Ao pensar sobre a Constituição de um país, isto é, na principal fonte de poder legal da nação, muitas pessoas pensam que é uma matéria bastante complexa e de difícil compreensão, e que só é reservada aos constitucionalistas e a alguns iluminados. No entanto, as estruturas constitucionais, vistas numa escala menor, do que as das nações, podem ser vistas como as regras básicas de uma grande empresa ou sociedades desportivas para estruturar a sua organização. Pode-se até dizer que muitas famílias têm a sua própria pequena constituição, estabelecendo regras que os membros da família devem seguir.
Por Aníbal P. Costa
Segundo Loveland, a Constituição de um estado normalmente determina as regras de como é que as leis são feitas dentro do estado e por quem, e define como seu governo e outras instituições são criadas e estruturadas, quais poderes que elas têm e os direitos e liberdades dos seus cidadãos. Têm o seu próprio contexto histórico, e são exclusivas para aquela nação. Podem ser classificadas como “constituição política” que é aquela em que o poder legislativo é o principal controlador do executivo, ou “constituição legal”, onde o judiciário é o principal controlador do executivo e, são fruto de evolução ou revoluções.
Como ficará evidente nas constituições de países como a África do Sul, Alemanha e Ruanda, que servirão de exemplo a este artigo, devido as suas semelhanças históricas com a de Angola e, estudando-as, pode-se obter uma ampla visão sobre os desafios que enfrentaram, e concluir que todas elas são realmente fruto de revolução e/ou evolução.
Vejamos (de forma resumida), a constituição da África do Sul
A Constituição da República da África do Sul é resultante da história do país, em que a ideologia e o regime do apartheid vigoraram durante a maior parte da segunda metade do século XX. Foi formada e promulgada na década de 1990 e teve que ganhar impulso e impor-se à violência legitimada pelo regime de apartheid. Ela torna-se exemplar e merecedora de estudo, porque o seu objectivo era supervisionar a transição da violência e segregação para a não-violência e integração; é uma constituição que marca as origens de um regime político e jurídico completamente novo.
O preâmbulo da Constituição da República da África do Sul diz (estratos):
Nós, o povo da África do Sul, Reconhecemos as injustiças do nosso passado; Honramos aqueles que sofreram por falta de justiça e liberdade na nossa terra; Acreditamos que a África do Sul pertence a todos os que nela vivem, unidos na nossa diversidade.
A Seção 1 da Constituição declara que:
A República da África do Sul é um estado soberano e democrático fundado nos seguintes valores:
a. Dignidade humana, o alcance da igualdade e o avanço dos direitos humanos e das liberdades.
b. Não ao racismo e não ao sexismo (…).
Esses estratos demonstram a preocupação dos legisladores, em evitarem que os sul-africanos, sustentados pelos pilares do respeito e da solidariedade que fazem parte da essência de ubuntu, (filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras – ou seja “humanidade para com os outros, voltem a ser vítimas do racismo e perda da dignidade humana.
Quanto à constituição da Alemanha, chamada de Lei Básica (Grundgesetz), está em vigor desde 1949. É relativamente jovem em comparação com a de outros países europeus (por exemplo, a constituição francesa), mas reflecte a queda do muro de Berlin e a unificação com a Alemanha do Leste (RDA), a adesão a União Europeia e particularmente o impacto causado pela Segunda Guerra Mundial (a ascensão do Nazismo), que teve como facilitador o famoso artigo 48, da Constituição em vigor, que devido às lacunas e ambiguidades nele existentes e o seu excessivo uso preparou o caminho para que Adolf Hitler se tornasse Chanceler e, após o incêndio do Parlamento (Reichstag) em 1933, com base no nesse mesmo Artigo 48 aprovou a Lei de Habilitante ou Concessão de Plenos Poderes, que lhe conferiam poderes ditatoriais e ilimitados; tendo inclusive eliminado o parlamento formalmente em 14 de julho de 1933 proibido a actividade dos partidos não nazis e, violar de forma impune, a Constituição e com sucesso final, Hitler conseguiu o estabelecimento da ditadura nazi.
Pelas razões acima evocadas, na actual constituição alemã, o primeiro e mais genérico direito fundamental é a dignidade humana, que é protegida pelo Art. 1º da constituição alemã. Embora esteja prevista e protegida em várias constituições ao redor do mundo, devido ao holocausto, na Alemanha, é um direito tão absoluto, que vai ao extremo de nenhum indivíduo poder por si mesmo, decidir ignorar este artigo e renunciar à sua própria dignidade. Cada indivíduo estará sempre protegido, mesmo contra sua própria vontade.
Vejamos (de forma resumida) a constituição do Ruanda
Não fugindo à regra, tal coma as constituições Sul-africana e Alemã, a constituição do Ruanda de 2003, também é fruto de uma revolução e evolução, determinada pelo genocídio de limpeza étnica em Abril de 1994.
O seu Preâmbulo diz o seguinte (entre linhas):
Nós, o povo do Ruanda,
CONSCIENTE do genocídio cometido contra os tutsis que dizimou mais de um milhão de filhos e filhas do Ruanda, e consciente da trágica história do nosso país;
CONSCIENTE de que a paz, segurança, unidade e reconciliação do povo do Ruanda são os pilares do desenvolvimento;
COMPROMETIDOS com a construção de um Estado regido pelo Estado de Direito, baseado no respeito pelos direitos humanos, pela liberdade e pelo princípio da igualdade de todos os ruandeses perante a lei, bem como da igualdade entre homens e mulheres (…) etc..
Conforme podemos constatar as alterações das constituições dos países apresentados, foram fruto de acontecimentos com repercussões tão nefastas nas suas vidas e história, que a todo o custo os seus cidadãos e políticos não desejam que se repitam e salvaguardam este desejo na nova constituição.
Em Angola, onde a constituição em vigor é atípica e ambígua, porque identifica-se como democrática e de um estado de direito, mas paradoxalmente atribui poderes excessivos ao chefe do Estado, colocando-o acima da Assembleia Nacional (do legislativo); judicialmente discrimina os cidadãos com atribuição de imunidades e tribunais especiais para uns e a obrigatoriedade de terem que filiar-se em partidos políticos para que possam concorrer a cargos políticos/governamentais (…), e, historicamente tivemos:
A repressão colonial portuguesa, que durante 414 anos retirou-nos a liberdade de expressão e a dignidade humana,
A guerra civil, o genocídio do 27 de maio de 1977 e assassinatos da Jamba: acontecimentos que ceifaram vidas humanas (semeando luto, dor, e desejo de vingança) (…).
O alcance da paz, que devemos e queremos preservar.
E, no presente temos:
A partidarização do país em geral e das instituições públicas em particular, dando origem a desunião entre os cidadãos, conflitos de interesse e estagnação do desenvolvimento da nação.
A inutilidade do Conselho da República, que nenhum cidadão vê o resultado da sua função e desempenho em benefício da sociedade.
Corrupção e impunidade, em parte fruto do poder excessivo atribuídos ao Presidente da república, assim como das imunidades e julgamentos judiciais diferenciados),
As demolições e corte de fornecimento de água de forma arbitrarias (…)
Para a revisão da nossa constituição, se tivéssemos que observar os mesmos princípios e pressupostos das outras constituições, (Revolução e/ou Evolução), para evitarmos que situação como as enumeradas prevaleçam ou se repitam, certamente impor-se-ia as seguintes alterações à constituição (dentre outras):
Garantias de que nenhum cidadão angolano jamais terá a sua dignidade, liberdade e direitos ameaçados. Por exemplo, a polícia nacional deveria evitar comportamentos iguais ou piores que os do colono (como transportar cidadãos criminosos ou simples infractores, em viaturas abertas); nenhuma instituição pública ou privada, deveria ter poderes para cortar o fornecimento de água por incapacidade de pagamento; ocupar/demolir a sua propriedade sem a ordem expressa de um tribunal; seria garantido um subsídio de desemprego ao cidadão adulto e de subsistência aos idosos, deficientes e menores de idade (…).
Para manter-se a paz, evitar-se assassinatos políticos, massacres ou genocídios, procuraria despartidarizar o país, fazendo-se constar na constituição, o Artigo 19º da Lei n.º 22/10 – Lei dos Partidos Políticos, que estabelece que a sigla e os símbolos de um partido, não pode confundir-se ou ter relação gráfica ou fonética com símbolos e emblemas nacionais; definição sobre o período de defeso e de campanha eleitoral, proibindo acções ou práticas eleitorais fora da época estabelecida para o efeito; proibir os partidos a fazerem trabalhos reservados às organizações de caridade (tais como doações); limitar o número de funcionários permanentes, para dez (10) indivíduos, podendo recrutar tantos quanto quiser durante o período de campanha; não permitir que membros do governo participem em reuniões partidárias durante dias e horário de trabalho, ou usem as instalações e equipamentos públicos em beneficio dos partidos (…).
O Código de conduta dos políticos e governantes deverá constar na nova constituição e, um dos princípios exigidos aos políticos (deputados e candidatos a membro do governo), seria de que em caso de doença teria que receber assistência médica, nos hospitais públicos e, os seus filhos, estudassem até ao ensino médio, em escolas públicas da sua autarquia.
Quanto ao Conselho da República, este deveria ser substituído por uma segunda Câmara da Assembleia, que também chamaria a si as actividades das comissões de especialidade.
Tratando-se de uma nação que defende ser de direito democrático, isto é, igualdade de direitos sem discriminação entre os cidadãos, as imunidades aos deputados, generais, juízes etc., devem deixar de existir, abrindo-se uma única excepção, que é o presidente da república…. E, os referendos, que embora se justificasse, mas nunca se realizou nenhum, seriam uma realidade…
Deverá constar na constituição revista, que a falta de cumprimento das promessas feitas durante as campanhas eleitorais, sejam responsabilizadas criminalmente.
(…) O “objectivo de qualquer constituição política”, afirma James Madison, “é ou deveria ser, em primeiro lugar, designar como governantes homens que tenham a maior sabedoria para discernir e a maior virtude para perseguir o bem comum da sociedade” e, em segundo lugar, “tomar as mais efectivas precauções para conservá-los virtuosos enquanto mantiverem suas funções públicas”
(Loveland, I. (2018) Constitutional Law, Administrative Law, and Human Rights: A Critical Introduction, 8th edn, Oxford, Oxford University Press).
Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.