Angola vai criar uma equipa técnica que irá proceder ao levantamento e identificação de “objectos culturais” presentes em museus portugueses, número “impossível de quantificar” devido às relações históricas entre os dois países, disse hoje fonte oficial angolana.
Em declarações à agência Lusa, Zivo Domingos, director nacional dos Museus de Angola, sob tutela do Ministério da Cultura, salientou tratar-se de uma “estratégia” de longo prazo, indicando que o levantamento não será feito só em Portugal, como também na maioria dos países europeus e nas Américas.
“No Ministério da Cultura estamos a trabalhar numa estratégia. Estamos a criar uma equipa que terá como principal missão fazer o levantamento e identificação desses objectos, não só em Portugal, mas também no resto da Europa e nas Américas”, sublinhou.
“A partir daí, teremos um inventário muito mais sistematizado e, depois, iremos accionar mecanismos, quer a nível diplomático, quer a nível da cooperação técnica e científica, para ver a possibilidade de recuperar os objectos para Angola”, acrescentou.
Zivo Domingos afirmou desconhecer quantos “objectos culturais” estão em Portugal: “É difícil dizer tendo em conta o passado histórico entre Angola e Portugal”, disse, admitindo tratar-se de um “número grande”. “Mas não o posso dizer de forma taxativa”, ressalvou.
Segundo Zivo Domingos, o Ministério da Cultura vai contactar em breve o congénere português e pensa enviar logo que possível a missão a Portugal para proceder ao levantamento.
“Penso que é o caminho mais certo. Nós, sendo o serviço executivo do Ministério da Cultura, damos tratamento a essa matéria e vamos sugerir à ministra e ao executivo angolano os passos técnicos e científicos que devem começar a ser dados no sentido de começar a fazer esse levantamento. Tudo parte daí, e só depois podemos colocar outras questões”, sublinhou.
Questionado sobre quanto tempo crê que demorará o processo de levantamento e inventariação, o director nacional dos Museus de Angola considerou também ser difícil calendarizar.
“Não podemos definir aqui hoje um horizonte temporal. Temos é de começar agora e, depois, veremos quanto tempo poderá demorar”, respondeu, lembrando que Angola conta com uma rede de 15 museus – sete na capital, Luanda, e os restantes oito distribuídos pelas províncias angolanas de Cabinda, Zaire, Huambo, Huíla e Benguela.
Zivo Domingos indicou que grande parte do acervo cultural e histórico angolano disperso por todo o mundo está em Portugal, nomeadamente no Museu Nacional de Etnologia.
E os (nossos) museus?
O processo de renovação dos 15 museus de Angola e as respectivas exposições permanentes estão actualmente “condicionados devido à crise financeira”, mas o seu estado de conservação “é estável”, anunciou em 18 de Maio deste ano o director nacional dos Museus.
Ziva Domingos referiu, no âmbito das celebrações do Dia Internacional dos Museus que, apesar das limitações financeiras, “esforços decorrem para que se retorne essa dinâmica”.
“O Estado fez investimentos para melhorar a qualidade das instalações e renovar as exposições permanentes, [mas] essa dinâmica teve um passo negativo devido à crise que estamos a atravessar neste momento”, disse Ziva Domingos.
De acordo com o responsável, “não há recursos suficientes para cobrir todas essas necessidades, pelo que o esforço vai continuar a ser feito no quadro do novo Plano Nacional de Desenvolvimento, para que se retome essa dinâmica e alargar um pouco o trabalho de renovação dos museus”.
Ziva Domingos garante que o estado de conservação dos 15 museus, actualmente abertos ao público em Angola, “ainda não atingiu um estado grave de conservação do acervo”.
“Mas o mínimo é feito no sentido de os manter estáveis, sobretudo melhorando a qualidade dos depósitos onde o acervo é conservado”, assim como ao nível das exposições, procurando tornar os museus “mais atractivos para o público”, sublinhou.
Questionado sobre os actuais mecanismos de rentabilidade dos museus em funcionamento pelo país, o director nacional dos Museus argumentou que estava em curso um estudo no sentido de “formalizar o pagamento dos ingressos”.
“Isso poderá ser uma fonte de receita e estamos a olhar também para a nova dinâmica turística do país, com visita de turistas”, acrescentou, afirmando que “na vertente da modernização” procura-se “cada vez mais agregar outros serviços, que podem ser úteis para a valorização e auto-suficiência desse património”.
Doações culturais já estão a ser feitas
Recorde-se, a bem da verdade, que autoridades angolanas entregaram no dia 7 de Novembro ao Arquivo Histórico Nacional 144 títulos de literatura científica do tempo colonial, essencialmente sobre agro-pecuária, de um total de 160 devolvidas por instituições portuguesas em 2012.
O secretário de Estado para a Ciência, Tecnologia e Inovação angolano, Domingos Neto, disse que contaram com a colaboração de muitas instituições portuguesas para a recuperação do acervo, composto por revistas, livros, relatórios, comunicações, memórias, trabalhos, artigos, boletins, teses de doutoramento, cadernos e dissertações de mestrado, originais e cópias autenticadas.
O governante avançou que as obras foram recuperadas de instituições como o Arquivo Histórico de Portugal, a biblioteca do Instituto Superior de Agronomia, o Instituto de Investigação Científica de Portugal e instituições universitárias.
Entre o espólio encontram-se títulos relacionados com os solos minerais, cultura, saúde, flora, fauna e ciência marinha.
Segundo Domingos Neto, para uma maior partilha será feita a digitalização das obras, que, posteriormente, deverão ser colocadas nas instituições de ensino superior, bibliotecas, Governos provinciais e mediatecas.
Domingos Neto agradeceu às autoridades portuguesas que, através das suas instituições, “tiveram o gesto de partilhar importantes fontes” que Angola não tinha em sua posse e que “deverão servir imenso a comunidade científica angolana”.
O governante angolano disse que se destaca a literatura do sector agro-pecuário, a área com maior pendor em termos de investigação científica no tempo colonial.
Ao Arquivo Histórico Nacional angolano foram entregues títulos como “Carta Fitográfica de Angola”, de 1939, “Zonagem Agro-ecológica de Angola”, de 1974, “A Palanca Real”, de 1972, ou “Breve Notice”, de 1901.
Sobre esta última obra, o secretário de Estado para a Ciência, Tecnologia e Inovação disse que foi publicada em Paris e cedida por Portugal, que “traz um número curioso”. “Em 1870, na então província ultramarina de Angola, havia 12.400.000 habitantes”, indicou.
Depois de Portugal, as autoridades angolanas pretendem recuperar igualmente obras em posse do Brasil, Canadá e Estados Unidos da América.
“Apesar de essa tarefa não ser assim tão fácil, a nossa missão é continuarmos, para, se possível, recuperar o que temos também noutros países. Vamos tentar estabelecer esses contactos no sentido de nos serem cedidas aquelas cópias ou exemplares que estiverem disponíveis, tal como aconteceu com Portugal”, disse.
Recorde-se, entretanto, que a documentação produzida pelo Estado angolano desde a independência, em 1975, até a década de 1990, ainda não foi encaminhada para o Arquivo Nacional, cuja documentação sob seu cuidado é praticamente apenas a do tempo colonial. Registe-se para memória futura.
O assunto foi abordado numa mesa redonda sobre “A Importância dos Arquivos para a Cidadania”, realizada no dia 9 de Junho de 2017, em Luanda, pelo Ministério da Cultura de Angola, em alusão ao Dia Internacional dos Arquivos.
Na intervenção que fez na altura, o director-geral adjunto do Arquivo Nacional de Angola, Francisco Alexandre, informou que a documentação produzida entre 1975 até praticamente 1995 ainda se encontrava espalhada pelas instituições do Estado
“O Arquivo Nacional, de forma geral, recebeu a sua última documentação, incorporação maciça de documentação, ainda produzida no tempo colonial, no fim dos anos 50 a partir dos anos 60. Depois dos anos 60 para cá, esta documentação ou foi levada para o Tombo [Lisboa] ou a que ficou, a maior parte ainda se encontra nas instituições”, disse.
Segundo Francisco Alexandre, algum deste arquivo histórico está a ser bem cuidado, mas é necessário que se preste uma maior atenção.
Francisco Alexandre apontou o caso de documentação em posse dos órgãos de Defesa e Segurança, da Saúde ou do poder Judicial, que ainda se encontram em posse dessas instituições por alguma “resistência na sua entrega”.
Também é o caso de documentação em posse de privados, exemplificando os partidos políticos, essencialmente os que participaram na luta pela independência de Angola.
“Onde está a documentação dos partidos políticos? É de carácter privado, essencialmente refiro-me aos partidos políticos que tiveram acção durante a luta de libertação, é documentação privada, merece tratamento específico diferente, mas é documentação de interesse do Estado angolano”, sublinhou.
O director-geral adjunto do Arquivo Nacional de Angola realçou que a Lei Geral dos Arquivos não trata de documentação antiga, mas deverá ser elaborado um decreto que vai estabelecer que toda a documentação produzida no tempo colonial em posse das instituições devem ser conservadas e que é expressamente proibida a sua destruição.
O responsável sublinhou ainda o facto de que em Angola, o uso das novas tecnologias ainda não atingiu sequer 40 por cento das suas capacidades para o arquivo.
“Precisamos de organizar os nossos serviços, de forma que a comunicação da informação seja rápida, ágil e segura”, frisou.
Chamou também a atenção para a extrema importância de que se reveste o sistema de Arquivo Nacional, cingindo-se ao exemplo de uma cooperativa agrícola criada há quase um século, durante o período colonial português, na província do Cuanza Sul, que realizou várias pesquisas sobre o café, o arroz, entretanto destruída no tempo da guerra.
“Era uma cooperativa agrícola, criada ainda nos anos 30, que tinha mais de 50 jipes a andar por Angola a fazer pesquisas no campo agrícola do café, do arroz, de tudo, e era um riquíssimo arquivo. Devido à situação que vivemos foi dinamitada e não ficou lá nenhum papel para a sua história”, contou.
“Hoje, ouvem falar de nova produção de arroz, de nova forma de plantar o arroz no leste de Angola, estão a vir especialistas chineses, coreanos, sobretudo, nós tínhamos esses estudos todos feito. Do café tínhamos esses estudos todos feitos, hoje não temos, desapareceram, trabalho de 30, 40, 50 anos, desapareceu. Vamos começar do zero”, enfatizou, para reforçar a importância dos arquivos.
Folha 8 com Lusa