enquanto nas ruas adjacentes, mães, avós e tias esperam por notícias de grávidas e parturientes.
Como Luzia Manuel, que está acompanhada de mais duas familiares e aguarda que a filha tenha alta para conhecer também a sua nova neta.
“Viemos ontem e já fomos atendidos graças a Deus, a menina já teve (bebé), corre tudo na graça do Senhor”, disse à Lusa.
Moradora em Catete, a cerca de uma hora e meia de distância, assume que as dificuldades financeiras não lhe deixam outra alternativa que não a de improvisar um sítio para dormir em frente à maternidade enquanto espera a filha e a neta, para minimizar o custo dos transportes.
“Dormimos nas lonas [cartões]”, disse, adiantando que cada um custou 250 kwanzas (cerca de 30 cêntimos). Consigo trouxe apenas uma mochila com alguma roupa e água, lamentando não ter “valores” para comprar alimentos.
“Não temos o que comer, não temos nada, até o bebé não tem roupa para vestir porque não contávamos que ela ia ter bebé porque eram só sete meses”, contou à Lusa, explicando que a filha teve de ser transferida de ambulância a partir de um outro hospital e espera que a restante família a venha apoiar.
Paula Evaristo encontra-se naquele local desde segunda-feira, vinda do “30”, bairro a uma hora de distância de Luanda, esperando pela filha que está internada depois de um parto de gémeos que sofreu complicações.
“Estamos aqui mesmo na rua a dormir, não sabemos em que dia vai sair”, afirmou, queixando-se que foi “enxotada” da porta do hospital pela polícia e acabou por pagar 200 kwanzas ao dono de um quintal para ali poder estender o seu cartão e passar a noite.
Paula queixa-se do frio de quem dorme ao relento e da falta de dinheiro para comprar comida, dizendo que só lhe resta “mesmo é amarrar o pano na barriga”.
A espera das famílias gera também oportunidades de negócio. Há quem cobre por disponibilizar o seu quintal e quem aproveite para vender sandes, bolachas, águas, fraldas e toalhitas para os bebés, tendo clientela quase garantida.
É o caso de Lídia Chova, que só lamenta não ter mais clientes, por que a polícia “lhes dá corrida”.
“Por exemplo, ontem à noite não consegui fazer nada, só fizemos 1500 (kwanzas, ou seja, 1,7 euros). Como vou pagar a renda e a escola das crianças?”, desabafa.
O cenário é semelhante nas proximidades do Hospital Américo Boavida (HAB), onde esta semana um jovem de 25 anos, que se encontrava na parte exterior, morreu após lhe ter sido alegadamente negada assistência pela equipa médica de serviço.
Também ali há cartões ou “luandos” (esteiras) estendidos para a pernoita, vendedores ambulantes e familiares que circulam enquanto aguardam informações sobre pacientes.
José Armando veio acompanhar o sobrinho de 12 anos, que sofreu um acidente há dois dias, quando brincava junto a um muro, e sublinhou que este “foi bem atendido”.
“Subiu no bloco (operatório) e já tivemos a informação que foi operado”, destacou, dizendo que ficou por ali para acompanhar a família e estar junto ao doente “porque pode acontecer alguma coisa de noite”.
Diz que é a segunda vez que um parente seu é assistido no HAB, e que gostou do atendimento, “apesar de ter havido alguma morosidade”.
Já “Avô” André Mavinge, que tem uma sobrinha internada há um mês e meio, mostra-se descontente com a demora no tratamento e queixa-se que “para tratar o paciente é preciso encher a mão” (dar dinheiro).
Aponta também as limitações impostas às visitas e adiantou que para ver a sobrinha fora do horário estipulado (das 15:00 às 16:00) tem de dar 100 kwanzas (11 cêntimos) para entrar.
“Se não paga 100 kwanzas não vai entrar”, critica, elogiando, no entanto, o trabalho dos médicos “que estão a atender bem”, apesar de não terem mãos a medir.
“Nós também estamos doentes, nós, que viemos tomar conta da paciente. Há frio em cima de nós, há sol em cima de nós, não temos direito a entrar onde há sombra. Nós todos temos doenças, Angola não tem pessoas que estão boas”, afirma.
A direcção do HAB anunciou a suspensão da equipa médica, na sequência da morte do jovem esta semana, e participou a ocorrência, por suposta negligência da equipa médica em serviço, junto do Serviço de Investigação Criminal.
Imagens que circulam nas redes sociais mostram o cadáver de um jovem no chão na parte exterior do HAB, localizado no Distrito Urbano do Rangel.
Entretanto, a família do jovem exige uma indemnização para os órfãos e viúva, responsabilizando a instituição por “negligência” e as autoridades angolanas pela alegada agressão que o terá vitimado.
João Fernando Soma, 25 anos, morreu na terça-feira, à porta do HAB, onde lhe foi alegadamente negada assistência médica, e foi hoje sepultado no Cemitério do 14, perante a comoção da família, que pede justiça e lamenta a forma como foram “expulsos” da unidade hospitalar.
“Paizinho”, como também era conhecido no bairro da Boavista, Distrito Urbano do Sambizanga, em Luanda, deixou dois órfãos e viúva grávida, levando os familiares a pedir uma indemnização, uma residência, emprego e assistência para as crianças.
Na casa precária onde se realizou velório, localizada num bairro construído nas conhecidas “barrocas da Boavista”, Madalena Domingas, mãe da vítima, lamentou o infortúnio do filho, atribuindo a morte às agressões de que terá sido alvo por parte de um agente do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e à postura do médico que lhe terá negado assistência do HAB.
Madalena Domingas, 55 anos, debilitada e com voz dolente, afirmou que o filho terá sido agredido por um agente do SIC e por elementos da “Turma do Apito” (uma milícia privada de jovens afecta ao MPLA e que faz ronda naquele bairro), no Mercado de Paulo, onde fazia biscates transportando cargas num carrinho de mão.
João Fernando Soma terá embatido numa viatura, na passada semana, enquanto transportava mercadorias, facto que gerou um desentendimento com o motorista, que lhe exigia o pagamento de 3.000 kwanzas (três euros) para o arranjo, que o jovem não possuía.
Segundo Madalena Domingos, a falta de dinheiro do filho constituiu razão para que este fosse agredido, inicialmente pelo agente do SIC, que trabalha no Mercado de São Paulo, e depois por elementos da “Turma do Apito”.
As agressões de que foi alvo agravaram o seu estado de saúde à medida que os dias foram passado, o que levou a mãe a carregar o filho às costas até ao HAB, no Distrito Urbano do Rangel, em busca de assistência.
Madalena contou que, chegados ao banco de urgência da unidade hospitalar, o médico de serviço informou que não estavam a receber feridos e que deveriam dirigir-se ao Hospital Josina Machel.
“Eu disse que pelo menos fizesse os primeiros socorros e depois efectuasse a transferência, mas o senhor me deu as costas e entrou na sala”, lamentou Madalena, acrescentando que saiu do banco de urgência até ao portão com auxílio de um maqueiro.
“Mas na paragem (zona adjacente ao HAB) ele foi posto ao chão e (foi) aí onde, naquela demora toda de procurar táxi, o miúdo acabou por morrer no passeio”, explicou.
Após a morte do filho, revelou, uma equipa médica do HAB acorreu até ao local, mas ela impediu nessa altura qualquer aproximação à vítima: “Disse para não mexerem no meu filho”.
Com seis meses de gestação e mais dois filhos a cargo, a viúva Linda Mateus, 21 anos, está desempregada e pede ajuda para sustentar os filhos, exigindo que os responsáveis pela morte do marido sejam levados à justiça.
Indemnização à família, com registo aos órfãos, uma residência e emprego para a viúva, foram também solicitados pelo tio da vítima, Domingos Castro, que lamentou o “mau atendimento nos hospitais públicos”.
Vários sectores políticos e da sociedade civil angolana repudiaram o alegado caso de “negligência médica”, a que se juntam outros relatados por utentes de hospitais públicos, pedindo responsabilização aos culpados.»