Cheira a estado de guerra

O director da consultora EXX Africa disse hoje à Lusa que as reformas em Angola poderão ser adiadas devido à crise económica e aos protestos violentos das últimas semanas, o que afecta as relações com o Fundo Monetário Internacional. Juntando a isso a pandemia de Covid-19, eis que o MPLA fica com luz verde para inventar a necessidade de declarar o estado de guerra.

Vejamos o que diz o Artigo 58.º da Constituição de Angola (Limitação ou suspensão dos direitos, liberdades e garantias):

1. O exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitado ou suspenso em caso de estado de guerra, de estado de sítio ou de estado de emergência, nos termos da Constituição e da lei.
2. O estado de guerra, o estado de sítio e o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública.
3. A opção pelo estado de guerra, estado de sítio ou estado de emergência, bem como a respectiva declaração e execução, devem sempre limitar-se às acções necessárias e adequadas à manutenção da ordem pública, à protecção do interesse geral, ao respeito do princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão, duração e meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.
4. A declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.
5. Em caso algum a declaração do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência pode afectar:
a) A aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania;
b) Os direitos e imunidades dos membros dos órgãos de soberania;
c) O direito à vida, à integridade pessoal e à identidade pessoal;
d) A capacidade civil e a cidadania;
e) A não retroactividade da lei penal;
f) O direito de defesa dos arguidos;
g) A liberdade de consciência e de religião.
6. Lei especial regula o estado de guerra, o estado de sítio e o estado de emergência.

“A crise económica e os protestos violentos que originou vão aumentar a pressão sobre o Governo de Angola para atenuar as reformas definidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e as medidas de austeridade”, disse Robert Besseling quando questionado sobre se a crise propicia ou dificulta a implementação das reformas.

“Os recentes casos de corrupção, a falta de empenho na transparência e a falta de reformas no sector bancário vão prejudicar as relações com o FMI e adiar a implementação da agenda reformista”, acrescentou o responsável, na semana em que se assinalam os 45 anos da independência do país cuja governação sempre esteve nas mãos do mesmo partido, o MPLA.

O director desta consultora sedeada em Joanesburgo considerou que a privatização dos activos não petrolíferos está “parada devido à falta de interesse dos investidores” e avisou que isso “prejudica a diversificação económica”.

Os investimentos privados, notou, “são principalmente direccionados para o sector petrolífero, como os 920 milhões de dólares [775 milhões de euros] para a refinaria petrolífera de Cabinda, que estão a ser financiados de forma opaca pela Gemcorp numa altura em que o preço do petróleo ainda está abaixo do ‘break-even’ [ponto de início do lucro]”.

Questionado sobre a evolução da economia de Angola nos próximos anos, em que a maioria dos analistas prevê um regresso ao crescimento económico positivo depois de cinco anos de recessão, Robert Besseling lembrou a recente sondagem feita pela EXX Africa, que mostra que 60% dos angolanos estão pessimistas sobre o país que, aliás, conta com mais de 20 milhões de pobres.

“Apesar de o FMI antever uma modesta recuperação económica no próximo ano, os angolanos estão pessimistas; a elevada inflação e o desemprego massivo são as principais preocupações para muitos angolanos, numa altura em que a agenda de privatizações do Governo está parada devido à pandemia e continua vulnerável a interferências políticas, o que está a manter os investidores estrangeiros relutantes em investir nos activos angolanos”, concluiu o analista.

O governo assinala os 45 anos de independência a partir de terça-feira, com uma homenagem no Palácio Presidencial, e várias inaugurações, entre as quais a do Hotel Intercontinental, nacionalizado no mês passado.

Angola poderá deixar de pagar pelo menos 2,6 mil milhões de dólares (2,2 mil milhões de euros) em pagamentos de dívida só este ano, o que corresponde a 3,1% do Produto Interno Bruto do ano passado. A Fitch Ratings considera que Angola será o país mais beneficiado com uma possível extensão da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) do G20, podendo “poupar” 4,3% do PIB só este ano.

“De acordo com os dados dos pagamentos devidos, publicados pelo Banco Mundial, só cinco dos 22 países que a Fitch avalia e que são elegíveis para participar na DSSI, veriam os requisitos de financiamento para este ano reduzidos em mais de 1%, sendo o benefício para Angola, com 4,3%, o mais elevado, de longe“, lê-se num relatório sobre o impacto da adesão dos países mais vulneráveis à iniciativa do G20.

No documento, a Fitch Ratings diz que destes países (Angola, Moçambique, República do Congo e Laos), apenas o Laos não se candidatou à iniciativa organizada em Abril e que pretende suspender os pagamentos de dívida oficial bilateral até final deste ano, e que em Novembro poderá ser prolongado para final de 2021 devido aos efeitos da pandemia nas economias mais fragilizadas.

“Uma extensão da DSSI do G20 para os países dos mercados emergentes é provável, possivelmente na reunião de Novembro, o que amplificaria os benefícios desta iniciativa”, escrevem os analistas da Fitch Ratings, detida pelos mesmos donos da consultora Fitch Solutions.

Até agora, foram mais de 40 os países, incluindo os lusófonos Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola, que pediram para participar nesta iniciativa, que não abarca a dívida a credores privados, que teria de ser tratada separadamente.

“O G20 encorajou os investidores do sector privado para darem alívio de dívida em linhas similares às do alívio providenciado ao abrigo da DSSI, mas isto não é um requisito para a participação”, nota a Fitch, acrescentando que “até agora nenhum dos países que participam na DSSI disse publicamente que iria tentar ter um tratamento similar dos credores privados, o que reflecte, em parte, as preocupações sobre o acesso aos mercados financeiros”.

À excepção da Moody’s, as outras duas principais agências de notação financeira consideram que a participação na iniciativa não implica necessariamente uma descida do rating, mas a Moody’s argumenta que a participação implica um enfraquecimento da posição financeira e, por conseguinte, uma descida no rating.

“A DSSI foca-se apenas na dívida aos credores oficiais, que não é coberta pela definição de default (incumprimento) da Fitch”, salientam os analistas.

Recorde-se que a consultora EXX Africa considera que Angola tem um risco “cada vez maior” de entrar em Incumprimento Financeiro (‘default’), mesmo depois de receber a terceira tranche do programa de assistência financeira do Fundo Monetário Internacional.

“Angola enfrenta um risco cada vez maior de entrar em incumprimento financeiro devido aos elevados pagamentos de dívida e forte dependência das receitas petrolíferas, mesmo depois de receber a terceira tranche do programa de assistência financeira do FMI”, no valor global de 3,7 mil milhões de dólares (3,4 mil milhões de euros), diz a EXX Africa numa análise à economia de Angola.

No documento, os analistas liderados por Robert Besseling escrevem que “o custo de servir a dívida deverá aumentar, apesar de já representar 56,8% do orçamento, e a dívida pública deverá ter ficado nos 111% do PIB no final do ano passado, parcialmente devido à depreciação da moeda”.

O problema, sublinham os analistas, “é que os indicadores da dívida vão continuar elevados num contexto em que os preços do petróleo vão continuar em níveis mínimos”.

Assim, alertam, “Angola pode juntar-se à onda de Incumprimentos Financeiros [‘default’, no original em inglês] soberanos este ano a não ser que os empréstimos sejam reestruturados ou ‘perdoados’”.

O custo de transaccionar a dívida de Angola com maturidade a Novembro de 2025 subiu para quase 30% no final de Março, quando no princípio deste mês estava nos 7%, lembra a EXX Africa, e durante Abril esteve sempre acima dos 20%, de acordo com os valores apresentados pela agência de informação financeira Bloomberg.

No documento, os analistas deixam, ainda assim, uma nota de optimismo devido ao ímpeto reformista mostrado pelo actual Governo que, contudo, está cada vez mais próximo de ser um tiro de pólvora seca: “Há algum potencial para as reformas económicas, que são desesperadamente necessárias serem aplicadas, em resposta à crise económica, apesar de algumas das alterações exigidas pelo FMI, como mais cortes na despesa, estarem agora suspensas devido à pandemia”.

No entanto, concluem, o FMI “vai insistir que as privatizações e as reformas favoráveis ao investimento continuem, pelo que a venda de activos da Sonangol será fundamental, porque qualquer sinal de que o Governo quer inverter as reformas ou alinha com a elite para beneficiar os mais influentes vai anular boa parte dos ganhos económicos do programa” do Fundo.

Folha 8 com Lusa

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