Enquanto – sob a mediação do então Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal e grande amigo do MPLA, Durão Barroso – as delegações políticas do MPLA e da UNITA debatiam na Escola Superior de Hotelaria e Turismo de Estoril (Portugal), com todas as mordomias, o futuro de Angola, no terreno da guerra, William Tonet conseguia calar as armas e sentar à mesma mesa o general Ben Ben (UNITA) e o coronel Higino Carneiro (MPLA). Os três assinaram o Acordo do Alto Kauango a 19 de Maio de 1991. Doze dias depois, em Bicesse, os políticos dos dois partidos fizeram o mesmo.
Por Orlando Castro
A iniciativa de William Tonet esteve, aliás, na origem da aceleração das negociações que decorriam em Portugal e que levaram à assinatura, a 31 de Maio de 1991, dos Acordos de Bicesse. A iniciativa de William Tonet em vez de o transformar, como seria normal, num herói levou a que fosse ostracizado quer pelo MPLA (partido onde estão as suas origens), quer pelo então Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Durão Barroso, e não tanto pela UNITA.
Após a assinatura do Acordo do Alto Kauango, Durão Barroso temeu perder o protagonismo de ser, ou de julgar que era, o grande, o único, obreiro da paz. Foi então que, com a ajuda dos seus amigos do MPLA (até mesmo de José Eduardo dos Santos), conseguiu que a delegação do governo angolano aceitasse minimizar o papel de William Tonet, a ponto de até hoje ter banido da história do país a assinatura do Acordo do Alto Kauango.
Durão Barroso tentou também que a UNITA minimizasse a importância de um acordo que, recorde-se, foi assinado pelo seu então mais emblemático general, Arlindo Chenda Pena “Ben-Ben”. Aliás, a tentativa do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal fez com que o próprio Jonas Savimbi tenha dado instruções à delegação da UNITA para dizer ao MPLA e a Durão Barroso que, se necessário e em função do êxito do Acordo do Alto Kauango, não hesitaria em tentar repetir a iniciativa, dentro do país, de forma mais ampla.
Embora não tenham trazido a paz definitiva para Angola, os Acordos de Paz (sobretudo o do Alto Kauango que, pela primeira vez, juntou os protagonistas militares) transformaram consideravelmente a vida política angolana, pois, com a cessação das hostilidades, foram criadas condições, embora por pouco tempo, que projectaram o país para um horizonte onde a democracia ganhou força.
Depois de cerca de trinta anos de dor, privações e luto, causados por uma guerra cruel e devastadora, o povo angolano teve, a partir da assinatura do Acordo do Alto Kauango, a possibilidade de encarar com optimismo e confiança o seu futuro, mas tudo foi por “água abaixo”, devido ao reacender dos conflitos.
O conflito armado foi a causa principal da morte de milhares de pessoas, milhares de deslocados, milhares de crianças órfãs e da destruição de grande parte das infra-estruturas e a contracção de uma elevada divida externa.
Os escassos anos de tranquilidade e paz relativa que os angolanos viveram mostraram que, sem guerra, Angola poderia caminhar económica e socialmente, rumo ao desenvolvimento.
No acto de assinatura do Acordo político de Bicesse, o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, disse que “o povo angolano e o país precisam de sossego e estabilidade inteira, precisam da compreensão e apoio da comunidade internacional para construir o seu futuro”.
Segundo o Chefe de Estado, “em todo este processo houve também uma bem sucedida conjugação de esforços a nível internacional, que ajudaram a atenuar as divergências e lançar as bases de uma convivência pacífica e aberta entre todos os angolanos”.
“Tenho a expressar em nome do povo angolano e do seu Governo, e também em meu nome pessoal, o mais vivo reconhecimento ao Governo da República Portuguesa, pela forma empenhada, isenta, sensata e sábia como exerceu o seu esforço de mediação entre o Governo angolano e a UNITA”, reconheceu o Presidente.
Bicesse previa um “acordo de cessar-fogo”, da responsabilidade do Governo de Angola e da UNITA, actuando no âmbito da Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM), criada nos termos de princípios Fundamentais para a instauração da paz no país.
Segundo os acordos, a Comissão Mista de Verificação e Fiscalização “CMVF” teria a competência necessária para assegurar o efectivo cumprimento do cessar-fogo, cabendo-lhe, nomeadamente, conhecer as áreas de localização das tropas, controlar o cumprimento das normas de conduta previamente acordadas para as tropas nas áreas de localização.
Com o Acordo de Bicesse, estribado que estava na assinatura dos militares, dias antes, no Kauango, deu-se então início ao processo de democratização, que conduziu o país às primeiras eleições multipartidárias e presidenciais, realizadas nos dias 29 e 30 de Setembro de 1992.
Divulgados os resultados finais, ratificados pela então representante em Angola do secretário-geral da ONU, Margaret Anstee, que confirmou que as eleições realizadas de forma livre e justa e fiscalizadas por observadores internacionais, foram ganhas por maioria absoluta pelo MPLA, com 2.124.126 votos, correspondendo a 53,74 por cento.
Os resultados foram contestados pela UNITA que se rearmou, mergulhando novamente o país numa guerra sem precedentes, ocupando ilegalmente as principais cidades de províncias, numa clara tendência de tomada do poder pela força.
Este acto surpreendeu a então representante do secretário-geral da ONU, Margaret Anstee, que não acreditava ou nada fazia em relação às denúncias apresentadas pelo órgão reitor dos acordos, a CCPM, que indicavam o rearmamento, movimentações militares, capturas, ocupações de localidades e a continuidade de propaganda hostil.
Mergulhado numa nova guerra civil, o número de vítimas mortais triplicou comparativamente aos conflitos anteriores, assim como aumentaram os deslocados, a fome, a miséria e as destruições das infra-estruturas.
Com o “andar da carruagem”, as Nações Unidas enviaram a o maliano Alioune Beye, em substituição de Margareth Anstee, com o objectivo de mediar novas negociações e encontrar uma solução africana para conflito.
A partir daí, a capital zambiana, Lusaka, passou a albergar novas negociações entre o Governo e a UNITA que, depois de mais de um ano de debates, a 20 de Novembro de 1994, foi rubricado o protocolo de Lusaka pelo então ministro das Relações Exteriores, Venâncio de Moura (Governo) e pelo antigo Secretário-Geral da UNITA, Eugénio Manuvakola.
Mesmo com o Acordo de Lusaka, registavam-se constantemente ataques armados em várias localidades do país, até que, após negociações, sem a interferência de mediação estrangeira, os angolanos entenderam que havia a necessidade da cessação das hostilidades.
Assim, foi assinado a 4 de Abril de 2002, o Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka, entre o Governo e a UNITA, marcando o fim de um longo período de guerra.
A partir da assinatura desse acordo, o 4 de Abril foi instituído como dia da paz e reconciliação nacional, passando a figurar como feriado nacional.
Esta data passou a ser uma referência histórica importante na luta do povo angolano, por marcar uma viragem decisiva no processo político e no do desenvolvimento de Angola.
A data constitui, igualmente, uma das maiores conquistas do povo angolano, após a Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975.
Cronologia do processo de paz
1961
– Início da luta pela independência contra o regime colonial português.
01/75
– Negociações do Alvor, em Portugal, que estabelecem as condições para a independência de Angola.
11/11/75
– Independência de Angola após uma guerra de 14 anos. Um mês antes, MPLA, UNITA e FNLA envolveram-se numa guerra civil. A África do Sul, ainda dominada pelo regime de “Apartheid”, enviou tropas em apoio à UNITA, enquanto o MPLA contou com a ajuda de um contingente militar cubano com vasta assessoria no terreno de militares russos.
20/09/78
– José Eduardo dos Santos tornou-se Presidente da República após a morte de Agostinho Neto.
16/02/84
– Acordo entre Luanda e Pretória sobre a retirada das forças sul-africanas, só concluído em 1988.
20/12/88
– Criação da Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM).
22/12/88
– Acordo de Nova Iorque para a retirada de 50.000 soldados cubanos (só concretizado em 1991) que apoiavam o regime de Luanda.
26/03/91
– Instauração do multipartidarismo.
19/05/91
– Assinatura do Acordo do Alto Kauango. Foi o primeiro acordo de paz subscrito no interior de Angola, mediado pelo jornalista William Tonet e assinado (para além do mediador) pelo general Ben Ben (UNITA) e pelo coronel Higino Carneiro (MPLA). Foi um acordo autorizado pelos dois máximos dirigentes das forças em guerra, José Eduardo dos Santos (MPLA/FAPLA) e Jonas Savimbi (UNITA/FALA).
31/05/91
– Assinatura do Acordo de Bicesse pelo Governo e pela UNITA, que previa o cessar-fogo, constituição do exército único e realização de eleições gerais (não cumprido).
26/09/91
– Primeira visita do líder da UNITA, Jonas Savimbi, ao Futungo de Belas, sede da presidência angolana em Luanda, pós-Bicesse. Encontro de carácter político, em que o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, se manifestou “firme” quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos em Bicesse.
29 e 30/09/92
– Eleições presidenciais e legislativas. O MPLA foi o partido mais votado, ganhando a maioria absoluta, e a UNITA ficou em segundo lugar. José Eduardo dos Santos foi o mais votado na primeira volta das presidenciais. A segunda volta das presidenciais entre os líderes do MPLA e da UNITA nunca chegou a ser marcada, porque o maior partido da oposição não aceitou os resultados das eleições, consideradas livres e justas pela ONU e pelos observadores internacionais.
02/10/92
– Savimbi declarou as eleições fraudulentas e ameaçou regressar à guerra se a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tornasse públicos os resultados, o que veio a acontecer.
31/10/92
– Início de confrontos violentos em Luanda, que duraram três dias e em que morreram dirigentes da UNITA. Entre os dirigentes da UNITA mortos, figuram o seu vice-presidente, Jeremias Chitunda, e o chefe da representação do movimento do Galo Negro na CCPM e sobrinho de Savimbi, Elias Salupeto Pena. Foi dado por desaparecido o então secretário-geral, Alicerces Mango Valentim. A escalada de guerra torna-se incontrolável a partir desta data, refugiando-se a UNITA no Huambo, onde tinha concentrado o seu quartel-general.
12/04/93
– Governo angolano e UNITA encontraram-se em Abidjan, na Costa do Marfim, para nova tentativa de negociação de um acordo de paz para Angola, sob mediação do Presidente Félix Houphouet-Boigny, mais uma vez sem sucesso.
06/93
– O maliano Alioune Blondin Beye substituiu a britânica Margaret Anstee como representante especial do secretário-geral da ONU em Angola, empenhando-se num prolongado processo de negociação da paz, que culminou em 1994 com a assinatura do Protocolo de Lusaca.
15/09/93
– O Conselho de Segurança aprovou sanções contra a UNITA, incluindo um embargo de armas e petróleo e seus derivados.
15/11/93
– Início das conversações de paz no âmbito do processo de Lusaca. As delegações das partes beligerantes negociavam directamente em nome do governo angolano e da UNITA.
20/11/94
– Assinatura do Protocolo de Lusaca, após mais de 11 meses de negociações entre o governo do MPLA e a UNITA, na presença de José Eduardo dos Santos e na ausência de Savimbi.
06/05/95
– José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi reuniram-se em Lusaca, dois anos e oito meses após o último encontro. Os dois afirmaram que tinham ultrapassado “todas as divergências” existentes.
11/04/97
– O Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) foi empossado. Com 28 ministros, 58 vice-ministros e um secretário de Estado, o executivo era dirigido por Fernando França Van-Dúnem e abrangia todas as formações políticas nacionais com assento no parlamento. A UNITA participou neste Governo com quatro ministros e sete vice-ministros.
28/08/97
– O Conselho de Segurança da ONU decretou um segundo pacote de sanções contra os responsáveis da UNITA e membros da sua família directa, que os impedia de viajar e previa o “encerramento imediato e total” das suas delegações fora do território angolano, que entrou em vigor dois dias mais tarde.
31/03/98
– O chamado “Estatuto especial” de Jonas Savimbi foi publicado no boletim oficial. Esta lei assegurava ao presidente da UNITA um quadro de intervenção política na vida nacional, de garantias jurídicas, protocolares, de segurança e de direitos e deveres.
12/06/98
– O Conselho de Segurança aprovou, por unanimidade, o terceiro pacote de sanções contra a UNITA, decidindo congelar os “fundos e recursos financeiros” da organização no exterior e proibir a importação directa ou indirecta de diamantes de Angola que não fossem certificados pelo governo.
26/06/98
– O mediador da ONU para Angola, Alioune Beye, morreu na queda de um avião na Costa do Marfim. Beye fazia uma digressão que o levaria a cinco países africanos, numa tentativa de encontrar uma solução para um novo impasse no processo de paz angolano.
24/08/98
– A UNITA cessou a sua colaboração com a troika de observadores – Portugal, Estados Unidos e Rússia – encarregada desde 1991 de acompanhar o processo de paz.
02/09/98
– Antigos elementos da UNITA afastaram-se do movimento e criaram o seu Comité de Renovação. O Governo angolano cessou o diálogo com a UNITA liderada por Savimbi, reconhecendo os dissidentes como seus únicos interlocutores.
11/98
– O exército governamental lançou uma ofensiva geral contra a UNITA.
26/02/99
– A ONU decidiu pôr fim à MONUA devido ao recomeço da guerra. Uma nova missão da ONU, simbólica, seria criada em Outubro.
24/07/99
– As autoridades angolanas emitiram um mandado de captura contra Savimbi.
30/11/00
– O Parlamento angolano aprovou uma lei de amnistia aplicável aos elementos da UNITA e ao seu líder. O movimento do Galo Negro rejeitou a lei e manteve a exigência de negociações directas.
03/06/01
– Savimbi reconheceu a derrota na guerra convencional conduzida pelo seu movimento contra o regime de Luanda.
10/08/01
– Um ataque contra um comboio de passageiros na província de Cuanza Sul (norte), reivindicado pela UNITA, provocou 259 mortos e 412 desaparecidos.
18/02/02
– O exército angolano anunciou a tomada de bases da UNITA, capturando sete oficiais e abatendo oito guerrilheiros do movimento rebelde angolano na província do Moxico, onde Savimbi estaria refugiado.
22/02/02
– O governo anunciou que as forças governamentais tinham abatido Savimbi na província do Moxico.
15/03/02
– Data do início oficial das negociações entre as chefias militares das FAA e das forças da UNITA.
30/03/02
– O chefe do Estado Maior Adjunto das FAA, general Geraldo Nunda, e o chefe do Alto Estado Maior Geral das Forças Militares da UNITA, general Abreu Muengo “Kamorteiro”, rubricam no Luena, Moxico, os termos de um acordo de cessar-fogo em Angola a ratificar hoje formalmente em Luanda.
03/04/02
– O parlamento angolano aprova a lei da amnistia, em que são amnistiados “todos os crimes contra a segurança do Estado que foram cometidos no contexto do conflito armado angolano”. A organização de defesa dos direitos humanos Amnistia Internacional condenou a aprovação desta lei, defendendo que os dois lados cometeram crimes horríveis e que os seus autores devem ser julgados.