Lágrimas, dor, comoção, revolta contida, dominaram, esta quarta-feira, a entrega dos restos mortais de quatro vítimas dos massacres de 27 de Maio de 1977 aos seus familiares, 45 anos depois, numa cerimónia fúnebre que aliviou o sofrimento mas não repõe nem a verdade nem a justiça sobre aquele (Agostinho Neto) que mandou assassinar milhares de angolano e que, apesar disso, continua a ser o único herói nacional permitido pelo MPLA, o partido que governa o país há 46 anos.
O quartel-general das Forças Armadas, em Luanda, foi o local escolhido para acolher a cerimónia, que juntou os familiares de Alves Bernardo Batista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio Lourenço Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete a vários membros do executivo angolano, incluindo dois ministros.
Encimando as quatro urnas, cobertas com a bandeira angolana (que, de facto, é mais a bandeira do MPLA) e ladeadas por coroas de flores, o lema “Abraçar e Perdoar” reforçava aquela que foi a tónica dominante nos discursos deste acto solene. À frente de cada uma, retratos a preto e branco recordavam os rostos dos quatro jovens que foram assassinados durante os massacres que se seguiu a uma alegada, falsa e cobarde tese de tentativa de golpe de Estado liderada por Nito Alves, dirigente de topo do MPLA e ministro da Administração Interna do primeiro presidente de Angola, António Agostinho Neto, em 27 de Maio de 1977, que culminou com milhares de mortos, cerca de 60 mil.
Irmãos, filhos, tios e sobrinhos das vítimas não contiveram as lágrimas e a emoção, com alguns dos familiares a serem amparados, enquanto outros abraçavam as urnas num momento de sofrimento, mas também de apaziguamento para quem se pôde despedir finalmente dos seus entes queridos, 45 anos depois. “Até que enfim, meu pai”, ouviu-se, entre choros e gritos de angústia.
Augusto Caetano João, irmão de “Monstro Imortal” (que era primo de Nito Alves) recordou o dia em que o seu irmão, que teria hoje 81 anos, desapareceu, nas vésperas do seu aniversário, momento que reviveu passados 45 anos.
Reconheceu os esforços do executivo e sublinhou o apelo à união da “família angolana”, agradecendo a coragem do ministro da Justiça em “desvendar o mistério”. Admitiu ainda que antes havia medo de falar, por isso, quando “Monstro Imortal” desapareceu não procuraram explicações. “Não tínhamos onde nos queixar, ninguém ia nos ouvir”, afirmou, resignado.
Para o sobrinho de Nito Alves, que recebeu o mesmo nome do tio, este foi também o fim da humilhação que as famílias viveram nos últimos 45 anos, num momento em que dominaram o sentimento de luto e de dor, mas também de gratidão, qual Síndrome de Estocolmo.
As famílias agradeceram ao Governo, nomeadamente ao Presidente João Lourenço que, no ano passado, deu início ao processo e pediu desculpa, reconhecendo o “grande mal” das execuções sumárias que tiveram lugar naquele período, mas as circunstâncias em que se deram as mortes não foram reveladas, havendo matérias que continuam a ser sigilosas. O mesmo João Lourenço que – como líder do MPLA – continua a branquear a imagem do assassino responsável pelos massacres, Agostinho Neto.
“Inicialmente não tivemos informação de como o nosso pai, o nosso tio terminaram. Era um tabu, mas com ajuda do executivo fomos tendo informações credíveis, que até certa medida são ainda sigilosas”, declarou Nito Alves, afirmando que a família aceitou (que remédio!) as explicações dadas sobre a forma como morreu.
Explicou ainda que o facto de serem informações sigilosas está ligado a pressupostos “espirituais e culturais” e considerou que era momento de “esquecer o passado”. Importa, contudo, assumir que não há futuro baseado na mentira, sendo igualmente verdade que quem estiver sempre a falar do passado “deve” perder um olho, e que quem o esquecer “deve” perder os dois…
As famílias convergiram com o Governo (desde logo porque basta o MPLA querer e outros 27 de Maio podem aparecer) no apelo à reconciliação, com a família de Nito Alves a declarar que “estão perdoados” todos os que estiveram directa ou indirectamente envolvidos na morte do seu parente.
“O Nito ensinou-nos que o ódio e a calúnia são elementos contrários à reconciliação”, afirmou o sobrinho, congratulando-se com o facto de três dos militares serem, a título póstumo, condecorados como oficiais superiores do exército: “Isso pressupõe que a ideia de que existia uma facção não é muito real, simplesmente existia insatisfação”.
Por outro lado, poderá implicar uma reescrita da história recente de Angola, com maior abertura para o estudo académico sobre estes acontecimentos, admitiu, acrescentando que espera que o contributo que o tio deu ao país seja reconhecido.
Quanto a uma possível reabilitação por parte do MPLA, partido no poder em Angola desde 1975 e que estava dividido – segundo a tese oficial – na altura entre a facção “nitista” (de Nito Aves) e “netista” (de Agostinho Neto), poderá “não ser fácil”, mas também é uma possibilidade que não descarta.
Nestes 45 anos, relatou, a família de Nito Alves viveu sob o temor de represálias e alguns refugiaram-se na Europa. Quanto aos que ficaram em Angola, como é o seu caso, sofrearam “directa ou indirectamente, um tormento mental”, face às conversas que se faziam em todos os círculos públicos.
Comovida, Ginga Afonso, unida por relações de parentesco a “Sihanuk”, Nito Alves, e “Monstro Imortal”, agradeceu também o acto que vai permitir às famílias levar os seus entes queridos à última morada, mas preferiu também não analisar as causas das mortes.
“Estamos aqui para nos abraçarmos e nos perdoarmos”, disse, sublinhando que este é um capítulo que se fecha para a família e uma página que se abre na história de Angola que, até agora, tem sido escrita pelos assalariados dos algozes.
Na cerimónia, além de familiares e amigos, estiveram também o ministro do Interior, Eugénio Laborinho, da Justiça, Francisco Queirós, e das Telecomunicação Tecnologias de Informação e Comunicação Social, Manuel Homem, representantes de igrejas e dos partidos com assento parlamentar e membros da sociedade civil e do grupo técnico que tem desenvolvido o trabalho de identificação das ossadas e apuramento da compatibilidade do material genético.
Segundo Eugénio Laborinho foram determinados, até ao momento, 10 perfis genéticos completos e três parciais que permitiram encontrar compatibilidades genéticas existentes entre as vítimas e seus familiares.
O laboratório técnico já recebeu ossadas de 20 indivíduos e recolheu material genético de 129 famílias.
O ministro da Justiça e coordenador da Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (Civicop), Francisco Queirós, salientou o significado deste momento para a reconciliação nacional e o perdão.
“Com este acto não se pretende apagar da história, os tristes acontecimentos do 27 de Maio, e sim, cumprir um momento de justiça para com as famílias e prestar homenagem aos que tombaram nesse conflito político”, sublinhou.
Disse ainda que não é hora de perguntar de que lado estavam ou quais as ideias em que acreditavam os que morreram, nem hora de indagar as razões por que cada um matou ou morreu: “É hora de esquecer as mágoas e dar as mãos”, exortou. Ou seja, é hora dos familiares das vítimas fazerem romarias aos monumentos do único herói nacional, o assassino Agostinho Neto.
Apelou, por outro lado, à paciência e compreensão das famílias que ainda não receberam as ossadas, justificando eventuais demoras com o “rigor científico”, e disse que as famílias residentes em Portugal interessadas em dar continuidade ao processo terão equipas forenses disponíveis.
As exéquias fúnebres dos quatro jovens, três dos quais militares e integrantes da Primeira Região Militar do MPLA, realizam-se na próxima segunda-feira, com honras militares, no cemitério do Alto das Cruzes.
Folha 8 com Lusa
Foto Júlio Pacheco Ntela/afp