No último editorial do William Tonet a imagem do MPLA que este descreve logo no início do seu texto e que passo a citar “A natureza perversa do “MPLA/vingativo, que assassinou o MPLA/ nacionalista e democrático de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Matias Miguéis e outros, autoritariamente imposta, em 1964, por Agostinho Neto e Lúcio Lara, a ferro, fogo e rios de sangue…” resume de um modo muito sucinto a história do partido. Mas eu, olhando de fora, tenho uma ideia talvez um pouco mais complexa do MPLA.
Por Carlos Pinho (*)
De facto, a meu ver, houve e há quatro MPLA’s. Os dois acima citados pelo William Tonet, e outros dois que são frequentemente esquecidos. O MPLA 3 daqueles que na mata deram o corpo ao manifesto e se lá não tombaram foram posteriormente varridos pela insanidade mental do MPLA 2, o do Agostinho Neto e comparsas, caso do Monstro Imortal, ou dos menosprezados pela história, caso do grosso dos seus antigos combatentes, e finalmente o MPLA 4 o dos sonhadores, muitos dos quais integravam a sociedade civil à data da queda do regime colonial português em 25 de Abril de 1974 e que se reviam numa transição ordeira e equilibrada de regime, que, como todos sabemos, foi morta à nascença pela irresponsabilidade dos três movimentos, FNLA, MPLA e UNITA. Quem dos três movimentos foi mais ou menos responsável desta insanidade colectiva, acaba agora por ser irrelevante, dado o estrago histórico que foi feito.
Pois desses quatro MPLA’s, a que chamo respectivamente o MPLA 1, 2, 3 e 4, o primeiro lá foi igualmente varrido pelas arbitrariedades do Agostinho Neto, na sua caminhada para o poder absoluto. O MPLA 2 é no fundo aquela malta que se passeava pelas capitais mundiais, ou curtia a vida em capitais africanas, nomeadamente em Brazaville, e que quando era necessária uma foto para mostrar valentia lá metia um pezinho cauteloso através da fronteira de Angola com um dos estados vizinhos, dava uma pose de intelectual literato, quer com a metralhadora em punho ou colocada displicentemente de lado, dando assim mostras ao mundo da dimensão notável das zonas libertadas.
Quanto ao MPLA 3, as linhas que escrevi acima explicam tudo. Falta o MPLA 4, muitos, principalmente os mais jovens, mais sonhadores e mais impulsivos, seguiram o caminho das tormentas e lá se foram na loucura do pré e do pós-Maio de 1977, enquanto que a maioria, presumo, calou-se muito caladinha e foi levando a vida, ou sendo levada por ela. Este MPLA 4 engloba também muitos dos que participaram, foram de Angola, na luta armada ou política e que regressando ao país não se reviam nos desmandos que foram efectuados. O problema é que bastante gente deste MPLA 4, atracou-se alegremente ao MPLA 2, e apoiou e participou no regabofe que foram estes 45 anos de desgovernação do partido, o tal que na sua petulância se crê confundir-se com o povo.
A meu ver muita desta gente oportunista sem escrúpulos e moralmente muito duvidosa, fazia parte daquilo que se chamava, lá pelos finais do século XIX e início do século XX, os pretos calçados e que mais do que os brancos e os mestiços, desprezava profundamente os pretos descalços, as gentes simples do interior. Era toda uma sociedade que tinha colaborado com o regime português, muitos envolvidos no tráfico de escravos e em outros comércios de índole colonial. Era funcionários públicos ou administrativos, actuando tanto no sector público como no privado. Iam levando a sua vida e muitos deles tiravam partido das licenças graciosas, lá indo periodicamente passar na Metrópole de então, as ditas férias. Era pois, gente que pragmaticamente ia cooperando e até mesmo pactuando com o regime vigente.
Com os novos ventos, os mais habilidosos abraçaram rapidamente a nova causa, enquanto os mais desconfiados ou cautelosos, embora regozijando-se com esses novos tempos, mantiveram sempre uma atitude cautelosa. Estou em crer, pelo que me foi dado ver nos poucos meses que esporadicamente passei pela Angola independente, ao longo de várias estadias dispersas no tempo, que essa maioria do MPLA 4 vai olhando com desgosto a traição levada a cabo pelo MPLA 2, o MPLA 2 dos seus mentores iniciais e dos trânsfugas oportunistas que engordaram esta, posso assim dizer, facção. E os 45 anos de país independente têm sido cenário para todas as usurpações e desmandos.
O que é relevante é que o historiador Carlos Pacheco, escreve no jornal português Público deste passado 19 de Dezembro (e que o Folha 8 hoje transcreveu) um artigo assaz interessante e intitulado “Traição das classes cultas angolanas”. O dito jornal Público salienta por exemplo: “Que aconteceu às camadas pensantes nativas e às suas inclinações primordiais de combate humanístico em prol de uma sociedade política e socialmente mais justa, mais solidária e preocupada com as profundas mazelas do seu povo, hoje a viver nos estreitos limites da sobrevivência?”.
Pois, eu na minha limitação intelectual e cultural, não sou historiador e muito menos antropólogo ou sociólogo, acho que a tal inteligência angolana não desapareceu. Está escondida, latente e envergonhada no MPLA 4 e logicamente noutros partidos e sectores mais ou menos politizados da sociedade angolana e quiçá longe, muito longe da política. Envergonhada, não tanto pelos patifes que constituíram originariamente o MPLA 2, pois o que sabiam dos desatinos que ocorriam por mor da luta de poder, não lhes augurava nada de bom. Envergonhada, sim, pelos seus parceiros, traidores e trânsfugas do MPLA 4 (e não só) que se passaram para o MPLA 2 e que agora aparecem impantes de vaidade, dinheiro e pseudocultura na partilha despudorada do poder e protagonismo de uma Angola cada vez menos virada para o bem-estar do seu povo. Alguns desses envergonhados do MPLA 4 falam com algum pudor, e quiçá muito mais receio, das memórias das respectivas estadias no “Hotel de São Paulo”, continuando ingenuamente a acreditar que um dia o MPLA se vai regenerar e se irá tornar no verdadeiro partido do povo angolano. Um partido pluri-social e pluri-racial que consiga levar o país a trilhar de um novo caminho de progresso e igualdade. Ledo engano! Aquela bandidagem que constitui o MPLA 2 continua na mesma senda de sempre, inventando desculpas e esquemas para louvar o líder supremo, por quem, rezavam os seus cânones, que todos esperavam, mas que afinal se tornou efectivamente não motivo de espera, mas causa de desespero. Foram passando os líderes, mas as louvaminhas não.
E inventam datas para a criação do partido, mesmo contradizendo contemporâneos que viveram tal época, e pedem às universidades e estudiosos que analisem com afinco os escreveres e dizeres do grande líder, à procura de um “Santo Graal Ideológico”. E continuam o olhar para o respectivo umbigo não vendo, ou não querendo ver o descontentamento que grassa na sociedade angolana em geral e nos mais jovens em particular.
E de fora do país, vai-se olhando com desgosto a incapacidade deste em ter líderes à altura, sucedem-se acusações de corrupção que acabam nalguns casos por resultar em punições para os mais pequenos, mas nada que possa atingir os maiores vilões. Diz-se que um dia se chegará lá. Porventura no Dia de São Nunca à Tarde. Enquanto esse dia não chega, ala que se faz tarde, vamos até ao Dubai, a ver se a maré acalma!
Um comentário final, que embora à partida possa parecer extemporâneo, mostra na verdade a Angola, que esses trânsfugas do MPLA 4 têm ajudado a criar. É interessante ver comentários acerca do racismo branco existente em Portugal, ou na Europa, ligado ao futebol e não só. O assassinato de um ucraniano pelo SEF Português (Será que SEF e português de Portugal quer dizer Serviço de Eliminação Física?) parece ter despoletado uma onda de comentários pouco abonatórios quanto aos países maioritariamente brancos, esquecendo-se os articulistas da onda de indignação e denúncia que se levantou na comunicação social portuguesa (só para referir esta) quanto a todas estas situações vergonhosas. Já na comunicação social angolana, salvo raríssimas e honrosas excepções, não vejo comentários à lei angolana racista sobre a nacionalidade. Filho de estrangeiro não pode ser angolano? Porquê, se à data de 10 de Novembro de 1975 não existia formalmente a nacionalidade angolana? Será que nos é permitido escrever “Negros Costumes”? Eu posso falar com alguma propriedade sobre o racismo negro. Só para dar um pequeno exemplo, o meu mais recente, em finais de Agosto de 2018, na Praia Morena, em Benguela, ouvi por parte de um membro de uma equipa de futebol de Luanda, julgo que sub-20 ou sub-21, apupos à minha condição de branco. E não ouvi nenhum dos colegas do artista em questão a mandá-lo calar. Nesta questão do racismo, estamos infelizmente todos no lado errado da história. Mas isto também mostra que o padrão cultural que começa a instalar-se em Angola, por força dos referenciais do MPLA 2, não auguram nada de bom num futuro próximo. Há demasiada preocupação se fulano é descente de são-tomenses, se sicrano é mestiço, se beltrano é sulano, se aquele lá é quimbundo ou ovimbundo, se é branco, amarelo ou às riscas. Em suma, uma trapalhada.
Não dá para nos sentarmos civilizadamente à volta de uma mesa com umas bejecas (cervejas, em calão tuga) e discutirmos animadamente o que nos une em vez daquilo que nos separa, o amor a Angola? Droga! Cá estou eu a sonhar acordado novamente!
(*) Professor da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto