O escritor moçambicano e um dos maiores da Lusofonia, Mia Couto, defendeu, em declarações à Lusa, que a dívida dos países africanos pode ser uma das vertentes num eventual processo de reparação do período colonial, mas não como forma de “culpabilização”.
Mia Couto afirma: “O que a gente quer da história é exactamente que não se apague aquilo que é a verdade histórica, mas que ela não seja o fundamento para qualquer sentimento de culpabilização. Não tem que haver culpa das gerações de hoje sobre coisas que foram feitas num contexto histórico completamente diferente”.
Para o escritor, as “reparações têm sentido”, se forem “discutidas não na base de um sentimento qualquer de culpa histórica” e “sim na base daquilo que os países africanos” — porque “o Brasil pode ter a sua própria postura” — “consideram ser digno e legítimo construir como uma ponte feita no presente”.
“Acho que a questão, por exemplo, da dívida, da actual dívida, pode ser um assunto actual, mas não no sentido de recuar na história para culpabilizar ou para vitimizar algum dos lados”, insistiu.
Na semana passada, antecedendo as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Presidente da República de Portugal, qual arauto da verdade única,, Marcelo Rebelo de Sousa, reconheceu a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial, sugerindo o pagamento de reparações pelos erros do passado.
“Temos de pagar os custos. Há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa (não confundir com Baltazar Rebelo de Sousa, seu pai e figura proeminente da ditadura de Salazar) num jantar com correspondentes estrangeiros em Portugal, citado pela agência Reuters.
“Não gosto do termo reparação, gosto mais do termo no sentido de construção de qualquer coisa que tenha em consideração que houve uma história. Sim, uma história que lesou, mas fazer de uma maneira conjunta também”, apontou, por seu turno, Mia Couto.
O escritor disse defender a criação de um Museu da Escravatura, que teria “mais sentido” ficar no Brasil ou em Portugal, mas como “exemplo de alguma coisa que fosse construída com todos, com a participação de todos”.
“A concepção de um museu e depois a execução do museu seria pensada em conjunto, porque a história não é tão simples assim, tão feita a preto e branco. Também do lado africano houve cumplicidades, houve mãos internas que participaram”, explicou, garantindo que os historiadores de Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe “têm coisas para dizer sobre isso”.
Em Portugal, o Chega pediu o agendamento de um debate de urgência no Parlamento para que o Governo esclareça se está a ser equacionada a atribuição de eventuais “indemnizações às antigas colónias”.
O partido político liderado por André Ventura acusou o chefe de Estado de trair os portugueses e pediu a Marcelo Rebelo de Sousa que se retrate por estas declarações.
“Provavelmente, as declarações do Presidente Marcelo foram empoladas. Porque hoje tudo se aproveita do ponto de vista de polarizar o debate e depois o debate já não é debate, porque é um conjunto de acusações e defesas. Mas eu acho que ele próprio teve a oportunidade de explicar o que é que se pretendia dizer com isso e, por exemplo, trabalhar no perdão da dívida actual, sim, é uma coisa actual”, defendeu Mia Couto.
Para o escritor moçambicano, a própria celebração da revolução do 25 de Abril em 1974 “não pode ser feita com apagamentos”.
“O 25 de Abril não foi só o resultado de um grupo de capitães que se rebelaram em Lisboa, mas foi o resultado das lutas que os países africanos fizeram, foi o resultado de uma coisa que também tem tendência a ser esquecida: foi a resistência antifascista dentro de Portugal, que começou anos e anos antes, e que levou a milhares de pessoas que foram também vitimizadas”, concluiu.
Mia Couto não deixa as verdades em afirmações alheias. Brilhante como é habitual, há muitos anos disse que “a maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos”.
E acrescentou, em texto publicado no CanalMoz, que são “ricos sem riqueza”, pelo que seria melhor “chamá-los não de ricos mas de endinheirados”.
Rico, diz Mia Couto, “é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego”, sendo que endinheirado “é quem simplesmente tem dinheiro, ou que pensa que tem”. Isto porque, acrescenta, “na realidade, o dinheiro é que o tem a ele”.
Num lapidar retrato da Lusofonia, Mia Couto considerou que “são demasiados pobres os nossos “ricos”. E explica, “aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas.”
Mia Couto acredita que “não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados”.
Ou seja, “necessitavam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios na cadeia.”
Ou ainda, “necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem (….)”