Milhares de pessoas, entre as quais gente lusófona, morreram no ataque terrorista a Nova Iorque e a Washington em 11 de Setembro de 2001. Ainda se lembram? O Mundo parou para ver, lamentar e condenar. As televisões, sobretudo elas, mostraram até à exaustão imagens que revoltam todos aqueles que, por regra, têm sangue nas veias. Não era para menos.
Por Orlando Castro
O cenário repete-se agora, entre muitos outros mais ou menos anónimos, com a invasão da Ucrânia por parte da Rússia e pelos massacres de palestinianos por parte de Israel.
Deixem-me, contudo, recordar que não é só nos EUA que os actos terroristas matam milhares de pessoas. A diferença está no facto de, em África por exemplo, não haver a CNN a transmitir em directo (ou em diferido que fosse) os ataques que transformam em pó as populações. Ataques que não são obrigatoriamente feitos com armas. Muitos limitam-se a obrigar os povos a aprender a vive sem… comer.
De facto, quando não são ataques com bombas, são ataques de fome, miséria, humilhação e doenças… Angola é um exemplo.
E, nestes casos, nem os EUA, nem a NATO, nem a Rússia, nem a União Europeia ou Portugal se preocupam. Também são aos milhares. Mas como estão aqui nas terras do fim do Mundo… e são (aos olhos do Ocidente) seres menores – negros – pouco importa.
Aliás, como têm petróleo, diamantes ou urânio, até é bom que se vão matando (aos milhares, reforço), até é bom que vão morrendo de fome. A indústria bélica do Mundo, sobretudo dos EUA, vai continuar a ter necessidade de mercados com elevado potencial (gente para morrer e riquezas para pagar).
E o petróleo de Angola para onde vai? E os angolanos como (sobre)vivem?
E das duas uma. Ou há dois tipos de terrorismo, um bom e outro mau, ou então é preciso impor alguma moralidade na forma como se trata do assunto. Ingenuidade minha? Certamene.
Terrorismo mau é só aquele que é transmitido pelas televisões ocidentais? Vítimas só são as que estão na Europa, nos EUA, em Israel? Só são as de cor branca?
É claro, refira-se mais uma vez, que o terrorismo é todo ele mau. Os autores devem ser punidos. Sejam eles Teodoro Obiang Nguema, Kim Jong-un, Vladimir Putin, Benjamin Netanyahu etc. etc..
Mas devem ser punidos todos. Não apenas aqueles que se atreveram a chatear o tio Sam, não apenas aqueles que entendem que a liberdade dos EUA termina onde começa a deles. E, convenhamos, os EUA não são grande exemplo de moralidade e equidade.
Os americanos (sobretudo eles, mas não só eles) devem, aliás, ter cuidado para (mais uma vez) não fornecerem aos amigos de momento a corda com que estes, mais tarde, vão enforcar… americanos.
De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (e continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos das grandes potências, coloniais ou não. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram e são um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.
Nesse conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem?
Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano (preto, entenda-se) é obra desenganada. Infelizmente.
De uma forma geral, mais de 100 anos depois continua a ser verificado, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem” (escreveu o angolano Eugénio Costa Almeida no seu livro: “África Colonial no Centenário da Guerra de 1914/1918”).
Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento ao seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando a suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição das grandes potências (Europa, EUA e Rússia, China) em dominar as riquezas autóctones.
Em Angola (tal como noutras colónias), as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.
A tudo isto acresce a megalómana tese de que a História só é válida quando são europeus, norte-americanos ou russos, a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram (ainda são) vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.
Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.