POVOS POBRES, DIRIGENTES MILIONÁRIOS

O bilionário e co-fundador da Microsoft, Bill Gates, defendeu hoje que os países mais ricos devem aumentar a ajuda aos países africanos, destacando que, “num mundo justo”, estes países deviam ver a sua dívida perdoada. E o que se faria com os responsáveis africanos que, apesar de serem “donos” de países ricos, se limitam a ser milionários, usando grande parte dessa dívida para enriquecimento pessoal e familiar?

Por Orlando Castro

A tese de Bill Gates é de que, “num mundo justo, veríamos um movimento emergir a favor destes países mais pobres para que isso acontecesse outra vez”, disse o filantropo em entrevista à agência de notícias Associated Press, referindo-se à iniciativa de perdão de dívida, em 2005, que perdoou 40 mil milhões de dólares (quase 36 mil milhões de euros) de dívida de 18 países ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial.

A ideia é, atrás de uma máscara filantrópica, beneficiar o infractor, pedindo aos pobres dos países ricos para dar aos ricos dos países (supostamente) pobres. Angola, com 20 milhões de pobres e o mesmo partido (o MPLA) no governo há 49 anos, é um paradigma.

Na entrevista, Bill Gates considerou que “há menos dinheiro a ir para África numa altura de necessidade”, seja para alívio da dívida, vacinas ou para reduzir a má nutrição, vincando que em termos percentuais, o dinheiro que vai para a Ucrânia é “substancial”.

Apesar da estagnação no progresso rumo aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, Bill Gates mantém a esperança de que as coisas melhorem: “Eu sou um optimista, acho que podemos dar uma segunda hipótese à saúde global, mesmo num mundo onde os vários desafios concorrem pelas poupanças e obrigam os governos a esticar os seus orçamentos”.

Em Abril, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) disse que os números preliminares de 2023 mostravam que a ajuda ao desenvolvimento dada pelos países mais ricos tinha aumentado todos os anos desde 2019, mas a percentagem que foi para os países africanos caiu, em 2022, para 25%, o nível mais baixo dos últimos 20 anos.

A redução da ajuda surge num contexto em que os países de médio e baixo rendimento, incluindo em África, estão a gastar mais dinheiro para pagar as dívidas, apontou um relatório das Nações Unidas de Junho, segundo o qual o fardo da dívida estava a limitar o que os países deveriam gastar em serviços básicos como a saúde, a educação e acção climática.

Em 2017, o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, defendeu que a União Europeia devia conceber “um verdadeiro ‘Plano Marshall’ para África”, considerando que o plano de investimento então praticado não era suficiente. Das duas uma: Na altura, o Folha 8 escreveu que, ou era uma forma sofisticada de neocolonialismo, ou uma estratégia para pedir aos pobres dos países ricos para dar aos ricos dos países pobres.

Intervindo numa conferência de (suposto) alto nível sobre “uma nova parceira com África”, organizada pelo Parlamento Europeu em vésperas da V Cimeira UE-África, que teve lugar em Abidjan a 29 e 30 de Novembro de 2017, Tajani defendeu que a Europa devia “enviar um sinal claro da sua determinação em relançar e reforçar a parceria”.

Segundo o presidente do Parlamento, “o plano de investimento de 3,4 mil milhões de euros para África era um passo importante na direcção certa, mas estava longe de ser suficiente”. Então, pensava Antonio Tajani, a solução não era (passe o exagero) ensinar-nos a pescar mas, antes, despachar para cá umas toneladas de peixe.

“Devemos apoiar os esforços que os africanos estão a levar a cabo para estabelecer uma base de produção sustentável e desenvolver uma agricultura eficaz, fontes de energias renováveis e água, energia, mobilidade e infra-estruturas logísticas e digitais adequadas”, sustentou, defendendo então que a abordagem indicada seria desenhar um “Plano Marshall para África”, numa alusão ao programa concebido pelos Estados Unidos da América para apoiar a recuperação da Europa depois da II Guerra Mundial.

Segundo Tajani, com um “Plano Marshall”, a Europa iria “fortalecer a boa governação e o Estado de direito, melhorar a luta contra a corrupção e ajudar a emancipação das mulheres e educação”.

A boa governação consegue-se quando não se negoceia com maus governos, com ditadores. Um Estado de Direito ajuda-se quando se apoiam as democracias e não, como faz a Europa, quando dá tanto jeito manter governos (Angola, Zimbabwe, Guiné Equatorial etc. etc. etc.) amigos mesmo que sejam esclavagistas. Quanto à corrupção, quem são os corruptores? São, em grande parte, europeus.

“Temos de trabalhar para garantir que, no quadro do próximo orçamento plurianual da UE, pelo menos 40 mil milhões de euros são consagrados ao fundo de investimento para África”, defendeu, argumentando que as sinergias geradas em torno do financiamento disponibilizado pelo Banco Europeu de Investimento “poderia tornar possível mobilizar cerca de 500 mil milhões de euros em investimento público e privado”.

Defendendo que todos os esforços deveriam concentrar-se nos jovens, pois são eles que “têm a chave para uma África mais estável, próspera e moderna”, Antonio Tajani disse ainda que era necessário criar um ambiente favorável ao desenvolvimento do empreendedorismo e criação de pequenas e médias empresas e de emprego para os jovens.

“Para tal, precisamos também de instrumentos como o Erasmus para jovens empreendedores, que deveria ser alargado para abranger África”, sugeriu.

Margaret Thatcher e Mo Ibrahim

O magnata britânico de origem sudanesa, Mo Ibrahim, responsabilizou as “falhas monumentais dos líderes africanos após a independência”, explicando sem meias palavras (coisa cada vez mais rara) que, “quando nasceram os primeiros Estados africanos independentes, nos anos 50, África estava melhor em termos económicos”.

Mo Ibrahim dizia que os interesses da Europa apenas podem ser duravelmente garantidos pela democracia e não pelo apoio aos ditadores.

“Se a Europa quer garantir a longo prazo os seus interesses, ela tem todo interesse em se aproximar dos povos africanos. Pensar que a conivência com os ditadores seria benéfica é um grande erro”, afirmava Mo Ibrahim.

Este empresário, que fez fortuna na telefonia celular ao criar o operador CELTEL que se tornou depois ZAÏN, qualificou de “vergonhoso e um golpe à dignidade” a contínua dependência de África em relação ao ocidente, tendo em conta os “recursos impressionantes” que abundam no continente.

“Não se justificam a fome, a ignorância e a doença que assolam África”, disse Mo Ibrahim, para quem a solução terá de passar obrigatoriamente por “bons líderes, boas instituições e boa governação”, sem os quais “não haverá Estado de Direito, não haverá desenvolvimento”.

Mo Ibrahim recordava que “havia uma África na qual o Estado era o único proprietário dos meios de informação, na qual a única televisão pertencia ao poder, na qual toda a informação era controlada. Esta África já não existe”.

Por isso, “o que aconteceu na Tunísia e no Egipto nunca teria sido possível sem as tecnologias de informação e comunicação. Apesar dos esforços colossais, os Governos destes dois países não conseguiram impedir a circulação das informações. Nesta nova África, o povo é o único soberano e os nossos amigos europeus devem persuadir-se disso”.

Comparando o posicionamento europeu com o norte-americano, Mo Ibrahim entendia que “os americanos escolhem geralmente muito claramente a democracia e a luta contra a corrupção na sua relação com os Estados africanos. Seria bom que os nossos amigos Europeus fizessem o mesmo”.

Em relação às posições da Europa, recordemos que Margaret Thatcher, que em Maio de 1979 se tornou a primeira mulher a dirigir um governo britânico, proibiu nesse ano o seu enviado especial à então Rodésia (hoje Zimbabwe) de se encontrar com Robert Mugabe.

E fê-lo para defender a democracia? Para lutar contra as ditaduras?

Não. O argumento, repare-se, era o de que “não se discute com terroristas antes de serem primeiros-ministros”.

“Não. Por favor, não se reúna com os dirigentes da ‘Frente Patriótica’. Nunca falei com terroristas antes deles se tornarem primeiros-ministros”, escreveu – e sublinhou várias vezes – numa carta do Foreign Office de 25 de Maio de 1979 em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Peter Carrington, sugeria um tal encontro.

Ou seja, quando se chega a primeiro-ministro, ou presidente da República, deixa-se de ser automaticamente terrorista. Não está mal. É verdade que sempre assim foi, mas não tem de continuar a ser.

Ilustração: Cartoon de Sérgio Piçarra

Artigos Relacionados

Leave a Comment