O Sindicato dos Jornalistas de Portugal pediu esclarecimentos urgentes à Procuradora-Geral da República sobre a vigilância a jornalistas que investigaram o caso “e-toupeira”, considerando-a uma clara violação do sigilo profissional e da protecção das fontes de informação. Nas costas dos outros devemos ver as nossas. Se em Portugal é assim…
Depois de ter sido informado de que dois jornalistas de dois órgãos de informação foram vigiados por autoridades públicas, “numa clara violação do seu sigilo profissional e da protecção das fontes de informação”, o Sindicato dos Jornalistas solicitou um esclarecimento urgente e “um cabal e rápido apuramento de responsabilidades”, refere a presidente do Sindicato, Sofia Branco, que alerta ainda para a “gravidade deste precedente e os constrangimentos que coloca ao exercício de um jornalismo livre e independente, fundamental em democracia”.
A revista Sábado noticiou que a procuradora Andrea Marques, do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, ordenou à PSP para fazer vigilâncias aos jornalistas Carlos Rodrigues Lima, da revista, e Henrique Machado, ex-jornalista do Correio da Manhã, actualmente na TVI.
Consta que nem Joana Marques Vidal (ex-PGR) nem Lucília Gago (actual PGR) estavam a par das diligências movidas contra jornalistas no âmbito do processo por violação do segredo de Justiça no caso “e-toupeira”. A antiga PGR não foi avisada de nada e a actual PGR apenas foi informada previamente das operações que visavam elementos da Polícia Judiciária.
Todas as operações movidas contra jornalistas no âmbito do processo por violação do segredo de Justiça no caso “e-toupeira” foram decididas pela procuradora Andrea Marques, que tutelava a investigação, e pela directora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, Fernanda Pêgo. A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou à VISÃO que só houve duas diligências comunicadas à PGR e que ambas estão mencionadas no comunicado feito pelo DIAP de Lisboa: uma operação de buscas às instalações da Polícia Judiciária e a constituição de arguido de um então coordenador de investigação criminal da PJ (com a respectiva apreensão do seu telemóvel).
Estas duas diligências tiveram lugar a 5 de Junho de 2019 e a 12 de Dezembro desse ano, numa altura em que Lucília Gago já ocupava o topo da hierarquia do Ministério Público. A dúvida instalou-se porque quando a procuradora Andrea Marques ordenou à PSP que vigiasse os passos na via pública de dois jornalistas, em Abril de 2018, na tentativa de perceber “com quem se relacionavam e que tipo de contactos estabeleciam com ‘fontes do processo’ (o processo e-toupeira), de modo a procurar identificar os autores das fugas de informação, também eles agentes da prática de crimes”, quem estava ao comando do Ministério Público era ainda Joana Marques Vidal. Estava então na recta final do seu mandato, do qual só sairia em Outubro de 2018.
Contactada pela VISÃO, Joana Marques Vidal alegou que não podia esclarecer a dúvida porque como magistrada estava obrigada ao dever de reserva. Horas depois, a PGR acabou por confirmar indirectamente que a antiga PGR não esteve a par destas operações.
Numa tentativa de explicar a vigilância aos dois jornalistas sem autorização de um juiz e a extracção para o processo de um histórico de mensagens telefónicas entre o coordenador da PJ e outras duas outras jornalistas (Sílvia Caneco, da VISÃO, e Isabel Horta, ex-jornalista da SIC), o DIAP de Lisboa informou num longo comunicado que sempre que as diligências “suscitaram maior melindre” estas “foram previamente comunicadas e, inclusivamente, acompanhadas pela hierarquia”.
O que estava ainda por esclarecer era quem era a hierarquia: se a Procuradora-Geral da República ou se a superiora hierárquica directa de Andrea Marques e sua directora no DIAP de Lisboa, a procuradora Fernanda Pêgo. Dúvida que é agora esclarecida pela PGR.
A VISÃO perguntou ainda à Procuradora-Geral da República se concordava com as operações desencadeadas pelo DIAP de Lisboa que visaram quatro jornalistas e se entendia que cumpriam os requisitos legais, mas não obteve respostas. Entretanto, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse ao Observador que vai pedir ao Conselho Superior do Ministério Público para avaliar a investigação de Andrea Marques.
O inquérito teve início a 9 de Março de 2018, três dias depois de uma fuga de informação sobre uma operação de buscas no âmbito do caso “e-toupeira”, que levou o tema a ser notícia nalguns sites de jornais logo pela manhã (do dia 6 de Março). A procuradora do processo entendeu que no momento em que a diligência começou a ser noticiada em alguns sites, o conteúdo das peças processuais se encontrava “acessível a um núcleo muito restrito de pessoas, todas ligadas ao processo por razões funcionais”, razão pela qual resolveu abrir um inquérito. Só que a investigação não começou pelos actores judiciários, mas pelos próprios jornalistas, e logo com diligências invasivas: vigilâncias que foram ordenadas à PSP, e que deixam muitas dúvidas legais.
Porque o crime em causa – violação do segredo de Justiça – não se enquadra no catálogo de crimes da lei nº5/2002 que permitem recolha de som e imagem (só se aplica a uma série de casos concretos, como os crimes de tráfico, o contrabando ou a corrupção); porque as diligências não foram autorizadas por um juiz de instrução; pela desproporcionalidade – estava sob suspeita um crime de violação do segredo de Justiça, punido no máximo com dois anos de prisão, o equivalente à moldura penal de um crime de injúria -; pelas restrições à liberdade de imprensa, princípio constitucionalmente consagrado; pela potencial violação do sigilo profissional do jornalista e quebra da confidencialidade das suas fontes – até porque as vigilâncias poderiam apanhar os jornalistas com outras fontes de informação que não tivessem qualquer ligação com as fugas de informação do processo “e-toupeira”.
Só em 2019 o Ministério Público passaria à segunda fase da investigação e promoveria operações de busca na Polícia Judiciária e apreensão de correio electrónico e de facturações detalhadas de alguns dos seus profissionais ligados ao combate à corrupção, e até de Almeida Rodrigues, antigo director daquela polícia. A procuradora Andrea Marques quis saber tudo o que tinha sido comunicado nos seis meses antes e nos seis meses após a operação de buscas do caso “e-toupeira”. Inclusivamente o que tinha sido apagado.
Foi no meio deste processo que um coordenador de investigação criminal da PJ foi constituído arguido e viu ser-lhe apreendido o telemóvel. A partir deste aparelho, a procuradora do DIAP de Lisboa emitiu um despacho em que mandou extrair para o processo o histórico das mensagens trocadas com a jornalista da VISÃO e com a ex-jornalista da SIC, que ao contrário dos colegas não foram ainda ouvidas nem na qualidade de testemunhas nem de arguidas. A jornalista da VISÃO desconhece o teor dos sms recolhidos e o propósito dessa recolha – já que não escreveu sobre a operação de buscas do caso “e-toupeira”, que era o objecto do processo. Essa diligência do Ministério Público poderá configurar um crime de violação de correspondência, além de poder constituir uma violação do sigilo profissional do jornalista.
A verdade é que também estas apreensões electrónicas levantam muitas dúvidas legais. Fontes judiciais ouvidas pela VISÃO argumentam que os crimes que estão sob suspeita neste inquérito também não permitem que sejam apreendidas mensagens telefónicas nem emails. No processo, que decorre há quase três anos, o Ministério Público imputa ao coordenador da PJ suspeitas de três crimes: violação do segredo de justiça, falsidade de testemunho e violação do dever de funcionário. Só que o último depende da apresentação de queixa, e Luís Neves, actual director da PJ, recusou-se a fazê-lo, o que levaria o crime a cair por terra. Foi também na altura em que a nova direcção da PJ tomou posse, em Junho de 2018, que terminaram as operações de vigilância a jornalistas, que tinham sido encomendadas à PSP.
Nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP) compete à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social (qualquer semelhança com a ERCA de Angola é mera e casual coincidência), garantir a liberdade de expressão e de informação, sendo que – e de acordo com o n.º3 do artigo 37.º daquele diploma fundamental – “as infracções cometidas no exercício desses direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente nos termos da lei”(cfr. também. artigo 39.º da CRP e Estatutos da ERC – Lei n.º53/2005 de 8 de Novembro, n.º2 do artigo 1.º e alínea a) e d) do artigo 8.º).
Tendo tomado conhecimento, através de comunicação social de comunicado do Sindicato dos Jornalistas e de declarações da Ordem dos Advogados, que um Magistrado do Ministério Público, sem estar munido de qualquer mandado judicial, determinou à Polícia de Segurança Pública (PSP) o seguimento/vigilância de jornalistas, tal, “prima facie”, indicia ostensivo olvidar de direitos fundamentais de jornalistas elencados no artigo 6.º do Estatuto do Jornalista (Lei n.º1/99, de 13 de Janeiro) e artigo 22.º da Lei de Imprensa (Lei n.º2/99 de 13 de Janeiro), sem autorização de um Tribunal, que o M.P. não é.
Do exposto, lê-se num comunicado da ERC, resulta que a ERC venha assinalar a gravidade da conduta descrita, esperando que a hierarquia do M.P. tome medidas para no futuro impedir quaisquer limitações à liberdade de imprensa e aos direitos dos jornalistas.
O Código Deontológico dos jornalistas portugueses estabelece:
1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
2. O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais.
3. O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.
4. O jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja. A identificação como jornalista é a regra e outros processos só podem justificar-se por razões de incontestável interesse público e depois de verificada a impossibilidade de obtenção de informação relevante pelos processos normais.
5. O jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos profissionais, assim como promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas.
6. O jornalista deve recusar as práticas jornalísticas que violentem a sua consciência.
7. O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes. O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o usarem para canalizar informações falsas. As opiniões devem ser sempre atribuídas.
8. O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, menores, sejam fontes, sejam testemunhas de factos noticiosos, sejam vítimas ou autores de actos que a lei qualifica como crime. O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.”
9. O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual.
10. O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.
11. O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional. O jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse.