João Lourenço conta agora com novos aliados na sua suposta senda de justiceiro. Todos (ou quase) os que criticaram – e bem – Isabel dos Santos por décadas de actividades cleptocráticas estão agora rendidos a JLo. Para estes, quem roubou uma vez é ladrão para sempre. E no rol de crimes figuram todos os roubos, mesmo os que não cometeu, mesmo os que o não foram por estarem respaldados na lei. Isabel (dos Santos) passou a ser sinónimo de crime.
Por Orlando Castro
O Folha 8 foi dos que mais criticou Isabel dos Santos, sendo por isso um dos seus principais alvos. Continuamos a criticá-la. Mas se ladrão tanto é o que entra no galinheiro como o que fica à porta, quantas vezes o justiceiro João Lourenço, enquanto vice-presidente do MPLA, enquanto ministro, enquanto alto dirigente do partido, ficou à porta?
Recordemos um artigo do Folha 8, publicado em 20 de Março de 2017, com o título “A princesa soma e segue e o Povo apenas… morre”:
«E então como é que Isabel dos Santos se tornou – não sabemos quantas vezes – milionária? Desde logo porque – graças ao pai ser o dono do reino esclavagista (20 milhões de pobres) – ficava, fica e ficará com uma parte das empresas que se estabelecem em Angola. Quando assim não é, o seu pai trata de mandar fazer leis, decretos e regulamentos que permitam a Isabel facturar sobre tudo o que entenda. Simples, não é?
Isabel dos Santos desmente tudo isto. Assume-se, afinal, como uma santa e acusa todos os que divulgam estas “mentiras”, não desmentindo a mensagem mas tentando desacreditar os mensageiros. Mensageiros que, segundo Isabel dos Santos, são pagos para andar pelo mundo a denegrir a impoluta e divina imagem e labuta de figuras honoráveis como ela e, é claro, como o seu pai e restante clã familiar.
Certo é que Isabel dos Santos é milionária e que no seu(?) país cerca de 70% dos habitantes vivem com menos de 2 dólares por dia. A Forbes escreveu até que “é uma rara janela para a mesma trágica narrativa cleptocrática em que ficam presos muitos outros países ricos em recursos naturais”.
José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola desde 1979, é o chefe de Estado que governa há mais anos sem ser monarca. Assim sendo, e com o apoio da comunidade internacional que prefere negociar com ditadores (dos bons, é claro!) do que com democratas, inclui a família em todos os grandes negócios feitos em Angola ou com Angola.
Citemos a Forbes: “É uma forma de extrair dinheiro do seu país, enquanto se mantém à distância, de maneira formal. Se for derrubado, pode reclamar os seus bens, através da sua filha. Se morrer enquanto está no poder, ela mantém o saque na família.”
Não se sabe com rigor em que negócios Isabel dos Santos está, de facto, metida. Mesmo assim, tem posição preponderante e decisiva na Endiama, a empresa concessionária da exploração mineira (criada por decreto… presidencial, que exigia a formação de um consórcio com parceiros privados).
Os parceiros privados da filha do Presidente, que incluíam negociantes israelitas de diamantes, criaram a Ascorp, registada em Gibraltar. Na sombra, diz a Forbes, citando documentos judiciais britânicos, tinha o negociante de armas russo Arkadi Gaidamak, um antigo conselheiro do Presidente angolano durante a guerra civil de 1992 a 2002. Tudo bons rapazes, igualmente impolutos e honoráveis cidadãos.
O escrutínio internacional dedicado aos ‘diamantes de sangue’, explica a revista, aconteceu no mesmo período em que Isabel dos Santos transferiu a sua parte do negócio, que a Forbes classifica como “um poço de dinheiro”, para a mãe, uma cidadã britânica. Tudo continua em família. Antes do Povo está o clã Eduardo dos Santos. Obviamente.
Além dos diamantes, também continua a ter posição basilar na Unitel, a primeira operadora de telecomunicações privada em Angola que – novamente por decreto… presidencial – foi presenteada a Isabel dos Santos. “Um porta-voz de Isabel dos Santos disse que ela contribuiu com capital pela sua parte da Unitel, mas não especificou a quantia; um ano depois, a Portugal Telecom pagou 12,6 milhões de dólares por outra fatia de 25%”, escreveu a Forbes.
A parceria com o homem mais rico de Portugal, Américo Amorim, levou-a para áreas financeiras, através do banco BIC, e petrolífera, através da Amorim Energia e dos seus negócios na Galp e com a Sonangol. Sucesso garantido. Como garantido foi o investimento de 500 milhões na portuguesa ZON e explica também como Isabel dos Santos acabou por ficar à frente da cimenteira angolana Nova Cimangola, Mais uma vez por via dos negócios com Américo Amorim.
Do ponto de vista mediático, mesmo no âmbito da Educação Patriótica que o regime pretende dar a todos os angolanos desde a barriga da mãe até à morte, Isabel dos Santos é a heroína do reino. Prova disso é dada pelo Pravda do regime (também conhecido por Jornal de Angola) que escreveu: “Estamos maravilhados por a empresária Isabel dos Santos se ter tornado uma referência do mundo das finanças. Isto é bom para Angola e enche os angolanos de orgulho.” Referia-se aos angolanos afectos ao regime, os outros – os que foram gerados com fome, nasceram com fome e estão no corredor da morte cheios de… fome – sentem-se envergonhados.»
Seria, portanto, fácil continuar a culpar Isabel dos Santos, tornando-a o único bode expiatório dos enormes crimes cometidos em Angola em dezenas de anos, branqueando os principais responsáveis. Desde logo o MPLA (o único partido com funções governativas desde 1975), o seu presidente José Eduardo dos Santos (38 anos no poder) e toda a respectiva hierarquia.
A empresária Isabel dos Santos ameaça levar o Estado angolano a tribunal, depois da decisão do Presidente João Lourenço de anular contratos milionários que tinham sido entregues a empresas suas pelo ex-presidente do país, o seu pai José Eduardo dos Santos.
Convenhamos que Isabel dos Santos é suficientemente inteligente para saber que os tribunais angolanos, nesta como noutras matérias, se limitam a encontrar matéria de facto que consubstancie o veredicto que lhe seja ditado antes mesmo de analisar qualquer queixa. Era assim no tempo do seu pai, é assim agora no tempo de João Lourenço.
Mais do que levar o Estado (isto é, o MPLA) a tribunal, Isabel deveria contar-nos (em livro, por exemplo) tudo o que sabe da promiscuidade criminosa entre dirigentes do partido/Estado/Governo, entre o seu pai e João Lourenço, os acordos firmados, o papel dos serviços de informação etc. etc..
Relembre-se que o general António José Maria (férreo aliado de Dos Santos), afastado do Serviço de Inteligência e de Segurança Militar, terá dito várias vezes a José Eduardo dos Santos estar pronto para a “guerra”, pedindo “instruções” sobre o que pretende o ex-presidente da República.
José Maria passou muito tempo, sobretudo a partir do momento em que Eduardo dos Santos disse que não seria candidato do MPLA às eleições e se aventou que o candidato seria João Lourenço, a reunir informações, dados, documentos, testemunhos (no país e no estrangeiro) sobre o actual Presidente da República.
“O Serviço de Inteligência e de Segurança Militar esteve em exclusivo a trabalhar, por ordem do general Zé Maria, numa espécie de Paradise papers of João Lourenço”, contou ao Folha uma fonte ligada ao general.
Certo é que quando se perde o Poder a maioria dos acólitos saltam a barricada. Não é o caso do general José Maria que considera que as decisões em catadupa que estão a ser tomadas pelo Presidente da República, João Lourenço, são uma caça às bruxas no MPLA e uma lavagem da sua imagem, “quase parecendo que JLo nada tem a ver com o MPLA e que só agora chegou à política angolana”.
Isabel dos Santos não gostou da anulação do contrato de construção do Porto da Barra do Dande, orçamentado em 1500 milhões de dólares, que tinha sido atribuído a uma empresa sua, por decisão do seu pai mas, é claro, apoiada sem hesitações por… João Lourenço, enquanto vice-presidente do MPLA e ministro.
O Estado/MPLA também anulou o contrato de compra e venda de diamantes brutos que a empresa pública angolana Sodiam tinha com a Odyssey Holding, outra sociedade da empresária angolana que tem sede nos Emirados Árabes Unidos. Outra sociedade “politicamente subscrita” por Dos Santos e JLO.
Enfim. Nada nesta novela espanta. Espanta, isso sim, o êxito da estratégia de João Lourenço que, com algumas jogadas de mestre, conseguiu trazer para o seu lado da barricada muitos, quase todos, jornalistas que – tanto quanto parece – só têm por missão acertar contas com o clã Eduardo dos Santos, mesmo que tenham de violar a sua mais importante missão: a verdade.