Durante anos, décadas, a oligarquia angolana andou a subtrair recursos ao povo angolano para enriquecer de forma despudorada. O corolário é o expectável. Angola é hoje um dos países menos desenvolvidos do mundo, tem das maiores taxas de mortalidade infantil, uma em cada quatro crianças morre nos primeiros cinco anos de vida; ao mesmo tempo, as maiores fortunas multiplicam-se, festas mais sumptuosas têm lugar em Luanda…
Por Paulo de Morais (*)
A filha do vice-presidente Bornito de Sousa gasta 200.000 dólares no vestido do seu casamento, nos restaurantes luxuosos janta-se a duzentos dólares por pessoa – enquanto as crianças morrem nas ruas e nos musseques de Luanda.
Um dos símbolos máximos da extorsão de riqueza ao povo, Isabel dos Santos, está agora às mãos da Justiça angolana. Ainda bem! Isabel está ainda sob o escrutínio público mundial, sobretudo depois da divulgação, pelo consórcio internacional de jornalistas, do desvio de centenas de milhões da Sonangol, em seu proveito, nos tempos em que foi presidente da petrolífera.
Este episódio veio adensar as já enormes suspeitas sobre a fortuna de Isabel dos Santos, nomeadamente aqui em Portugal, onde é sócia dos dois maiores grupos económicos, a Sonae (através da parceria estratégica na operadora de telecomunicações NOS) e do Grupo Amorim (que é, com Isabel dos Santos e a Sonagol, o maior accionista da petrolífera Galp). Isabel dos Santos é hoje dona das maiores fortunas de Portugal e detém, além das participações referidas, a maioria do capital do Banco Eurobic e da tecnológica EFACEC, entre muitos outros negócios. Onde foi Isabel dos Santos angariar tanto capital?
Mas Isabel não foi a única a beneficiar, de forma milionária e até obscena, das riquezas de Angola. Longe disso! Há um rol extenso de políticos e dirigentes que enriqueceram de forma pornográfica, graças à sua proximidade ao palácio presidencial de Dos Santos, onde pontificava um triunvirato de poder, constituído por Isabel, Kopelipa e Manuel Vicente. Há pois que, de forma sistemática, identificar aqueles que – beneficiando desta proximidade ao ex-presidente, ao seu histórico palácio no Futungo de Belas e ao referido triunvirato – fizeram reverter para si as maiores riquezas de Angola.
Em primeiro lugar, a Justiça de Angola deve investigar todos os dirigentes que desviaram dinheiro a partir da Sonangol e suas associadas e até dos próprios Orçamentos de Estado e averiguar qual o destino dado a essas verbas. Impõe-se também investigar a origem do capital de empresas constituídas por angolanos da elite em Portugal, com dinheiro que era do povo angolano – aqui com o apoio da Justiça portuguesa.
Mas temos também o direito de saber como foram realizadas as participações de angolanos em empresas de capital português instaladas em Angola. E, finalmente, qual o destino dado aos créditos concedidos por bancos de capital português à nomenclatura do MPLA e a generais angolanos, em particular pelo Banco Espírito Santo (Angola), à época presidido por Álvaro Sobrinho.
Para além de Isabel dos Santos, alguns outros terão de ser investigados. E algumas empresas, como obviamente a Sonangol, deverão ter as suas contas e decisões “varridas” pela Justiça. Para que se perceba a delapidação de recursos de que foi alvo ao longo de anos, qual a forma de transferência de recursos para as suas associadas e como eram enviados milhares de milhões para fora do país, para Inglaterra ou para Hong-Kong.
Há que apurar a forma como a Sonangol, presidida então por Manuel Vicente, se associou à Cobalt, onde um dos accionistas, ainda que de forma indirecta, era… o próprio Manuel Vicente. Há ainda que apurar qual o papel da Sonangol na aquisição da falida Escom, de Helder Bataglia, que havia estado envolvido em esquemas de corrupção na aquisição de submarinos alemães por parte do Estado português.
Muito mais há que apurar na vida da Sonangol, empresa que passou por enormes dificuldades financeiras, apesar de explorar e comercializar a maior riqueza mineral de Angola, o petróleo.
Mas urge também saber como enriqueceram todos aqueles que vieram instalar-se com negócios em Portugal com dinheiro subtraído ao povo angolano. Com que dinheiro adquiriu Kopelipa (filho) a representante em Portugal da Ferrari, a Viauto (adquirida ao grupo Espírito Santo); e onde foi Lopo do Nascimento angariar o capital que lhe permite controlar uma das maiores empresas de engenharia portuguesa, a COBA. E como pode Kopelipa (pai) ter adquirido 10% do banco BIG?
A origem do capital dos angolanos que adquiriram ao longo de anos empresas portuguesas é um dos segredos mais bem guardados. Segredo a que todos temos de ter acesso, portugueses e angolanos.
Outras questões devem ser esclarecidas, nomeadamente a questão dos empréstimos que o BES (Angola) presidido por Álvaro Sobrinho concedeu à elite angolana. Porque emprestou o BES(A), sem garantias, 800 milhões de dólares à irmã do ex-presidente Dos Santos? Porque foram concedidos empréstimos a alguns membros da cúpula do MPLA, entre os quais o próprio Presidente João Lourenço, que nunca foram pagos?
E – pasme-se! – porque nunca foi executada por Portugal a garantia que o Estado angolano emitiu como contrapartida de todos estes empréstimos particulares. A garantia dum Estado soberano para cumprir obrigações privadas é estranho e imoral. Mas não a executar atinge as raias do absurdo, até porque os fundos daqui provenientes poderiam minimizar os custos que os portugueses estão a ter ao pagar os prejuízos deixados pelo falido ex-BES (Portugal).
Face a todo este emaranhado de cumplicidades entre empresários portugueses e a elite angolana, entre a elite política portuguesa e os investidores (públicos ou privados) de origem angolana – só uma mega operação da Justiça (angolana e portuguesa) poderá esclarecer toda esta situação. Impõe-se este esclarecimento geral e sem ambiguidades, a que só uma operação como a “Mãos Limpas”, em Itália, poderá responder.
Para que tal seja possível, é necessário que as forças políticas angolanas celebrem um pacto de regime do tipo do “Pacto da Moncloa”, um dos documentos fundacionais do regime democrático espanhol, que assim nasceu sem permitir perseguições aos apoiantes do ditador Franco e até com o apoio destes. Mas este pacto, que no fundo formatará um novo regime, tem de ser estabelecido com o espírito que enformou a comissão “Verdade e Reconciliação”, promovida por Mandela. Apurar toda a verdade, recuperar (ainda que parcialmente) os activos e construir o futuro de Angola com base na reconciliação das elites (estas e outras) com o seu Povo.
Sem um esclarecimento global de todas as verdades escondidas relativas às fortunas de Angola, sem um mínimo de Justiça que devolva o património ao que deve ser o seu verdadeiro detentor, o Povo, sem uma adesão de toda a sociedade angolana a um projecto de futuro que, sem ocultar o passado, projecte o que tem de seu melhor para o futuro, sem a percepção das autoridades políticas de que só em conjunto se constrói uma sociedade justa e desenvolvida – sem estas características, Angola nunca será um País, mas apenas um espaço geográfico onde bandos se digladiam na disputa de riquezas e recursos naturais, onde vive um povo na miséria, a sofrer e a assistir a numa luta interminável em que, no final, todos perdem e Angola, sem qualquer capacidade de regeneração enquanto sociedade, sairá definitivamente devastada.
(*) Presidente da Frente Cívica