A «Operação Transparência» direccionada à extracção ilegal de diamantes no país resvalou em violações graves ao direito à imigração e integridade física, ambos direitos humanos, com relatos de mortes inclusive, e também destapou um dos esquemas de fraude eleitoral praticado pelo MPLA, segundo acusação de indivíduos que exibiram cartões de eleitores e de membros do referido partido.
Por Sedrick de Carvalho
Rapidamente a República Democrática do Congo pronunciou-se em defesa dos seus cidadãos escorraçados sem observância dos seus direitos – pois há quem pense que imigrante não os tem -, e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados condenou as acções do governo angolano. Estava a instalar-se uma tensão internacional.
Sem concluir esta operação, pois não há ainda um relatório exaustivo como sinal de “transparência”, e muito menos indiciados exploradores ilegais de diamantes de alto coturno – entre os quais generais e comandantes provinciais da Polícia Nacional -, o Executivo de João Lourenço criou mais uma operação com um nome bonito – «Operação Resgate».
Esta operação mais parece uma manobra forçada para abafar a anterior da qual, reitero, ainda não foi feito um relatório exaustivo e estava a gerar uma tensão internacional, tanto que até a Euronews destacou as denúncias supracitadas (que também mereceram ampla divulgação aqui no Folha 8). Tirando essa desconfiança, o propósito desta operação é positivo, daí o seu nome apropriado. Porém, falha na sua estratégia estrutural.
A estrutura da operação consiste numa estratégia da pirâmide. Foi pensada, delineada e está a ser aplicada a partir do Palácio, ou seja, de cima para baixo, e tem como rosto o ministro do Interior que é constitucional e materialmente um auxiliar do chefe do Executivo João Lourenço. A estrutura teria de fundar-se, penso, numa estratégia da pirâmide invertida, simplesmente de baixo para cima.
De cima para baixo, como foi estruturada, estamos perante o sempre pensamento único para resolução de problemas múltiplos e que têm a génese também em causas múltiplas. Essa multiplicidade de causas e problemas é razão mais do que suficiente para que a estrutura fosse diferente.
A falta das autarquias
De baixo para cima pressupõe que seriam as administrações comunais, ou as municipais, a estruturarem e a implementarem uma estratégia de resgate dos valores éticos e culturais atacando as causas. É assim que se evidencia a falta das autarquias, pois constitucional e materialmente têm a tarefa de trabalhar com os munícipes locais em prol do desenvolvimento da autarquia, e o saneamento básico e arrecadação de receitas se torna indispensável à agenda autárquica.
Polícia como rosto da operação
A utilização da polícia, em sentido amplo, é uma das características do pensamento único. Desde sempre, o governo deposita a sua crença nos órgãos repressivos para lidar com problemas sociais, mesmo quando não implicam infracções penais, ou criminalizando primeiro para em seguida justificar a força.
É assim que vemos e ouvimos os comandantes policiais ora sim, ora também, fazendo declarações sobre o estado de aplicação das ordens superiores. A intimidação e repressão são as características da polícia, o que contraria o “resgate de valores” que visa a operação, visto que nenhum “valor” cultural, pessoal ou filosófico é restaurado – vá lá, resgatado – por meio da força, e a expressão-cliché “bater não educa” é apropriada.
Nos seus discursos, oficiais superiores e comissários têm declarado que a polícia está a adoptar um papel de sensibilização. É importante que seja enfatizada esse componente – sensibilizar -, pois a polícia também tem essa responsabilidade, que se enquadra na prevenção. Mas num país onde até “ontem” a repressão surgia antes de tudo, pergunta-se como os agentes no terreno vão aplicar uma abordagem que apenas “ontem” ouviram, mas não aprenderam.
Como se pode escutar um comandante-geral da polícia que ainda “ontem” era dos que mais verborreias dizia nos seus discursos musculados? E quem vai parar para ouvir um agente com metralhadora empunhada, sabre de lado, cães dum lado e cavalos do outro?
Repatriamento de capitais
É inegável que a «Operação Resgate» retirará as fontes de sobrevivência de milhares de cidadãos. Os que negam esse facto argumentam que as zungueiras e zungueiros, roboteiros e lavadores de carros, cantineiros e lotadores, etc., praticam as respectivas actividades porque querem, como se fosse plausível um indivíduo com outras opções vender gasosa e água na rua correndo atrás dos carros e fugindo os agentes com o seu porrete e metralhadoras apontadas à sua cabeça.
Sendo que o índice de desemprego é superior a 60 por cento (INE, 2014, p. 27) – e notemos que de 2014 a 2018 o desemprego aumentou -, então é certo que estes, ao lhes ser restringido o livre exercício das suas actividades, juntar-se-ão em massa a uma das duas opções: criminalidade ou suicídio. Fatalista, dirão uns. Mas é o esperado, e exemplifico. Aqueles jovens lavadores de carros e lotadores de candongueiros que, pelas características peculiares da sua actividade, estão diariamente numa fronteira ténue com a delinquência, obviamente que optarão pelo que lhes é familiar. Do suicídio apenas importa referir que é bastante descurado ao ponto de não existir dados estatísticos, mas têm ocorrido com frequência e talvez só por isso se compreenda o anúncio de construção de mais dois cemitérios em Luanda, mesmo sem salário para coveiros há sete meses. Porém, a resiliência angolana é digna de exaltação, pese embora contribuir imenso à letargia participativa.
A resiliência alia-se à capacidade de inventar. Mas vejamos: um grupo de lavadores de carros na Ponte Molhada, ao Talatona, foi proibido de exercer a actividade que desempenha naquele local há 14 anos. Foram os mais de dez jovens que aproveitaram aquele espaço, outrora baldio, e um deles disse ter construído a sua casa daquele rendimento, enquanto o outro apresentou um dos quatro filhos que sustenta com aquele trabalho. Se estes jovens elaborarem um projecto para construção de um ponto de lavagem auto e o submeterem em alguns bancos a solicitar empréstimo, sabemos que não seria aprovado por vários motivos.
Dentre as dificuldades em conceder empréstimos bancários está também a falta de liquidez – e uns estão a fechar balcões nesse momento. Daí que a proposta do engenheiro António Venâncio deveria ser escutada. O professor estabelece uma relação entre o processo de repatriamento de capitais e a «Operação Resgate», ao dizer que esta “operação está desvirtuada no tempo”, e concordo.
Se há uma inequívoca necessidade de os gatunos repatriarem o dinheiro roubado, e se há de facto um processo em curso nesse sentido, então primeiro devia concluir-se essa fase para que este dinheiro, ao ser investido internamente – e empréstimo com garantias também é investimento -, criaria postos de trabalho. Ou efectivamente o repatriamento não acontecerá, como creio, e talvez o governo começa a ter também dúvidas de que ocorra, e por isso não finge sequer que haverá investimento privado nacional.
Uma pequena amostra do fiasco desse processo é Álvaro Sobrinho. Recentemente fez, como mandam as regras do partido, acusações de todo feitio ao antigo dono-disto-tudo-e-arredores e seus sequazes, entre os quais os generais Dino e Kopelipa. Assumiu que traria o dinheiro para investir no país. Passado esse tempo, não só nenhum investimento fez, como lhe foi permitido voltar a ser o PCA no seu banco Valor, o que mais parece um pagamento pelo serviço prestado ao grupo do novo dono-disto-tudo-e-arredores.
Em jeito de conclusão, a «Operação Resgate» colide directamente com o instinto de sobrevivência de qualquer indivíduo na sua forma de aplicação. Ela não deve despir-se do carácter coercivo que carrega, tornando secundária a presença da polícia. É preciso retirar resgatar o país da frequente violência policial. A sensibilização é para ser feita sem prazo, em várias modalidades, sem propaganda. A resolução para os problemas que visa combater e os valores que quer resgatar encontrar-se-á ao focar-se nas causas e não nas consequências. É de extrema importância parar de governar pela força.