Infelizmente, ainda não temos cidadãos no país. O que temos são militantes que só depois pensam em ser cidadãos, mas daí não passam”, disse alguém quando debatíamos sobre o exercício da cidadania em Angola.
Por Sedrick de Carvalho
Não subscrevo o absolutismo da afirmação acima, mas carrega parte da verdade. A nota acima exposta surgiu logo após termos – um grupo de seis jovens – avançando que é difícil exercermos a cidadania despidos das cores partidárias.
O partido, não importa qual seja, está sempre em primeiro lugar. É comum vermos dirigentes partidários dizerem que autorizaram ou não os seus militantes a participar em actividades que visam simples e puramente colocar em prática o exercício de determinados direitos/liberdades consagrados nos diplomas legais existentes no país.
Exemplo mais recente desta narrativa, que lembro, deu-se aquando da manifestação organizada pelo Movimento Revolucionário para exigir justiça pelo assassinato de Manuel Hilbert Ganga, jovem de 32 anos afecto à coligação eleitoral CASA. Naquela altura, Mihaela Webba, deputada pela bancada parlamentar da UNITA e constitucionalista, usando a sua página no Facebook, postou uma nota desencorajando os mentores e interessados em participarem na manifestação, tendo inclusive destacado que os militantes do partido que representa estavam orientados a não aparecerem no largo da Independência – local marcado para os protestos.
Na ocasião escrevi um artigo intitulado “O delírio da deputada Mihaela Webba”, publicado pelo Club-K, onde repudiava a ideia segundo a qual os indivíduos apenas podiam exercer o direito de manifestação, plasmado no artigo 47º da Constituição da República de Angola (CRA), mediante autorização dos chefes dos partidos onde militam.
Ao agir desta forma – por “ordens superiores” -, o indivíduo não actua como cidadão de facto, mas sim como militante. A cidadania fica em causa, pois não está em primeiro lugar. O mesmo acontece quando, no desempenho das funções jornalísticas, se recorre a determinados técnicos afectos às organizações partidárias para esclarecimento. É comum ouvirmos o seguinte: “Tenho de pedir ainda autorização superior para falar”.
Note-se que a abordagem jornalística a ser feita não é partidária e/ou política – é meramente técnica – mas ainda assim é necessário que o jurista, hipoteticamente, peça autorização ao chefe para falar da lei do combate ao branqueamento de capitais, alegadamente sob pena de ser sancionado caso faça o contrário.
Mostrar o descontentamento publicamente contra uma política ou decisão do partido em que milita é considerado traição. Nenhum indivíduo, seja ele de que agremiação partidária for, está “autorizado” a contestar as acções dos chefes do partido. E não só publicamente, mas também internamente.
Exemplos de indivíduos que tentaram agir à margem da militância há poucos, e aqui destaco o biólogo Makuta Nkondo e o governador de Benguela Isaac dos Anjos. Por pensar e falar como cidadão e não como militante, Makuta Nkondo passou a ser considerado “persona non grata” pela UNITA e, desde as últimas eleições – em 2010 –, pouco se tem ouvido do ex-deputado independente do partido dos “maninhos”.
Makuta Nkondo destaca-se pela frontalidade e transparência como aborda as questões. “Makuta não só disse no [jornal] Folha 8 que a CASA-CE é a melhor opção para Angola como repetiu o mesmo discurso na Rádio Despertar, tendo nesta altura ido mais longe ao afirmar que a UNITA e o MPLA eram partidos intolerantes”, lê-se no artigo publicado no Club-K intitulado “Makuta Nkondo vota a favor do MPLA”.
Acusava, ainda usando os microfones da “Despertar”, de existir censura na rádio. Citava como exemplo o facto de raramente ouvir “hertzianamente” indivíduos afectos a partidos como o PRS, CASA-CE, Bloco Democrático e outros. A resposta para a ausência de representantes do MPLA era sempre de que “declinaram o convite”.
Foi durante a conferência sobre a “Problemática da Ocupação de Terrenos” que ouvimos Isaac dos Anjos a questionar os moldes em que tal evento havia sido organizado, isto por achar que era desnecessária a presença dos administradores municipais e autoridades tradicionais quando os “chefes” de todos eles – os governadores – já lá estavam. Tal questionamento foi considerado uma ofensa ao Presidente da República, pois era o “patrocinador oficial” da actividade através da sua Casa Civil, e, passados alguns instantes, Bornito de Sousa, enquanto “chefe da missão”, exigiu que Isaac dos Anjos pedisse desculpas publicamente por pensar e falar que não entendia as razões da presença dos seus colaboradores ali.
Notei que, servindo-se da arrogância que lhe é característica, Isaac dos Anjos agiu como cidadão (o cidadão também erra) e não como militante, pois o militante não questiona, apenas obedece. O autêntico estardalhaço foi o pedido de desculpa. A partir do palácio provincial, Isaac dos Anjos pediu desculpas pelo questionamento, mas não aos administradores e autoridades tradicionais [sobas e seculos].
O “pedido de absolvição” de um eventual castigo foi endereçado ao Presidente da República. Nem sequer o “chefe da missão” foi citado no discurso de perdão. E é aqui onde o governador voltou a agir como mandam as regras partidárias – antes de tudo e sobretudo está a militância e só depois, se possível, a cidadania.
A orientação partidária em Angola vale mais que a cidadania. A lei, que tem como principal característica a imperatividade, não funciona como bússola norteadora para os indivíduos. O que vale mesmo são os estatutos e ideologias partidárias, e essas meras concepções sectárias não permitem aos militantes serem primeiro cidadãos. O militante não pode manifestar-se exigindo água ou energia sem a anuência do chefe do partido.
O técnico não pode prestar esclarecimento sobre alguma matéria do ramo em que se formou sem a autorização do chefe do partido. E o pior será criticar o chefe ou o partido onde milita quando existir motivos. Aí é motivo inclusive para ser expulso ou desvalorizado por colegas de partido, tal como aconteceu com William Tonet, ocorre com Marcolino Moco, Silva Mateus, e tantos outros.
Politicamente, dizem sempre que é errado criticar o chefe ou determinada decisão do partido. Um amigo disse-me que a posição que defendo é característico dos activistas e não dos políticos. E sempre indago o seguinte: É importante educarmos as pessoas a serem cidadãos ou militantes?