Surdos, mudos e cegos?

O jornalista Mariano Brás, que considerou o Presidente angolano, João Lourenço, como a “pior figura do ano 2020, demagogo e hipócrita”, afirmou hoje que está a ser vítima de “intimidação das autoridades”, depois de ter sido indiciado pelo “crime de injúria”.

Por Orlando Castro

Parafraseando altas figuras da política governativa, se “haver” necessidade, façamos um “compromíssio” para entender – no mínimo – o significado das palavras. Demagogo (grego demagogós, – oú, condutor do povo, chefe do povo) é aquele que é “partidário da demagogia” ou “que excita as paixões populares”.

Já demagogia significa: “Preponderância do povo na forma do governo, abuso da democracia, dominação tirânica das facções populares, discurso ou acção que visa manipular as paixões e os sentimentos do eleitorado para conquista fácil de poder político”.

Quanto a hipócrita temos: “Que ou quem mostra algo que não corresponde àquilo que pensa ou sente; que ou quem revela hipocrisia = dissimulado, falso, fingido, impostor, tartufo”.

Num contexto de elevada estima, desde criança que o Presidente do MPLA guarda a alcunha de “Mimoso”. Por alguma razão que desconhecemos, no Ceará (Brasil), “mimoso” é o nome dado a uma espécie de forragem (alimento para cavalos e similares).

Serão estas expressões assim tão graves, tão atentatórias da honorabilidade do Presidente? Depende do ponto de vista e, sobretudo, do autor e do destinatário. Segundo os órgãos do MPLA criados para formatar quem escreve, nomeadamente o Departamento de Informação e Propaganda e a ERCA – Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, todas estas expressões são – se dirigidas a dirigentes do partido – um crime de “lesa deus”, um atentado à soberania do país, um acto de rebelião e até, quiçá, uma tentativa de golpe de Estado.

Contudo, se forem dirigidas a qualquer outro político, preferencialmente (nesta altura) a Adalberto da Costa Júnior, são um legítimo direito no âmbito da liberdade de imprensa, para além de um acto patriótico.

Recordam-se os nossos leitores de que a Redacção do Folha 8 foi, em Março de 2012, invadida por cerca de 15 homens da DNIC – Direcção Nacional de Investigação Criminal sob mandato da Procuradoria-Geral da República, tendo sido confiscados todos os computadores e os jornalistas confrontados com ameaças e actos de brutalidade?

Na altura, tal como antes, tal como depois, tal como hoje, tal como amanhã, a vida dos jornalistas do Folha 8, a começar pela do nosso director, William Tonet, corra perigo. A mudança do detentor unipessoal da razão da força não alterou a estratégia letal do regime. Apesar disso, também não alterou a estratégia dos que, como nós, apenas têm a força da razão.

Ao mesmo tempo que alguns ditadores (ainda poucos, é certo) iam caindo, o mundo dito (nem sempre é verdade, mas…) democrático começava a gerar outros e a aguentar alguns que ainda não passaram de bestiais a bestas.

No caso de Angola, José Eduardo dos Santos foi durante 38 anos, de acordo com o barómetro internacional, um ditador bestial. Não é que ele se preocupasse muito com isso. Seguiu-se João Lourenço que, embora sendo um dos delfins de Eduardo dos Santos, transformou o seu criador em besta, sem abdicar (pudera!) dos benefícios materiais que conseguiu graças ao seu servilismo.

O governo angolano, no poder deste 1975, não tem tido vontade, embora tenha os meios, para resolver os problemas de água, luz, lixo, saúde, trabalho e educação dos angolanos. A juventude não tem casa, não tem educação, emprego e não tem futuro. Os trabalhadores têm salários em atraso e não conseguem obter crédito bancário. E é isso mesmo que João Lourenço quer manter e até ampliar. Quanto mais o Povo for miserável (material e mentalmente) mais sólida será a ditadura.

E quando algum jornal resolve dizer, mesmo que com alguns excessos, estas verdades entra imediatamente na linha de fogo do regime. O Folha 8 está nessa linha há muito, muito tempo. Estamos e continuaremos a estar porque, ao contrário do MPLA, continuamos a pensar que dizer o que pensamos ser a verdade é o melhor predicado dos Homens de bem.

Estes são, contudo, problemas que não alteram a posição de João Lourenço no ranking dos ditadores amigos do Ocidente que, hoje como ontem, lhe dá cobertura total a troco da compra (ao preço da chuva) das riquezas de Angola.

E não alteram o ranking porque coisas tão banais como casa, saúde, educação, comida, não são preocupações essenciais para os que passam por Angola a dar fiado, guardar o vale (ordem de pagamento feita pelo proprietário a favor do financiador) ou a penhora. A existência de milhões de escravos é uma garantia adicional.

Estar 38 anos no poder, com o poder absoluto (Presidente da República, líder do MPLA e chefe do Governo), fez de José Eduardo dos Santos um dos ditadores ou, na melhor das hipóteses, um presidente autocrático, com mais tempo em exercício.

O facto de não ter sido caso único, nomeadamente em África, em nada abona a seu favor. Sabe todo o mundo, mas sobretudo e mais uma vez África, que se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Foi e é o caso em Angola. Mas ninguém se preocupa com isso. Por enquanto, é óbvio.

Só em ditadura, mesmo que legitimada pela fraude e pelos votos comprados a um povo que quase sempre pensa com a barriga (vazia) e não com a cabeça, é possível o mesmo partido estar no poder há 45 anos. Em qualquer estado de direito democrático tal não seria possível.

Aliás, e Angola não foge infelizmente à regra, África é um alfobre constante e habitual de conflitos armados porque a falta de democraticidade obriga a que a alternância política seja conquistada pela linguagem das armas. Há obviamente outras razões, mas quando se julga que eleições são só por si sinónimo de democracia está-se a caminhar para a ditadura.

Com Eduardo dos Santos passou-se exactamente isso. A guerra legitimou tudo o que se consegue imaginar de mau. Permitiu ao MPLA perpetuar-se no poder, tal como permitiu que a UNITA dissesse que essa era (e pelo que se vai vendo até parece que teve razão) a única via para mudar de dono do país.

É claro que, é sempre assim nas ditaduras, o povo foi sempre e continua a ser (as eleições não alteraram a génese da ditadura, apenas a maquilharam) carne para canhão.

Por outro lado, a típica hipocrisia das grandes potências ocidentais, nomeadamente EUA e União Europeia, ajudou a dotar José Eduardo dos Santos com o rótulo de grande estadista que, pelas mesmas razões, transferiram para João Lourenço. Rótulo que não correspondia, e continua a não corresponder, ao “produto”. Essa opção estratégica de norte-americanos e europeus tem, reconheça-se, razão de ser sobretudo no âmbito económico.

É muito mais fácil negociar com um regime ditatorial do que com um que seja democrático. É muito mais fácil negociar com alguém que, à partida, se sabe que irá estar na cadeira do poder durante toda a vida, do que com alguém que pode ao fim de um par de anos ser substituído pela livre escolha popular.

É, como aconteceu com José Eduardo dos Santos e agora acontece com João Lourenço, muito mais fácil negociar com alguém que é líder do partido que está no poder há 45 anos, que é Presidente da República e Titular do Poder Executivo.

A partir do momento em que deixou de ter Jonas Savimbi como bode expiatório para tudo, o MPLA arranjou outros alvos. Um deles foi a Imprensa que, apesar das dificuldades, ainda vai dizendo algumas verdades. Daí a razão pela qual, mais uma vez, os donos do país querem calar os que fazem Jornalismo.

Desde 2002, o MPLA tem conseguido fingir que democratiza o país e, mais do que isso, conseguiu (embora não por mérito seu mas, isso sim, por demérito da UNITA) domesticar completamente quase todos aqueles que lhe poderiam fazer frente. Impediu a legalização do PRA-JA, de Abel Epalanga Chivukuvuku, e avisou (indirectamente) a UNITA que pode ser “ilegalizada”. No entanto, o tiro saiu pela culatra. A oposição está a tirar o sono ao MPLA.

Não se crê que, até pelo facto de o país ter estado em guerra dezenas de anos, tanto José Eduardo dos Santos como João Lourenço, tenham as mãos limpas de sangue. Mas essa também não é uma preocupação. Quando se tem milhões, quando se é dono de um país rico, pouco importa como estão as mãos. Aliás, esses milhões servem também para branquear, para limpar, para transplantar, para comprar (quase) tudo e (quase) todos.

De facto, tudo isto é possível com alguma facilidade quando se é dono de um país rico e, dessa forma, se consegue tudo o que se quer. E quando aparecem pessoas como alguns jornalistas que não estão à venda, e que por isso incomodam e ameaçam o trono, há sempre forma de os fazer chocar com uma bala.

Acresce, e nisso os angolanos não são diferentes de qualquer outro povo, que continua válida a tese de que “se não consegues vencê-los junta-te a eles”. Não admira por isso que João Lourenço tenha mais alguns fiéis seguidores, do tipo daqueles que são sempre seguidores de quem estiver no Poder.

É claro que, enquanto isso, o Povo continua a ser gerado com fome, a nascer com fome, e a morrer pouco depois… com fome. E a fome, a miséria, as doenças, as assimetrias sociais são chagas imputáveis ao Poder. E quem está no poder há 45 anos é o MPLA.

É verdade que, hoje, João Lourenço pode fazer quase tudo o que lhe apetece. Mas a dignidade dos jornalistas (falamos pelos nossos) ele não pode tirar. Nem o facto, que certamente o incomoda, de o Folha 8 fazer parte da História de Angola e da Lusofonia, seja quem for que a venha a escrever.

Artigos Relacionados

Leave a Comment