A paixão pela estrada e pelas paisagens angolanas juntou um grupo de entusiastas do “overland” numa jornada com mais de três mil quilómetros em busca da vida selvagem no longínquo Cuando Cubango, uma das maiores províncias de Angola. Tudo longe, embora bem perto, dos 20 milhões de angolanos pobres, das crianças angolanas que são geradas com fome, nascem com fome e morrem, pouco depois, com fome.
Mas, na verdade, porque carga de chuva (ou seca) haveriam os turistas (sejam portugueses, luso-angolanos ou angolanos) de se preocupar com os nossos problemas se, de facto, nem os donos do reino se preocupam?
Escreve a Lusa que Angola, que aboliu em Outubro os vistos para 98 países, incluindo Portugal, quer entrar nas rotas do turismo africano, mas faltam por enquanto hotéis e restaurantes, estradas, transportes e operadores turísticos, além de água e energia em muitos pontos do país. Isto, recorde-se, apesar de ser independente há 48 anos e ter estado sempre nas mãos do MPLA.
Nada que impeça, no entanto, os mais aventureiros, com meios e vontade de desbravar caminho, de se lançarem à descoberta, como aconteceu com uma caravana luso-angolana que percorreu, desde Luanda, milhares de quilómetros, até chegar à única reserva de conservação privada de Angola, no Cuatir, junto à fronteira com a Namíbia.
A iniciativa partiu do Clube Overland de Angola (COA) que decidiu organizar a primeira viagem por terra entre a capital angolana e o Cuatir, mobilizando quase 40 pessoas que, entre estradas, picadas e até atravessamento de um rio em jangada, cruzaram as províncias de Luanda, Cuanza-Sul, Huambo, Bié e Cuando Cubango nas suas poderosas viaturas todo-o-terreno.
Hidrisi Miguel “Aussländer”, um dos organizadores da expedição ao Cuatir e membro do COA, conta à Lusa que a ideia de ir até àquela região remota, a 1.500 quilómetros de Luanda se deveu à vontade de explorar mais um destino novo, nesta modalidade de turismo de aventura, feita em regime de autonomia, procurando chegar a locais remotos ou pouco conhecidos.
Fundado em Janeiro de 2022, o COA conta actualmente com mais de 80 membros activos, “uma família”, como descreve Hidrisi Miguel, explicando que o clube é aberto a qualquer pessoa “que tenha espírito” de “overlander”, mesmo que não tenha meio de transporte.
“Tem de ter aquele espírito de conseguir chegar lá, de ser solidário, emprestar material, ajudar a organizar as coisas, todos os membros são bem-vindos”, sublinha.
Relembre-se que mais de 20 milhões de angolanos estão impedidos de ter esse “espírito de overlander” porque a sua aventura é, apenas e só, a de encontrarem comida nos caixotes de lixo e nas lixeiras.
O “overland”, que exige alguma preparação prévia, já que é necessário assegurar toda a logística para permanecer autónomo por um determinado período, é uma modalidade adequada a um país como Angola onde muitas das potenciais atracções turísticas, que incluem praias desertas e paisagens intocadas, não dispõem de infra-estruturas para receber os visitantes.
Carla Cardoso veio de Portugal com o marido para se juntar à caravana e atesta a boa convivência que encontrou nesta sua primeira visita a Angola, onde se juntou ao COA para participar “numa aventura única”, destacando a “rede muito própria” que encontrou em Angola: “É uma família, ninguém nos conhecia e fomos super bem recebidos, super bem tratados, todos nos integraram no grupo”.
Depois da experiência angolana, Carla Cardoso, residente em Estremoz, admite até vir agora a juntar-se a futuros “safaris” por terras alentejanas, certamente menos selvagens. É mesmo tentador, desde logo porque oculta o país humano real, passando ao lado dos milhões de angolanos que continuam a tentar viver sem… comer.
O mais difícil, confessa, foi o cansaço: “É muito dura a viagem, são mil e tal quilómetros (..) para quem não está habituado é duro, nós somos meninos de loja, estamos sentadinhos no nosso conforto, é um desafio enorme”, que, no entanto, “superou todas e quaisquer expectativas”, diz, mostrando-se preparada para mais viagens.
Divididos entre “Princesas”, “Espadas” e “Solitários”, os “overlanders” saíram de Luanda no início de Novembro, seguindo em caravanas que facilitam a entreajuda quando surgem problemas.
A regra é não deixar ninguém para trás (para trás só ficam, há 48 anos, os mesmos de sempre – o Povo), à medida que as areias quentes e as estradas esburacadas vão castigando os veículos e, nalguns casos, exigindo reparações.
Entretendo-se entre o asfalto e a picada, esquivando-se a buracos, animais e outros obstáculos que vão surgindo no caminho, os “overlanders” desfilam quilómetros e vão trocando, via rádio, indicações sobre o estado da via, avarias e picardias, ajudando a afastar o sono que vai invadindo os condutores nas longas horas de estrada.
O grupo é heterogéneo, com pessoas de diferentes idades, profissões e experiências, que têm em comum o gosto pelos motores e pela natureza, pela viagem e pelo convívio, mas também pela solidariedade (que não inclui os angolanos reais) e pela vertente social, como realça Paulo Diogo, outro dos membros do COA.
Recorda, a propósito, que durante a pandemia de covid-19 descobriu que o mau estado das estradas estava a dificultar o trabalho dos missionários portugueses na missão do Gungo (Cuanza Sul).
“E decidi: é aí que eu vou”, salienta o proprietário de uma oficina, acrescentando que desde essa data um grupo de “overlanders” continua a visitar a missão para “partilhar um bocadinho” do que têm “e voltar com a alma lavada”.
Com a “família overland”, Paulo Diogo, proprietário de uma oficina, partilha o entusiasmo pelo todo-o-terreno e pela aventura.
“Somos auto-suficientes, pegamos na viatura e vamos até onde a vontade nos der, onde o mundo nos permitir”, assinala, dizendo que sempre gostou de “montar a barraca”, um gosto que não perdeu desde que chegou, há 20 anos, a Angola.
Nas viaturas nada falta, do gelo para o whisky à “boa comida”, passando pela imprescindível máquina no café, brinca.
“Princesas”, “Espadas” e “Solitários” juntaram-se em Menongue, capital do Cuando Cubango, seguindo a partir daí numa caravana única, que exigiu mais algumas horas nas areias que levam até ao Cuatir.
A chegada é saudada com entusiasmo e, sobretudo, alívio. É hora de descanso para máquinas e pessoas. Montam-se as tendas e preparam-se os petiscos, enquanto os mecânicos espreitam os motores e outros se divertem com a petanca.
Existem “overlanders” em todo o mundo e alguns viajam durante anos. Muitos passam por África, incluindo Angola, onde se encontram com a rede local que os apoia em tudo o que é necessário, explica Hidrisi Miguel, engenheiro civil.
Para Paulo Diogo, pertencer à “família overland” e partilhar um objectivo comum: “ir até querer” e “chegar onde os outros não chegam”.
Folha 8 com Lusa
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