Há coisa de cinco anos quisemos entoar um hino com este título às mulheres da África lusófona. Nessa altura, estava a decorrer uma conferência organizada por elas, em Picoas Plaza, cidade de Ulisseia, com a honrosa presença da Primeira-Dama de Cabo Verde. Desatamos a oficiar o poema a toda a brida, para o declamar na dita jornada de reflexão.
Por Domingos L. Miranda Furtado de Barros
Apesar do nosso ardoroso empenhamento, a empreitada não estava a passar de primeira estrofe. Tal claudicação deve ser vista à luz do seguinte emaranhamento: um moinho torto, uma mão canhestra, uma mente baça, uma ideia encanecida e lassa, um horizonte obstinadamente esconso, debaixo de um céu nublado e cheio de fastio.
De maneira que a projectada dedicatória só viria a lume um ano depois. E isto faz-nos lembrar um outro tributo que pretendíamos prestar, ainda em vida, ao altruísta e abnegado nacionalista, Elisée Turpin. Curiosamente, a nossa invocação nunca chegou a sair na imprensa. Porém, por respeito à regra do género que hoje estabelecemos, não vamos chamá-lo à liça nesta homenagem.
Estávamos em Março, tal como agora. O enaltecer de figura feminina, associando-a à Primavera, ao renascer de esperança, à arte cénica e à poesia, sempre nos pareceu uma ideia inspiradora e de muito boa índole. No nosso país e em toda a lusofonia, o contributo da mulher para o desenvolvimento da dita comunidade é inegável. Hoje são raros os altos momentos da história em que o concurso delas é dispensado. E assim já era nos primórdios da gesta libertadora dos povos subjugados das antigas províncias do além-mar e além-miragem.
Agora livres e independentes, os chamados países africanos de expressão portuguesa. Lembremo-nos do activismo da poetisa e militante, Alda de Espírito Santo, a diligente patriota de São Tomé e Príncipe; do fascínio de Deolinda Rodrigues pela luta emancipadora, no período áureo do nacionalismo angolano. Oh sorriso de Deolinda! Sorriso de heroína entusiasmada com desfecho da litigância. «Será formidável e a total nosso contendo», diz ainda o divinal sorriso dela.
Evocamos de igual modo o espírito combativo de Titina Silá, a radiante diva da guerrilha mais bem-sucedida do continente; a atitude arrojada e desprendida de Josina Machel ou a entrega denodada e irrepreensível de Cármen P’reira às causas da lide. Sem esquecer, naturalmente, a companheira dos instantes derradeiros da vida do saudoso herói maior.
E da briosa gesta clandestina guardamos viva e bem vincada a memória visual das então nossas vizinhas, mana Muntura e Tomásia de Monte Bode, que passavam por debaixo do poial da nossa infância, de forma aprumada e vertical, a caminho da sinuosa catacumba do Tarrafal, o degredo de seus maridos e outros devotados maiorais da resistência antifascista.
Mulheres que viram filme do Bate Pá e não bateram palmas à cena de «fartar vilanagem»; mulheres que assistiram o definhamento dos ímpetos de Mueda e da Baixa do Cassanje; mulheres de fibra que não se esbofetearam e não entraram em parafuso diante dos zelosos belzebus daquele tempo; mulheres que suportaram a implosão da casa de assistência na Praia e a sedição do velho Ambrósio de Mindelo; mulheres que nunca se vergaram e nunca se reviram na barganha de impostores; mulheres que viram filhos a sucumbir de forma inglória no derrame aparatoso de Pidjiquiti; mulheres que escutaram a tormenta dos maridos e rebentos à porta da tinhosa, tenebrosa e troglodita de todos os cilícios, a altas horas da noite; mulheres que jamais estariam lá para acenar com seu arrimo à iniquidade de viés repugnante e vexatório.
E esta de escrever sobre o brilho das mulheres da negra lusofonia é algo que nos toca de forma peculiar e deifica. É uma espécie de bálsamo sobre a retina da nossa eterna gratidão.
Contudo, temos de reconhecer que já podíamos ter feito mais e melhor nesta matéria. Não obstante isso, acredite piamente o leitor que a vontade de uma épica nesse sentido nunca nos faltou. O que acontece é que nem sempre temos estro refinado para calibrar e traduzir uma excelsa ditosa ideia em sublime nobre canto. Isto só os grandes, muito grandes, tem conseguido ao longo da História. Como, aliás, dizia um poeta, a matéria-prima que temos na cabeça é sempre melhor que aquela que ganha lustre na tinta e no papel.
É a frustrante décalage entre o projecto da criação e o produto do criador. Apesar disso, como também gostamos de frisar, Roma e Pádua não se fizeram numa só tarde. Pode ser que isto de repente venha à tona. Quem sabe? O que nos falta será talvez a irrupção abrupta de um clique, um clique seminal de jubiloso despontar. O certo é que o aedo dos nossos gritos ainda não chegou ao cume de nitente ledo Olimpo.
Por outro lado, conhecendo as nossas limitações, podíamos simplesmente cingir esta crónica-tributo às figuras femininas do nosso estrito círculo-família, primacialmente à nossa insuprível mamã Djedja, que dentro de meses terá a reconfortante idade dos noventa. Pena é que a sua nova igreja não permite lhe fazermos uma festa de arromba, mas, enfim. Ou ainda à nossa filha, Katia Barros, em pareceria com uma outra Katia Barros, a nossa amiga do Brasil. Que bonita coincidência! Podíamos restringir o alcance do nosso hino, mas não, pelo contrário, queremos é alarga-lo em relação a todas as mulheres do nosso meio socio-cultural.
Actualmente já existem, graças a Deus, algumas senhoras em lugares-chave da vida pública, como a bastonária da ordem dos advogados, a líder de uma central sindical, a líder de um partido político e algumas ministras. Além de chefes de governos, que têm havido, em dois dos nossos países, São Tomé e Moçambique. A actual líder da CPLP é o exemplo fenomenal deste progresso. O que significa que a situação não é assim tão inquietante como acontecia no tempo da velha-guarda.
Por isso, somos a dedicar este singelo tributo às inúmeras mulheres anónimas, nas pessoas destas ilustres figuras femininas, porque julgamos que elas personificam e encarnam bem a luta tenaz de tantas e tantas outras suas congéneres, que se destacam, no dia a dia, em vários e diversificados sectores de actividade.
Aqui, estamos em sede de homenagem às mulheres, não só as da área da política, mas também as do domínio da cultura, como Belita Ramos e Lilli Tchumbia ou Titina Rodrigues. Em relação às exímias figuras políticas do passado, não importa o credo que praticaram ou ideia que professaram ao longo do extenuado percurso de luta. O que realmente nos move é invocar o seu papel embrionário no despertar de consciências nas sociedades a que pertenceram. E neste particular uma menção muito sentida às patriotas da aurora nacionalista e, infelizmente, mártires do processo revolucionário pós-independência, Celina Muchanga e Joana Simeão.
De facto, ao compor esta crónica, estamos também a saudar, com todo o nosso preito de reconhecimento, às nossas antigas e venerandas professoras, Arlinda Morais e Ana Eunice. E, finalmente, mas não menos importante, dedicar esta crónica-tributo a todas as mulheres combatentes da batalha do ganha-pão.
Combatentes femininos das barras do Kwanza e do Zambeze, dos rios de Farim e de Água Grande, dos Portos da Praia e de Mindelo; das machambas de Niassa ou de Nampula, das terras de Catete e Golungo Alto; das bolanhas do arroz e do caju, de Buba ou de Bolama; combatentes femininos das ribeiras da Torre, de Candura e de Flamengos; aguerridas combatentes de Fundura e Boa Ventura; combatentes femininos de Chã das caldeiras, Chã Grande e Chã de Tanque; combatentes afamadas das ribeiras de Boa Entrada, São Miguel e Principal. Mulheres engenhosas das encostas de Montanha, de Matinho e Boca Larga; mulheres campesinas de Saltos e Selada ou da quinta de Gelado e de Serrado.
Combatentes femininos da roça de Água e Zé, da praça de oficina e de mercado, de escritório de mercado e biblioteca, a bordo de navio e de aeronave, da banca de urgência e dos cuidados de saúde, da diáspora pujante e solidária, que labutam na lonjura, dando o seu melhor para o engrandecimento de suas famílias e seus países. Combatentes femininos de todas as esferas da sociedade e de todos os lados da dignidade. É certo que o percurso atribulado da maior parte dos nossos países não tem permitido chegar ainda a tal ambicionada paridade. E neste capítulo, voltamos a usar o provérbio supradito «Roma e Pádua não se fizeram num dia». É preciso alguma paciência e perseverança para que tudo se revolva a bem das suas legítimas pretensões. Assim sendo, fazemos votos que apareça uma candidatura feminina ao cargo de suprema magistratura da nação nas próximas eleições.