José Eduardo dos Santos, Presidente da República não eleito nominalmente, líder do Governo e do MPLA, está provavelmente a alinhavar o balanço de mais um ano, e como nos anos anteriores, vai partilhá-lo “com todas as famílias angolanas”. Famílias que, assim, ficarão a saber que em 2014 se registaram acontecimentos de “natureza dramática que causaram enormes prejuízos e retiraram do nosso convívio cidadãos que muito ainda tinham para dar à Nação”.
Por Orlando Castro
”Que as suas almas descansem em paz e que os seus bons exemplos sejam seguidos pelas novas gerações”, dirá o Presidente referindo-se, dizem os mais ingénuos, a Alves Kamulingue, Isaías Cassule e Manuel de Carvalho Hilberto Ganga.
Mas, é claro, o Presidente também encontrará “acontecimentos que tiveram feição positiva e ocorreram no domínio económico, social e cultural, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento da nossa sociedade”.
“Com o início da aplicação do Plano Nacional de Desenvolvimento, o Governo começou a implementar políticas públicas para garantir a estabilidade, o crescimento e o emprego”, dirá José Eduardo dos Santos, acrescentando que “este processo visa a valorização e a melhoria das condições de vida da família, a promoção da igualdade do género, a protecção social do idoso, a protecção integral dos direitos da criança e a integração social completa dos desmobilizados”.
O Presidente goza, nesta matéria, do benefício da dúvida. Se esse programa começou apenas em 2013 ainda não teve, de facto, tempo para mostrar resultados. Veremos o que nos reserva o futuro. Do presente e do passado todos sabemos que apenas funcionou, e bem, o Plano Nacional de Desenvolvimento dos membros do clã presidencial.
“A intenção é fortalecer a estrutura familiar, enquanto núcleo básico da sociedade, e pugnar pela inclusão social e económica de todos os cidadãos, sem qualquer distinção”, dirá o Presidente. Ao especificar que a inclusão social e económica “sem qualquer distinção”, José Eduardo dos Santos reconhecerá, presume-se que involuntariamente, que apesar de 39 anos de independência o país continua a ter essa enorme chaga, essa enormíssima gangrena, de ter angolanos de primeira e de segunda.
É, aliás, caso para perguntar: De quem é a culpa? Até 2002 o regime diria sem qualquer hesitação que o responsável era Jonas Savimbi. Doze anos depois se calhar a culpa é dos querem instituir no nosso país um democracia.
Dirá o Presidente que “um segmento da nossa sociedade que mereceu toda a nossa atenção foi o da juventude, com a qual o Governo encetou um diálogo franco, construtivo e abrangente, sobre os seus principais anseios e aspirações”, acrescentando que o “Fórum Nacional da Juventude foi a expressão do dinamismo e da criatividade dos jovens angolanos e os temas nele debatidos integram agora o Plano Nacional de Desenvolvimento da Juventude”.
Tem razão. Tirando os cerca de 300 jovens frustrados (assim os definiu o Presidente), é verdade que, como se vê todos os dias, seja nas manifestações ou nos caixotes do lixo, mais de 99% da nossa juventude está de acordo. E os que não estão deixam de contar porque, acidentalmente – é óbvio, levam uns tiros ou são presos, torturados e reeducados nos rios onde predominam jacarés famintos.
Dirá o Presidente que “as prioridades desse Plano são: aumentar a oferta de emprego; cuidar do primeiro emprego; ajustar as qualificações dos jovens às necessidades do mercado de trabalho e garantir o seu acesso a uma habitação condigna”. Para isso, acrescenta, “vão ser destinados mais recursos à formação técnico-profissional dos trabalhadores e quadros médios, aumentando ou ampliando os centros e escolas de formação em todos os municípios”.
Tudo porque “é de facto urgente inverter a actual pirâmide do sistema de formação, em que se regista um número dez vezes maior no ensino superior do que no escalão de formação profissional de base”.
A teoria está bem vista. Ou seja, o diagnóstico presidencial corresponde à realidade do país. Falta, contudo, a medicação. E esta continua à espera de melhores dias, talvez aguardando que um dia destes sejamos uma democracia e um Estado de Direito. Até lá, jovens ou não, todos vamos continuar a saber que a fome se mata com comida, mantendo contudo a dura realidade de sobreviver com a barriga vazia.
“O Governo continuará também a desenvolver as infra-estruturas, para que os jovens tenham um maior acesso à prática desportiva, às artes e aos benefícios da cultura sem qualquer tipo de discriminação, pois isto poderá contribuir para o fortalecimento livre e harmonioso da sua personalidade e para a consolidação da identidade nacional”, dirá José Eduardo dos Santos. Mais coisa menos coisa, é o mesmo que tem dito todos os anos. É o mesmo que há mais de 50 anos prometia o MPLA e que corresponde, em síntese, à tese de Agostinho Neto quando dizia que o importante era resolver os problemas do Povo.
O Presidente também não se esquecerá da “mulher angolana, e com grande evidência a mulher rural” que “teve sempre de enfrentar múltiplas dificuldades e adversidades”.
“Muitas foram mortas e muitas viram morrer os seus maridos, filhos e outros familiares. Muitas tiveram de assumir a chefia dos seus lares e a liderança das suas famílias. Tiveram de lutar arduamente em condições de sobrevivência pelo sustento dos filhos e familiares, pela sua educação e saúde, mantendo a coesão e a unidade familiar”, recordará Eduardo dos Santos que nesta matéria, como em muitas outras, fala sem conhecimento de causa directo.
Dizendo que “a Nação está grata à mulher angolana e, em particular, à mulher rural e presta-lhe um merecido tributo”, o Presidente reconhecerá que “temos de ir mais longe do que temos feito, intensificando o desenvolvimento rural e melhorando as condições de vida e de bem-estar das famílias e das comunidades rurais”.
Finalmente Eduardo dos Santos descobrirá que existem famílias e comunidades rurais, que muitas famílias – ao contrário da sua – consideram a mandioca um manjar divino, sendo que nenhuma delas conseguiu pôr as filhas menores a vender ovos nas ruas da cidade. O máximo que conseguiram foi, quando fugiram para as cidades, pô-las a catar restos nas lixeiras e a vender a sua dignidade nas esquinas da sobrevivência.
O Presidente afirmará que “os Ministérios da Promoção da Mulher, da Administração do Território e do Trabalho e Segurança Social devem conduzir um programa de auscultação e discussão dos problemas da mulher rural em 2015, a exemplo do que foi feito em 2014 em relação à juventude, para ajustarmos os nossos programas de apoio à mulher rural à realidade de cada município e de cada província e definir os recursos adequados no Orçamento Geral do Estado de 2015”.
Mais vale tarde do que nunca. Se valer, é óbvio. Só agora (a independência foi em 1975 e a paz total data de 2002) o Presidente vê a necessidade de auscultar os problemas da mulher rural. É obra.
Mas há mais novidades que o Presidente considera dignas de registo.
“Nunca é demais falarmos da necessidade da tolerância e do respeito mútuo e também do respeito pela vida e pelos direitos dos cidadãos por parte das instituições públicas e privadas, independentemente da sua condição social, da sua origem, das suas crenças religiosas e das suas preferências partidárias”, dirá o Presidente da República que em 2014, tal como nos anos anteriores, mandou prender, torturar e assassinar cidadãos que apenas queriam fazer valer os seus supostos direitos de cidadania.
Como se nada se tivesse passado no nosso país, Eduardo dos Santos recordará a todos nós, nomeadamente aos amigos e familiares de – entre outros – a Alves Kamulingue, Isaías Cassule e Manuel de Carvalho Hilberto Ganga, que “a condenação à pena de morte foi abolida no nosso país pela Constituição em 1991”.
“A ‘cultura da morte’ ou do assassinato por razões políticas não é prática do Estado angolano”, salientará o Presidente da República perante as gargalhadas dos jacarés e a revolta tumular dos restos mortais de alguns dos nossos irmãos que foram vítimas dessa cultura da morte que Eduardo dos Santos diz não ser prática do seu Estado que, ao contrário do que afirma, “não protegeu nem garantiu o direito à vida dos cidadãos”.
Num manifesto ataque à nossa inteligência e às regras de um Estado de Direito que Angola não é, o Presidente terá o dislate de dizer que “sem respeito e aceitação do outro não há tolerância nem existem condições para o exercício da cidadania”.
Mas o atestado de matumbez que pretende passar a todos nós irá mais longe quando, impávido e sereno, Eduardo dos Santos disser que “a liberdade e a democracia garantidas pela Constituição não constituem um livre trânsito para o insulto gratuito, para a ofensa moral e para a calúnia de quem quer que seja”.
Em matéria de liberdade, todos sabemos que a nossa termina onde começa a do regime. Mas também sabemos que a do regime não termina onde começa a nossa. Pelo contrário. O regime não tem limites para nada. Insulta gratuitamente, explora, prende, tortura e mata sem prestar contas.
“Aqueles que utilizam esta prática com intenção de colher dividendos políticos e projectar a sua imagem perdem tempo e também perdem prestígio e consideração diante dos seus compatriotas”, dirá o Presidente que, por exemplo, dirige através da delegação de poderes em sipaios do regime, os órgãos públicos de comunicação social que são os mais sagazes exemplos de ofensas e calúnias de que há registo.
Mesmo admitindo que o discurso será escrito por algum assessor com noções básicas de democracia, lamentaremos que o Presidente alinhe (voluntariamente, por obrigação ou intimidação) numa farsa e em mais uma tentativa de branqueamento de um regime claramente esclavagista.