Decerto o amigo leitor estará familiarizado com a fábula ou o conto popular d’ “O velho, o menino e o burro” que tal como todas as histórias e narrativas, ou mitos e religiões não são de todo originais mas sim cópias, ligeiramente modificadas e quiçá melhoradas, de protótipos de outros tempos, de outros lugares, enfim, de outros mundos e realidades.
Por Brandão de Pinho
É muito normal quando se fala de uma ciência ou tecnologia ou o que for, fazer um enquadramento histórico, e poucas vezes não há como não começar com um sábio ou filósofo grego, pelo que não será de estranhar que antes de La Fontaine já havia um fabulista grego, no caso Esopo.
Não se sabe muito sobre este ilustre filósofo e moralista da Grécia Antiga do século VI A.C.. Presume-se que foi escravo numa determinada altura da sua vida (e que era gago e corcunda segundo as más línguas) e um insaciável viajante eternamente sedento de conhecimento e sabedoria. Diz-se que esta fábula já existiria na Grécia e no Oriente desde ainda uma mais remota antiguidade, pelo que se comprova a teoria de que esta coisa das lendas, contos e histórias populares – e às vezes com poucas diferenças dos originais – tanto existem numa remota aldeola de qualquer parte do mundo como nas páginas dos mais célebres autores e em todas as eras.
Tal como Esopo se terá inspirado nalgum conto que ouvira numa das suas viagens para Oriente, também La Fontaine, descaradamente, se inspirou em Esopo, da mesma forma que um autor do Estado Novo Português se inspirou nas fábulas do francês para criar um livro de “contos tradicionais e populares portugueses” que eu li em criança, achando o povo português inigualável em sabedoria, o que aliás era o objectivo do autor e da máquina de propaganda do governo de então que muito provavelmente o patrocinava.
Enfim, cresci a ler livros antigos sobre um Portugal glorioso que dominou o mundo onde abundavam inigualáveis heróis, corajosos guerreiros, sábios eminentes, reis amados pelo povo e intrépidos marinheiros e afinal… concluo que os manuais escolares de história e a propaganda de um regime podem fazer milagres na opinião pública mais desatenta…
Voltando à fábula ou conto popular. Retrata-se um velho camponês – que tendo um dia que ir até uma aldeia vizinha – pegou num burro pelo cabresto e chamou um menino, o seu neto. A partir daí sucedem-se uma série de peripécias.
O menino começou por ir montado no burro e o velho levava-os seguindo à frente, conduzindo-os, e, ainda pouco haviam andado pela estrada poeirenta, quando um grupo de homens, ao vê-los, diz zombeteiramente que é inconcebível que um menino tão forte vá montado num pobre burro enquanto o trôpego e extenuado idoso segue a caminhar.
Decidem então inverter as posições, mas mal tinham dado umas poucas passadas passam por um outro grupo que entre risadas, escarnecem-nos, sobretudo ao suba, por permitir que uma criança, tão franzina e pequena fosse a pé enquanto o velho forte como que se resfolga sobre a montada.
Deliberam, avô e neto, ir a caminhar ambos, à frente do burro, que irá sozinho e logo passam por outro bando de pessoas, que, ao ver esse quadro os chama de tolos e de burros por se sujeitarem a tão inusitada situação, o que muito espantou o avozinho que se lamenta: – se vamos a pé, falam mal de nós; então é melhor ambos montarmos para ninguém ter nada que dizer.
Percorridos que foram alguns metros ouvem uma voz ríspida que os manda apearem-se – apiedando-se se do pobre burrinho tão maltratado – até que o velho ante nova repreensão diz ao menino: – não sei o que fazer; se monto, estou errado e sou maldoso para uma pobre criança; se tu montas, isto é uma afronta para um pobre velho; e se ambos montamos, acusam-nos de queremos matar o animal; não entendo o mundo; talvez seja melhor carregar o burro às costas, assim não nos poderão dizer nada.
E assim fizeram até que, enquanto o diabo esfrega um olho, logo são gozados e apelidados de doidos varridos e de quererem inverter a ordem natural das coisas, servindo de burros ao burro. Então velho pára para dizer (em Portugal ao abrigo do AO90, escrever-se-ia “para dizer”): – nunca se consegue agradar a toda a gente; cada vez que ouço os outros, mais me confundo; menino, vamos como antes, e que isto nos sirva de lição; tolo é quem dá satisfações ao mundo e se preocupa demasiado com o que outros dizem, subvertendo a sua própria vontade.
Eventualmente, esta fábula retrata perfeitamente a linha de pensamento e o modo de actuação de João Lourenço, por mais que os jornais se insurjam ou as pessoas destilem o seu ódio nas redes sociais, pois para qualquer coisa que faça ou diga haverá sempre ferozes detractores e ainda bem porque a democracia também é isso e se os angolanos se podem queixar de muita coisa, da liberdade de imprensa e de expressão não poderão ter muito a dizer por comparação com outros tempos.
Se JLo manda prender antigos camaradas por corrupção é um traidor ou então não tem essa moral por alegadamente em tempos passados ter feito parte desse sistema que corrói Angola e do qual pretensamente também beneficiou. Todavia se não o fizesse ou quando não o faz é acusado de conivência com os marimbondos. Se se afasta demasiado do poder judicial é criticado por ser um líder fraco mas se anda de mãos dadas com o Ministério Púbico e Tribunais acusam-no de ingerência de funções.
Aliás, desta síndrome também padecem os Três Heróis Angolanos do período de luta armada contra as forças salazaristas e do período pós-colonização, e, não há consenso algum quanto a esse estatuto de heroicidade e o mesmo se pode aplicar a Zedu que por muitas críticas que mereça, em termos históricos e factuais foi o responsável e principal obreiro do fim da guerra civil; pelo abandono da doutrina comunista; pela reintegração quadros da UNITA reconciliando a nação; e, pela promoção das eleições gerais (se justas ou não, não sei) que ganhou, ainda que nas primeiras sem que se realizasse a segunda volta – e neste campo os historiadores terão de aferir as responsabilidades de Savimbi nesse processo – e nas segundas não sendo eleito nominalmente (se é que isso é assim tão importante).
Quando falo dos três heróis recentes obviamente reporto-me a Neto, Savimbi e Holden Roberto sobre os quais divergem em muito as opiniões sobre os seus papéis na história de Angola, e, nem sequer a história de Angola, verdadeiramente como disciplina científica e académica porventura existirá, de facto. Mas mesmo que existisse, ainda não teria passado tempo suficiente para se analisar a história com todo o rigor.
Enquanto houver pessoas com memórias vividas e presenciais desses acontecimentos haverá sempre uma carga emocional na análise de quem poderá ser ou não considerado herói de Angola, cuja a História tem sido escrita na perspectiva do vencedor da guerra e o vencedor não foi Neto, nem Zedu nem sequer Lourenço o é.
O vencedor e protagonista único tem sido essa máquina implacável e opressora que é o MPLA (mesmo que nos acordos do Alvor estivessem também presentes FNLA e UNITA) que após a saída dos portugueses foi o único partido com responsabilidades governativas em Angola, logo o principal e único autor do desgoverno que o país atravessa. Desta forma, à medida que o tempo vai passando percebem-se, por um lado, algumas inverdades e omissões que foram impingidas ao longo deste tempo bem como, por outro lado, se torna evidente a diabolização, sobretudo da pessoa de Savimbi (na mesma proporção com que se branqueia o 27 de Maio da responsabilidade de António Agostinho Neto), que exigem uma revisão apurada e urgente dos manuais escolares.
A história do heroísmo nacional é antiga, anterior até aos primórdios da edificação deste conceito que é Angola, ainda que à primeira vista pareça artificial, mas que tal como o gigantesco Brasil – que os portugueses construíram e ao qual cunharam uma idiossincrática identidade nacional – se forjou a partir de um aglomerado de territórios, culturas, tribos e pessoas nascendo um país com forte sentido patriótico e de nação em que os vários fragmentos se fundiram e influenciaram até que se chegasse à ideia e noção de Estado Independente e Soberano, que nem sequer existiria como o grande país e potência que é, sem os portugueses.
Desde que as ancestrais tribos e comunidades locais lutaram, umas vezes umas com as outras, outras vezes contra os portugueses, na defesa dos seus territórios ou na negociação de tratados que melhor defendessem os seus interesses, e, até que definitivamente se consolidassem as fronteiras de Angola (e neste ponto convém que os angolanos não se esqueçam dos milhares de portugueses que deram a sua vida na I Guerra Mundial – contra a vontade de ingleses e franceses, mas ao seu lado, que queriam roubar a África Lusitana – para preservar as ex-colónias, pois foi esse o motivo principal da criação de um corpo expedicionário condenado a ir para as trincheiras) muita coisa aconteceu e que ainda não é de todo conhecida.
Mas para que não restem dúvidas, a lista de heróis é extensa e antiga, desde os povos dos reinos do Ndongo, Kongo, Bailúndo, Tchokwe , Kabínda, Lundas, Kwanhama e Ovimbundos. Sendo que, destes reinos destacaram-se figuras como, Ngola Mussari, Ngola Chilvagni, Ngola Bandi, Mona Zingha, Zinga Mbandi, Ngola Kiluange, Bula Matadi. Depois há uma espécie de um hiato (que tem de ser estudado) temporal e aparecem outros heróis já dos nossos tempos, como são os casos dos já citados e controversos Agostinho Neto, Holden Roberto, Jonas Savimbi, mas também figuras como Nito Alves, Davi Zé, Mfulupinga Nlando Victor, Hilberto Ganga, Rufino entre muitos outros. Claro que, na minha opinião pessoal, o maior de todos os heróis foi a Ngola Ana de Sousa que enfrentou de igual para igual os colonizadores, sem complexos de espécie alguma.
Mas será que os verdadeiros heróis angolanos não foram todos aqueles anónimos que deram a vida pela pátria ou foram estropiados e que permitiram que hoje, em Angola, haja o mínimo de condições para o país funcionar, e, sobre os quais, infelizmente, ninguém mais se lembra apesar de muitos deles, bem como as suas famílias, viverem numa situação de total desamparo, suportando humilhações, dificuldades e sendo remetidos para a mendicidade só para sobreviver?
Heróis angolanos são também os heróis da guerra civil fratricida e da guerra quotidiana que os vinte milhões de pobres vivem em Angola, lutando contra a fome e a miséria. Foram milhares de angolanos que deram a vida pela pátria, quer em sentido estrito quer literal, ou tentando defendê-la (não importa de que lado), ou dedicando a vida completa pela mesma, ou ainda aqueles que hoje em dia que perecem, por falta de cuidados básicos que os governantes não conseguem prestar ao seu povo desde 1979 de que são alguns exemplos a falta de água potável, a subnutrição, e a persistência de doenças típicas de estados falhados e de países do terceiro mundo.
Heróis são aqueles que fazem fila nos multibancos no fim do mês para levantar todo o salário de uma vez, quem trabalha de sol a sol para levar um pouco de pão para casa ou toda uma sorte de profissionais ainda que de uma classe social acima, tal como os médicos mal pagos, os enfermeiros sem condições, os professores sem material escolar, as freiras destemidas que a todos tentam acudir (ainda que a troco de uma evangelização), e, os jornalistas que corriam perigo de vida e se calhar ainda correm por persistirem em informar os seus leitores e desmascarar o MPLA.
Heróis, neste caso heroínas, são as zungueiras que dia-a-dia tentam tirar um parco lucro de cada artigo, vendendo nas piores condições e no meio do frenético trânsito, muitas vezes tendo que pagar gasosas, mas que mesmo assim oferecem preços muito mais acessíveis do que em lojas cujos donos são os verdadeiros interessados na sua erradicação.