O Presidente da República de Portugal considerou hoje que a acusação judicial ao vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, corresponde ao “funcionamento normal das instituições” e à “separação de poderes em Portugal”. Pois, pois! Senhor Marcelo Rebelo de Sousa.
Por Orlando Castro
“É o funcionamento normal das instituições. Como sabem, há uma separação de poderes em Portugal, a justiça portuguesa é uma realidade, um poder separado do poder parlamentar, da Assembleia da Republica, do poder executivo, do Governo e do Presidente, e funcionou”, comentou Marcelo Rebelo de Sousa.
O chefe de Estado, que falava em Gualtar, Braga, foi questionado se a acusação de corrupção deduzida contra Manuel Vicente poderá afectar as relações entre Portugal e Angola.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, a acusação mostra apenas que a Justiça funciona. “Funciona, funciona com portugueses, funciona com estrangeiros, funciona naturalmente e portanto isso faz parte da vida das democracias. Em democracia, o funcionamento das instituições em si mesmo nunca é um problema”, sublinhou.
O Ministério Público acusou na quinta-feira o vice-presidente angolano e ex-presidente da Sonangol, Manuel Vicente, o procurador Orlando Figueira, o advogado Paulo Blanco e o arguido Armindo Pires no âmbito da “Operação Fizz”, relacionada com corrupção e branqueamento de capitais.
Uma nota da Procuradoria-Geral da República (PGR) adiantou que Manuel Vicente, que era, à data dos factos, presidente da Sonangol, é acusado de um crime de corrupção activa (em co-autoria com os arguidos Paulo Blanco e Armindo Pires), um de branqueamento (em co-autoria com os restantes arguidos) e um crime de falsificação de documento (em co-autoria com os restantes arguidos).
A PGR portuguesa esclarece que “não foi possível notificar Manuel Vicente para constituição como arguido e respectivo interrogatório”, explicando que foi enviada uma carta rogatória às autoridades angolanas, mas que “foi impossível cumprir a mesma, uma vez que, segundo aquelas autoridades, Manuel Vicente, na qualidade de vice-presidente da República de Angola goza de imunidades materiais e processuais”.
Para este efeito, como para todos os que lhe interessam, o regime de José Eduardo dos Santos chama à colação a Constituição da República de Angola que, é verdade, prevê que o presidente e o vice-presidente só podem ser responsabilizados criminalmente por crimes estranhos ao exercício das suas funções, perante o Supremo Tribunal, “cinco anos depois de terminado o seu mandato”. Simples, como se vê.
A PGR portuguesa adianta ainda que na “sequência de requerimento apresentado aos autos pelo mesmo arguido, manifestando disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos necessários, foi o mesmo notificado através do seu mandatário para se deslocar a Portugal a fim de ser constituído arguido e ouvido nessa qualidade, o que o mesmo recusou”.
Numa carta que Manuel Vicente remeteu ao processo em resposta ao pedido da PGR portuguesa, diz que não tem agendada qualquer deslocação a Portugal em data próxima, fazendo uma referência aos mecanismos de cooperação entre os dois países.
“Mantenho a minha disponibilidade para esclarecer o que tiverem por conveniente, quando oportuno e possível, e pelos meios próprios e adequados”, escreveu Manuel Vicente.
Nessa carta, de Abril de 2016, Manuel Vicente afirma que relativamente ao inquérito ligado à compra do apartamento tudo foi tratado pelo advogado Paulo Blanco e garante que nunca se deslocou a Portugal para tratar desse assunto, nem sequer reuniu pessoalmente com o advogado. Por isso, afirma peremptoriamente, que: “Nada tenho que ver, repito, directa ou indirectamente, com a noticiada contratação do mesmo Exmo. senhor procurador Orlando Figueira ou com pagamentos que a ele possam ter sido feitos”.
Segundo uma nota da PGR portuguesa, Orlando Figueira está acusado de um crime de corrupção passiva e de outros crimes em co-autoria com os restantes arguidos: branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. Durante a investigação, foram “arrestados e apreendidos” ao magistrado cerca de 512 mil euros “que se encontravam em contas bancárias portuguesas, em cofres e em contas bancárias sedeadas no Principado de Andorra”.
Como muito bem sabe o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, é fácil, barato e até pode dar milhões falar do “funcionamento normal das instituições” e da “separação de poderes em Portugal” quando se sabe que, mais uma vez, a montanha nem um rato vai parir e que o processo será inevitavelmente arquivado.
Em Portugal ficou claro que, sobretudo a partir da altura em que o Presidente José Eduardo dos Santos deu um ultimato político aos governos portugueses, consubstanciado no fim, ou no adiamento sine die, da parceria estratégica, os tribunais portugueses – por determinação política – subjugaram-se e passaram a, juridicamente, ter uma só sentença em relação a qualquer questão que envolva altos dignitários do regime: arquive-se.
Isso mesmo se passou, recorde-se, com um tribunal português que recusou o pedido de abertura de instrução do caso ligado ao vice-Presidente de Angola, ao general Higino Carneiro e à empresa Portmil, cujo inquérito fora arquivado pelo Ministério Público português. E, pelo menos nos próximos anos, não vale a pena intentar qualquer acção. Lisboa rendeu-se e, como tal, encontra todos os subterfúgios legais, mas sobretudo políticos, para nada fazer.
Marcelo Rebelo de Sousa sabe disso e, por isso, deveria abster-se de nos passar atestados de menoridade intelectual e matumbez.
O juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, em Portugal, Carlos Alexandre, considerou que o jornalista Rafael Marques, que pediu a abertura da instrução, “não tem legitimidade para interferir nos autos na qualidade de assistente, relativamente ao crime de branqueamento de capitais, que constitui o novo objecto dos autos”. Nesta matéria de inconformidade de legitimação há pano para mangas, pelo que o regime angolano pode estar descansado, impávido e sereno. Nada será feito pelas autoridades portuguesas, seja qual for o fogo de artifício que use.
O Departamento Central de Investigação e Acção Penal português (DCIAP) arquivou em Novembro de 2013 o inquérito ao vice-presidente de Angola, Manuel Domingos Vicente, e ao general Francisco Higino Lopes Carneiro, e à empresa Portmil – Investimentos e Telecomunicações. O inquérito surgiu após uma queixa sobre factos susceptíveis de serem crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais, alegadamente praticados em Portugal, precedidos de “corrupção, burla e fraude fiscal alegadamente praticados em Angola”. Em causa estavam operações bancárias efectuadas em 2009 e 2010, num montante de cerca de 294 milhões de euros.
Rafael Marques disse à DW África que respeitava a decisão do tribunal português, na medida em que, segundo ele, já fez a contestação que deveria fazer, embora tenha deixado claro que pediu “apenas a instrução do processo”.
Ao explicar de forma simples a decisão do tribunal, Rafael Marques sublinhou que “estes casos foram iniciados pelas próprias autoridades portuguesas. Eu não apresentei queixa contra nenhum dirigente. Algumas das investigações feitas por mim sobre actos de corrupção de vários dirigentes angolanos foram usadas nas investigações das autoridades portuguesas para apurarem se havia branqueamento de capitais ou não”.
Rafael Marques acrescenta, que, a certa altura, foi chamado pelas autoridades portuguesas e foi constituído como “assistente para acompanhar os referidos processos”. Quando a Procuradoria da República decidiu arquivar alguns desses processos, o jornalista pediu “a instrução porque achava que a informação para o arquivamento não correspondia aos dados que existiam no processo. Fez-se a argumentação clara de que havia razões de Estado e outras para o arquivamento do processo”.
E, de facto – não de jure -, as razões de Estado são (tal como em Angola) uma espécie de albergue onde cabe tudo o que interessa a Portugal, nem que isso seja um atropelo às regras de um Estado de Direito. Ou seja, permite que se lavre a sentença antes da averiguação dos factos. Primeiro arquiva-se e depois articula-se juridicamente os argumentos que sustentem esse mesmo arquivamento. Simples.
Para Rafael Marques, o Procurador-Geral responsável pelo caso “fez uma argumentação meramente política sobre o arquivamento do processo e eu como assistente decidi recorrer da decisão”.
Num Estado de Direito uma das regras fundamentais é dar à política o que é política e aos tribunais o que é dos tribunais, não é assim Presidente Marcelo Rebelo de Sousa? Pois é… ou deveria ser. Mas, em Portugal, nada disso é assim. A promiscuidade é tal que, cada vez mais, os tribunais fazem política e a política investiga e dá sentenças.
Foi nessa altura que o Tribunal Central de Instrução Criminal considerou que Rafael Marques não tinha legitimidade para continuar como assistente num processo de branqueamento de capitais. Rafael Marques destaca que o importante é que a questão da corrupção em Angola seja resolvida em Angola, e sublinha que os casos levantados em Portugal foram “levantados por um cidadão angolano, Adriano Parreira, que apresentou algumas queixas e continuaram por dever de ofício das próprias autoridades portuguesas”.