Pelo sim e pelo não, dando corpo ao ultimato contra Portugal iniciado por José Eduardo dos Santos e reforçado por João Lourenço, o Governo angolano já pôs a boca no trombone sobre o caso Manuel Vicente. Apesar disso aconselha prudência, ou até mesmo omissão, na análise pública do caso.
Na versão oficial do Governo de João Lourenço, as autoridades angolanas e portuguesas estão a estudar a possibilidade de transferência para Luanda do processo que corre em Portugal contra – na altura dos factos – o Presidente do Conselho de Administração da Sonangol e depois ex-vice-Presidente da República Manuel Vicente, disse o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola.
Segundo o ministro Francisco Queiroz, no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) há acordos no domínio judiciário que prevêem a possibilidade de transferência de processos desta natureza e que podem ser accionados. É verdade. Como também é verdade que Angola não é de facto, embora pareça ser de jure, um Estado de Direito Democrático.
“Há um espaço para a transferência de processos. O assunto está a ser tratado e não seria prudente para ninguém fazer declarações precipitadas que possam ser objecto de leituras diversas, para não atrapalhar todo o trabalho que está a ser feito”, afirmou o ministro, citado na imprensa estatal (como nos “velhos” tempos) angolana de hoje.
O que o ministro Francisco Queiroz quer dizer é que ninguém deve pôr em causa a tese que mais convém ao regime e que, nesta matéria, é rigorosamente o mesmo que era advogado pelo anterior. Ou seja, impunidade total para o suspeito e subjugação também total do poder judicial ao poder político e partidário do MPLA.
Em causa está o caso “Operação Fizz”, processo em que o ex-presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Manuel Vicente, é suspeito de ter corrompido, em Portugal, o magistrado Orlando Figueira, quando este era procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), do Ministério Público, que investiga a criminalidade mais grave, organizada e sofisticada, designadamente de natureza económica.
O início do julgamento está marcado para 22 de Janeiro, no Tribunal Judicial de Lisboa, contudo, o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola afirma tratar-se de um caso “sério e muito delicado”, por envolver uma questão de soberania.
“Há apenas uma suspeição, mas esta suspeição é muito vaga, e não se pode trabalhar com base em juízos que assentem apenas em suspeições. Por isso, considero que ainda é prematuro falar de julgamento”, afirmou o ministro, ampliando os decibéis da tese uníssona de José Eduardo dos Santos (ex-presidente da República e actual presidente do MPLA) e de João Lourenço (actual Presidente da República e vice-presidente do MPLA).
Recorde-se que o chefe da diplomacia angolana, Manuel Augusto, defendeu, no final de Novembro, a transferência para a Justiça do país do processo que em Portugal envolve Manuel Vicente, mas garantindo que Angola sobreviverá a uma crise de relações com Portugal. Isto porque em, ao contrário de Portugal, em Angola não há separação de poderes e, portanto, a (suposta) Justiça é comandada pelo Governo.
Em declarações à imprensa, o ministro das Relações Exteriores, Manuel Augusto, alertou igualmente que Angola não está à procura de “briga”, mas que não vai fugir dela, para defender a soberania e dignidade do país. E defender a soberania e a dignidade de Angola é, segundo o Governo, garantir que não são precisas provas nem julgamento para se saber que Manuel Vicente foi, é e sempre será inocente.
Com este pedido, realçou, o Estado angolano (leia-se o MPLA/Governo) está apenas a fazer recurso a um instrumento judiciário que existe entre os dois países, de cooperação em matéria judicial.
Para Manuel Augusto, a desconfiança que o Ministério Público (MP) português apresenta em relação à Justiça angolana, de que a mesma não vá levar “esse caso com a seriedade necessária”, “é um juízo de valor que não pode existir”. Não pode mas existe. E existe porque, gostemos ou não, corresponde a uma realidade que conhecemos há 42 anos.
“Portugal e o seu poder político não têm o direito de pôr em causa o nosso sistema judiciário até porque se assinaram com Angola um acordo judiciário, é porque reconheceram em Angola um parceiro credível para esse tipo de acordo. Aqui é um problema de soberania, não é um problema de birra, de complexo”, disse Manuel Augusto confundindo, mais uma vez, o que se diz que se é e o que se é de facto.
A 4 de Outubro último, o então procurador-geral da República de Angola, João Maria de Sousa (um general acólito e submisso ao MPLA), disse que as autoridades portuguesas chegaram a equacionar o envio do processo com a investigação ao ex-vice-Presidente angolano para Luanda, mas que recuaram após a publicação de uma Lei de Amnistia.
“Já tivemos várias abordagens. Numa primeira fase, o processo esteve quase a ser transmitido para as autoridades angolanas, as autoridades portuguesas depois fizeram um recuo, quando souberam que tinha sido publicada uma Lei da Amnistia em Angola. Daí para cá tem havido contactos, não só ao nível do Ministério Público, mas também ao nível do Estado, através do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos”, explicou o então PGR.
Sob proposta do então chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, o Parlamento angolano aprovou em 2016 uma Lei da Amnistia, que entrou em vigor a 12 de Agosto do mesmo ano, abrangendo todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015, exceptuando os de sangue.