O Tribunal Provincial de Luanda adiou hoje a segunda sessão de julgamento do jornalista angolano Rafael Marques, devido à ausência do ofendido, o ex-procurador-geral da República de Angola, general João Maria de Sousa, que deverá ser ouvido na sede da procuradoria porque um ex-PGR não desce ao nível do comum dos mortais.
A decisão foi apresentada pela juíza da causa, Josina Ferreira Falcão, no arranque da sessão de hoje, argumentando que os advogados de acusação solicitaram que o ex-procurador angolano fosse ouvido em audiência, mas noutro local, atendendo ao foro especial de que goza à luz da legislação.
“Tendo em conta que o ofendido encontra-se jubilado e porque o tribunal desconhece a residência do mesmo, nestes termos e ouvidos as partes, não há inconveniente da parte do tribunal em ouvir o ofendido. O mesmo indicou a sede da Procuradoria-Geral da República [PGR] para o local da inquisição”, anunciou a juíza.
Nestes termos, a audiência de julgamento de hoje foi remarcada par 24 de Abril, às 10:00, sendo o ex-procurador ouvido nas instalações da Procuradoria-Geral da República.
No processo em que é também arguido o jornalista Mariano Brás, Rafael Marques é acusado por João Maria de Sousa de crimes de injúria e ultraje ao órgão de soberania, após queixa apresentada em 2017.
Em causa está uma notícia de Novembro de 2016, publicada no portal de investigação jornalística Maka Angola e divulgada por outros órgãos de comunicação social, do jornalista Rafael Marques, com o título “Procurador-Geral da República envolvido em corrupção”, que denunciava o negócio comprovadamente ilícito realizado pelo general João Maria de Sousa, envolvendo a aquisição de um terreno de três hectares em Porto Amboim, província angolana do Cuanza Sul, para construção de condomínio residencial.
Em declarações à imprensa, o advogado de defesa dos jornalistas angolanos, Salvador Freire, sublinhou que a lei confere ao queixoso indicar um espaço para ser ouvido, pelo que concordou com a decisão do Tribunal em prosseguir a sessão numa das salas da PGR.
“Protestamos a forma como o advogado do queixoso colocou a questão, mas por fim a questão ficou dirimida, ficou então para o dia 24 deste mês, dando sequência à sessão hoje adiada”, disse, sublinhando que a defesa “está atenta às tácticas de manobras dilatórias”.
Para o advogado, o julgamento até aqui decorre dentro das expectativas da defesa: “Não há por enquanto alguma coisa que nos preocupe e esperamos ver absolvidos os réus, e tudo faremos para que isto aconteça e acreditamos que tudo vai correr da melhor maneira”, apontou Salvador Freire.
A juíza agendou ainda para o dia 25 de Abril a audição aos declarantes, tendo orientado igualmente uma notificação ao director geral do Instituto de Geodesia e Cartografia de Angola (IGCA) e do representante desta instituição na província angolana do Cuanza Sul.
Estes responsáveis deverão “ajudar o tribunal no esclarecimento da matéria referente a dinâmica administrativa sobre a cedência de espaço”, fundamentou.
Jubilado e emérito a bem do… MPLA
“A o longo do exercício da função de Procurador-Geral da República, o general João Maria Moreira de Sousa tem demonstrado desrespeito pela Constituição, envolvendo-se numa série de negócios”, referia o texto de Rafael Marques, acrescentando que esse “comportamento” tem contado “com o apadrinhamento do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, que lhe apara o jogo”.
“Aqui aplica o princípio informal e cardeal da corrupção institucional em Angola, segundo a qual uma mão lava outra”, escreve a acusação do Ministério Público (MP), citando o texto da autoria de Rafael Marques.
A notícia deu origem a uma participação criminal contra o jornalista e, refere a acusação do MP, no decurso das diligências realizadas foi possível apurar junto do departamento do Instituto Geográfico e Cadastral de Angola (IGCA) no Cuanza Sul que o ofendido, o (agora) jubilado e (sempre) emérito Procurador-Geral da República, “efectivamente requereu e lhe foi deferido o título de concessão do direito de superfície” do terreno em causa a 25 de Maio de 2011.
Contudo, “passado um ano, por falta de pagamento dos emolumentos, o contrato atrás referido deixou de ter validade, tendo deste modo o ofendido João Maria Moreira de Sousa perdido o título de concessão do direito de superfície a favor do Estado”, diz a acusação.
A notícia em causa aludia a uma eventual violação do “princípio da dedicação exclusiva” estabelecido pela Constituição angolana e que impediria que os magistrados judiciais e do MP exerçam outras funções públicas ou privadas, excepto as de docência e de investigação científica de natureza jurídica.
Diz o Artigo 187 (Estatuto) da Constituição no seu ponto 4: “Os magistrados do Ministério Público estão sujeitos às mesmas incompatibilidades e impedimentos dos magistrados judiciais de grau 67 correspondente, usufruindo de estatuto remuneratório adequado à função e à exclusividade do seu exercício.”
A acusação, que visa ainda o director do jornal “O Crime”, Mariano Lourenço, que (tal como também aqui foi feito pelo Folha 8) republicou a notícia em causa, refere a “violação” de princípios da “ética e da deontologia profissional”, que se traduzem em “responsabilidade civil, disciplinar e/ou criminal”.
Recorde-se que, como sucursal do MPLA, a Procuradoria-Geral da República, através do seu então chefe, general, jubilado e emérito João Maria Moreira de Sousa, deu razão ao candidato do patrão, o MPLA, João Lourenço, da participação da UNITA que o acusava de oferecer diversos bens (viaturas, bicicletas, tractores e charruas e arcas e geleiras) e géneros alimentares durante a campanha eleitoral, que que à luz do artigo 43 da Lei Orgânica das Eleições Gerais (isto se a lei fosse para levar a sério) constitui corrupção eleitoral.
Em resposta, o PGR (general, jubilado e emérito) considerou a que “a doação desses bens, não obstante ter sido efectuado em período de pré campanha e durante a campanha eleitoral, teve como finalidade suprir ou minimizar carências reais e efectivas daqueles cidadãos.”
“O candidato do MPLA ao fazer as referidas ofertas de forma pública, à luz do dia e, inclusive, com a cobertura dos órgãos de comunicação social, certamente assumiu a sua conduta como não proibida e não punida por lei, tanto mais que tal prática no nosso país e continente é rotineira e decorrente de usos e costumes que em actividades festivas ou em casos de visitas, se exige e se impõe a troca de oferendas”, disse o PGR do MPLA (general, jubilado e emérito),
No seu ponto de vista, “se por um lado, não há quaisquer dúvidas de que o candidato do MPLA ofereceu bens materiais tanto a cidadãos comuns quanto a representantes de instituições religiosas, de caridade e autoridades tradicionais, por outro lado, contrariamente ao alegado pelo denunciante, não há provas de que tenha directa e especificamente ou indirectamente persuadido os beneficiários a votar na sua candidatura em troca dos bens que oferecia, ou que terá pretendido deles a obter a promessa de que votariam na sua candidatura.”
Para além de uma ridícula palhaçada, a argumentação do PGR (general, jubilado e emérito) apresentou-se como mais uma séria candidata ao anedotário nacional, se bem que sirva também como o maior atentado à inteligência dos angolanos.
Para João Maria de Sousa (general, jubilado e emérito), “sendo inútil a abertura, investigação e instrução de um processo-crime, por não estarem reunidos os elementos constituídos do crime de corrupção eleitoral, indefiro o pedido, e, consequentemente, determino o seu arquivamento.”
PGR ajoelhou bem e rezou ainda melhor
Relembre-se ainda que a PGR do MPLA – não de Angola – considerou, cumprindo obviamente “ordens superiores”, a nomeação de Isabel dos Santos para dirigir a Sonangol uma competência legal do Presidente da República, ao abrigo da Lei de Bases do Sector Empresarial Público.
A posição surgiu no despacho de resposta da PGR a uma queixa, formalizada a 16 de Junho de 2016 por Rafael Marques de Morais, invocando a inconstitucionalidade dos decretos presidenciais de reajustamento da organização do sector petrolífero e com alterações aos estatutos da concessionária pública Sonangol “sem prévia autorização da Assembleia Nacional”.
Com essa queixa, Rafael Marques de Morais pedia ainda a intervenção do Ministério Público para que solicitasse a “imediata” declaração da suspensão da eficácia da nomeação de Isabel dos Santos para PCA da Sonangol, feita pelo chefe de Estado e pai da empresária, José Eduardo dos Santos, também em Junho, por ser “um acto deles [decretos presidenciais] derivado”.
Contudo, a PGR refere, citando o artigo número 120, que nos termos da Constituição, “o Presidente da República é o titular do poder executivo e nessa qualidade deve dirigir os serviços e a actividade da administração directa do Estado, civil e militar, superintender a administração indirecta e exercer a tutela sobre a administração autónoma”.
A família Dos Santos continuava a gozar com a chipala de, pelo menos, 20 milhões de angolanos que vivem na pobreza. Mas que melhor exemplo de elevada moralidade, e ainda mais elevado valor ético, poderemos querer do que o que nos é dado quando o pai nomeia a filha para mandar na maior empresa pública do país?
Folha 8 com Lusa